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5 A POSIÇÃO DA CRIANÇA NEGRA NA LITERATURA INFANTIL

5.1 Uma reescrita: como é construído o personagem para uma nova pedagogia

Aprendi no campo dos Estudos Culturais que os produtos culturais como os filmes da Disney, as novelas para crianças, os desenhos animados e a literatura infantil têm um efeito pedagógico na produção das identidades das crianças (ANDRADE; COSTA, 2017). Na análise que apresentamos observamos que essa pedagogia cultural entra na rede discursiva das lutas culturais para produção do sujeito criança negra como protagonista.

Acredito que as obras literárias transmitem mensagens não apenas por meio do texto escrito, mas as imagens se constituem um discurso que cristalizam as impressões do mundo e dos diálogos imaginados. É nesse jogo de imaginar e criar que as narrativas funcionam como um espelho, onde podemos nos reconhecer, reconhecer o outro e desenvolver noções e preconceitos a respeito de si e do outro.

Um aspecto importante é que em todas as narrativas de desconstrução do discurso racista na literatura infantil tem nas ilustrações o seu ponto alto, afinal a representação do outro é uma inscrição do discurso no corpo, uma marca material (histórica), traço; essa representação como apresentação, no caso desse estudo re-apresentação, como as formas culturais de mostrar um grupo ou sujeito (LOURO, 2012).

Inicio com a obra Menina Bonita do Laço de Fita (1986), escrita por Ana Maria Machado. Um primeiro aspecto a indicar é a mudança na ilustração da capa como já havia indicado neste texto dissertativo. A autora muda de editora e ilustrador após a publicação da primeira edição do livro, passa a apresentar o cabelo da personagem em acordo com o debate nos movimentos sociais negros e no campo dos estudos étnico-raciais tal como está na figura 10. Tais informações estão publicadas no site da autora.

Figura 12 – Menina Bonita do Laço de Fita

Figura 13 – Menina Bonita do Laço de Fita

Fonte: Capa de Menina Bonita do Laço de Fita, Editora Ática, 2010.

Considerada uma das obras mais premiadas de Ana Maria Machado, a narrativa conta a história de uma menina negra como protagonista. Machado inicia a história como a maioria dos livros infantis “Era uma vez...” e em seguida começa a descrever a menina, lançando mão de várias comparações que se aproximam do imaginário infantil, “Os olhos dela pareciam duas azeitonas pretas, daquelas bem brilhantes. Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feitos fiapos da noite. A pele era escura e lustrosa, que nem o pelo da pantera negra quando pula na chuva” (2010, p. 3).

Figura 14 – Apresentação da Menina Bonita (2010)

Fonte: Menina Bonita do Laço de Fita (MACHADO, 2012, p. 2-3).

Figura 15 – Apresentação da Menina Bonita (1986)

Ao longo da narrativa, a autora vai descrevendo as características da menina por meio de comparações e finda apresentando a menina como uma princesa das Terras da África, conferindo valor à beleza da menina e o status de princesa. Perto da casa dela, vivia um coelho branco que a achava a menina linda de todas e desejava ter uma filha tão linda quanto ela, sendo assim pôs-se a perguntar à menina qual era o segredo dela, para ser tão pretinha.

A menina não sabia explicar a origem da cor de sua pele, mas dava as mais variadas explicações como “ Caí num balde de tinta preta”, “Comi muita jabuticaba”, “ Bebi muito café”, até quem um dia sua mãe ouve a conversa e explica ao coelho e à menina qual a razão de sua cor: “Artes de uma avó preta que ela tinha” (MACHADO, 2012, p. 15), diz a mãe. A partir disso, o coelho entendeu que as pessoas carregam as características de seus familiares e sendo assim para ter uma filha pretinha, teria que casar-se com uma coelha preta. Ele encontra essa coelha, casa-se com ela, tem muitos filhos e a história termina com a pergunta sendo feita à coelhinha pretinha quando saía com um laço vermelho no pescoço: Coelha bonita do laço de fita, qual teu segredo pra ser tão pretinha? E ela respondia: - conselhos da mãe da minha madrinha (MACHADO, 2012, p. 21).

O texto O Menino Marrom escrito por Ziraldo em sua primeira edição em 1986 conta a história de dois meninos, um marrom (negro) e o outro cor de rosa (branco), assim como Menina Bonita do Laço de Fita. A narrativa O Menino Marrom começa com “Era uma vez...” e lista características físicas do menino, também fazendo comparações que se aproximam do universo infantil, provocando encantamento pelo personagem, figura 16.

Figura 16 – Apresentação do Menino Marrom (1986)

Fonte: O Menino Marrom (ZIRALDO, 2002, p. 3).

A história inicia assim: Era uma vez um menino marrom. Ele era um menino muito bonito. [...] Sua pele era cor de chocolate. [...] Os olhos dele eram muitos vivos, grandes. As bolinhas dos olhos pareciam duas jabuticabas: pretinhas. [...] O menino marrom tinha os dentes claros certinhos, certinhos. Quando o menino ria, era aquela luz no meio do seu rosto marrom. [...] Os cabelos eram enroladinhos e fofos. [...] Falta descrever as bochechas do menino marrom, seu queixinho pontudo, sua testa alta, bem redonda, tudo harmoniosamente organizado no rosto. E finalmente falta descrever seu nariz. Nariz de menino marrom nunca é pontudinho. Ele cresce mais para os lados do que para frente. O do menino marrom era feito de três bolinhas surgidas

assim, de repente, no meio do rosto. Uma bolinha maiorzinha no meio de duas menorzinhas, uma de cada lado, em volta das narinas. Um desenho perfeito. [...] No mais, ele era magrinho de joelhos redondos e perninhas finas, o peito era quadradinho e os ombros também: um corpo bonito de atleta do futuro; os pés eram grandes - grandes mesmo! - para o tamanho dele (ZIRALDO, 2002, p. 3-4).

Após toda a descrição, entra em cena o segundo personagem, o Menino cor de rosa. Este menino surge como um companheiro, um amigo do Menino Marrom e suas características físicas também são descritas a partir da página dez do livro, depois disso os personagens começam a perceber as diferenças entre eles.

Ambos têm família, estudam e são bem curiosos, tornam-se amigos e em meio às aventuras que vivem percebem que são diferentes em suas características físicas. Eles descobrem, com uma caixinha de aquarela, que o resultado da mistura de todas as cores é marrom e com os experimentos feitos na escola com o Disco de Newton, descobrem que as mesmas cores em movimento resultam na cor branca. Então concluem que o Menino Marrom é a junção de todas as cores paradas e o Menino cor de rosa, apesar de não ser branco e sim rosa, é a junção de todas as cores em movimento. Então passam a refletir e entendem que mundo não é dividido entre pessoas pretas e brancas, mas sim uma grande variedade de cores. A narrativa continua até que os meninos crescem e separam, o Menino cor de rosa vai embora e o Menino Marrom continua em sua cidade natal. A história termina com a volta do Menino cor de rosa, agora já formado “doutor”, voltou com uma sinhazinha para apresentar [...] uma bela estudante de filosofia e vinha fazer uma pesquisa na cidade dos dois meninos” (p. 30). O autor aponta as possibilidades de caminhos que os meninos possam ter seguido:

[...] Um é craque de basquete e o outro, de voleibol; um já está quase formado e o outro não estuda mais – ou os dois já se formaram, todos dois já são doutores – já nem posso precisar. Só sei que um desistiu de tocar a bateria e o outro fez um samba e gravou uma canção; um está tocando flauta e o outro, violão. Um deles já se casou – se casou eu não sei bem – e o outro perdeu a conta das namoradas que tem. Um quer conhecer o mundo e o outro a Patagônia, um é rei da Informática e o outro do vídeo- clip; um andou fazendo cursos de teatro e literatura e o outro já fez figura num festival da canção. Um já conseguiu emprego; o outro foi despedido do quinto que conseguiu. Uma passa seus dias lendo - ou não sei se são os dois – um não lê coisa nenhuma, deixa tudo para depois. Mas, faz cada verso lindo, que ainda vai virar canção. Um pode ser diplomata. Ou chofer de caminhão. O outro vai ser poeta ou viver na contramão. Um é louco por sorvete de chocolate e o outro detesta o gosto de chocolate com leite; prefere, pro seu deleite, cerveja com tira-gosto. Um adora um som moderno e o outro – como é que pode? – se amarra é num pagode. Um dos dois é muito alegre e o outro mais quietinho; um faz piadas com tudo e os dois riem juntos. Um é um cara ótimo e o outro, sem qualquer dúvida, é um sujeito muito bom. Um já é não mais rosado e o outro é mais marrom (p. 31).

Há nessas duas histórias algo em comum, que é o modo como a autora e o autor respectivamente de Menina Bonita e Menino Marrom tecem comparações e associações a fim de descrever os traços do fenótipo negro das personagens. O estudo de Lajolo e Zilberman (1999) traz essa reflexão:

O corpo do sujeito negro passa a ter um tratamento diferenciado do registrado até então na literatura nacional, “negra beiçuda”, em Reinações de Narizinho de Monteiro Lobato, “Parece-me muito grosseira e até bárbara - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto!”, em Tia Nastácia, também de autoria de Monteiro Lobato ou ainda “negro de beiçola caída e dente arreganhado”, em As aventuras do avião vermelho de Érico Veríssimo elementos como os olhos, os dentes e a pele são ressignificados e passam a descritos positivamente (LAJOLO; ZILBERMAN, 1999, p. 73).

Em 2007 é lançado “O Cabelo de Lelê”, escrito por Valéria Belém. É importante dizer que esse livro emerge em um período marcado pela continuidade das lutas dos Movimentos Negros por representatividade. Nesse período, as lutas culturais dos Movimentos Negros ganham mais espaço e voz, ao unir forças com a luta de todos os marginalizados e subalternizados, questionando a ordem social imposta. No início de 2003, a Lei nº 10.639/03 já mencionada nesta dissertação causa impacto na produção literária. A partir de sua implementação, surge a demanda no mercado editorial da publicação de obras de literatura infantil que atendessem à nova Lei.

Figura 17 – O Cabelo de Lelê

Fonte: Capa do livro O Cabelo de Lelê (2007).

O livro narra a história de uma menina negra dotada de cabelos cheios de cachinhos: “[...] joga pra cá, puxa pra lá. Jeito não tem jeito não dá. De onde vem tantos cachinhos? De tanto “cismar” nesta pergunta ela resolveu procurar a resposta num livro, pois: toda pergunta exige resposta [...]” (BELÉM, 2007, p. 9-10). Até que um dia, depois de muito procurar, encontra as respostas em um “livro sabido” que explica para ela a origem seus cabelos. A partir do momento que encontra a explicação para a origem de seus cachos em suas raízes africanas, a personagem passa a aceitar a si mesma e experimentar diferentes penteados inspirada pelo conhecimento adquirido na leitura de seu livro, reconhecendo-se integrante de uma cultura, “Lelê já sabe que em cada cachinho existe um pedaço de sua história” (BELÉM, 2007, p. 26). Nos cachinhos que antes não gostava, Lelê encontra história e memória.

Ainda em 2007, é lançado o livro escrito por Márcio Vassallo, “Valentina”. Esse livro conta a história de uma menina que acreditava morar em um castelo, em um reino distante, com seus pais, o rei e a rainha.

Figura 18 – Valentina

Fonte: Capa do livro Valentina (2007)

O que Valentina não conseguia entender era o motivo para os pais passarem o dia fora, eles diziam que precisavam trabalhar para que “ela fosse alguém na vida”, mas ela não entendia por que eles tinham que descer e subir tantas vezes do castelo. Segundo o livro, ela morava bem longe depois do “bem alto”, “depois de tudo”.

Certo dia, os pais de Valentina decidem mostrar-lhe o lugar onde mora e a menina se depara pela primeira vez com a realidade de estar em uma favela; descendo o morro passa a conhecer a cidade onde vive e descobre que ao redor existem outros “reinos”, diferentes daquele em que vive.

Desenvolvido e ilustrado em 2008 por Maurício Veneza, A Caixa de Lápis de Cor está em sua oitava publicação, classificado como livro de imagens e por meio dos enunciados performativos – formas visuais -, narra a história de um menino negro engraxate, que ganha uma caixa de lápis de cor como pagamento de seu trabalho.

Figura 19 – A Caixa de Lápis de Cor

Fonte: Capa do Livro A Caixa de Lápis de Cor.

Em 2009, o livro de Nilma Lino Gomes, professora, pesquisadora e escritora afro- brasileira com ilustrações de Denise Nascimento, Menina, minha menina, quem te fez tão bonitinha: foi o sol, foi a lua ou as estrelas miudinhas?, conta a história de Betina uma menina negra, que estuda, brinca e se diverte, tem boa família e uma relação especial com sua avó.

Figura 20 – Betina

Toda a narrativa se desenvolve em torno das tranças de Betina que eram feitas por sua avó, uma avó carinhosa, que cuida bem do cabelo da neta. Esses momentos eram de cuidados muitos especiais para a protagonista, que descreve todo o passo a passo desde desfazer o penteado antigo até revelar o segredo para um bom trançado que, segundo ela, é “deixar o cabelo bem limpinho e sem creme para evitar a caspa e facilitar o manuseio dos fios”. Esse era um tempo de cuidado, carinho e troca entre avó e neta.

Figura 21 – Rosto de Betina

Fonte: Betina (GOMES, 2009, p. 9).

Uma linda menina negra, de cabelos trançados, se mostra feliz ao contemplar sua própria aparência.

5.2 A rede interdiscursiva: afirmação, ancestralidade e interseccionalidade raça e