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Este diálogo, Laques, está estruturado na questão da educação. Laques e Nícias estão com um grupo de amigos a assistir um espetáculo de Estesilau, conhecido mestre de hoplomaquia, isto é, arte de combater com as armas. O espetáculo é mero pretexto para que se comece um diálogo, um pedido de conselho: qual a finalidade educativa de uma determinada modalidade de ensino? Ela corresponde a um modelo de educação que leva os jovens à perfeição? Nícias pronuncia seu discurso a favor, Laques, ao contrário, faz um discurso contra. Diante destes dois discursos é pedida a opinião de Sócrates, que entra na discussão e pede que ao invés de um voto contra ou a favor de tal modelo educativo, seus mestres, discutam sobre um outro tema. Todos consentem em discursar sobre o tal tema proposto por Sócrates, no entanto, apenas Nícias, Laques e Sócrates dialogam, os outros amigos apenas assistem.

Sócrates começa a interrogar como a presença da virtude nas almas dos seus filhos poderia torná-los melhores e sobre como a coragem, parte da virtude, pode ser adquirida.

Tentemos, por conseguinte, ó Laques, dizer, em primeiro lugar, o que é a coragem. Depois disso, examinaremos também de que modo ela poderá ser dada aos jovens e em que medida ela pode provir de exercícios e de matérias de estudo. 86

Após algumas tentativas de definição do que seja a coragem por Laques, Sócrates refuta-o mostrando que este não sabe o que é a coragem, dessa forma, ignora o que venha a ser a virtude nas almas dos jovens e como ela pode ser ensinada. Laques desiste. Sócrates passa então a dialogar com Nícias. Porém, antes de começar a dialogar com Sócrates,

Nícias faz algumas considerações e elogios a Sócrates que são importantes acerca da finalidade, objeto e fim da educação. Da finalidade da educação, dialogam Sócrates e Nícias:

Sócrates – Por conseguinte, há que examinar também se porventura

o conselheiro é versado no tratamento daquilo em vista do qual fazemos esse exame.

Nícias – Sem dúvida.

Sócrates – Passamos, então, a afirmar, a respeito dessa disciplina,

que o exame que fazemos é em vista da alma dos jovens?

Nícias – Sim, passamos!

Sócrates – Logo, o que devemos examinar é se algum de nós é

versado no tratamento da alma, se é capaz de tratar bem, e se teve bons mestres. 87

Vemos que o objetivo de Sócrates neste diálogo não é apenas discursar se o modelo de educação que eles estão discutindo é boa para formar a coragem nos jovens, mas a preocupação explícita neste diálogo é com a formação da alma dos jovens. A finalidade da educação, quer deixar claro Sócrates, é a boa formação da alma dos jovens. Quanto ao objeto dessa educação que os homens estão preocupados e que Sócrates está a dialogar, conduz, pelo discurso que se tem com Sócrates, segundo a afirmação de Nícias, ao si mesmo de cada sujeito.

Nícias – É que me pareces desconhecer que quem for muito chegado

a Sócrates [por convívio ou parentesco] e vier a falar com ele habitualmente, ainda que, de início, comece a discutir sobre algo diferente, inevitavelmente acabará por ser arrastado para uma conversa em círculo, até cair e dar resposta a perguntas sobre si mesmo – como passa actualmente e como viveu sua vida passada. Depois de ter caído aí, Sócrates não mais o largará antes de tudo ter posto à prova. É o bom e o bonito. 88

O objeto não apenas deste discurso, mas de quase todos em que Sócrates aparece é o si mesmo de cada sujeito. Como Nícias afirma, Sócrates está preocupado como cada sujeito está conduzindo sua vida. Sócrates chama os sujeitos a prestarem conta de toda a sua vida, para que, a cada dia e tempo a existência destes sujeitos possa ser mais bela. O tema que está sendo discutido não é o mais importante para Sócrates, mas o mais importante é o sujeito que dialoga e que muitas vezes, como antes fizera Laques, julga ser conhecedor de alguma coisa e que ao final de tudo após passar pelo exame de Sócrates, fica no grau do não- saber e apto a se refazer diante do conhecimento e cuidado de si. E segundo Foucault, esta postura de Sócrates de dialogar e fazer com que o logos dos que com ele dialogam voltem

87Ibidem, p. 53-54. 88Ibidem, p. 58.

para si, faz ver na vida dos seus próprios interlocutores se há uma coerência entre seu falar e proceder.

Here, giving an account of your life, your bios, is also not to give a narrative of the historical events that have taken place in your life, but rather to demonstrate whether you are able to show that there is a relation between the rational discourse, the logos, you are able to use, and the way that you live. Socrates is inquiring into the way that logos gives form to a person's style of life; for he is interested in discovering whether there is a harmonic relation between the two. 89

Após estas considerações, Nícias começa a dialogar com Sócrates, o assunto, o mesmo que antes dialogara com Laques, a coragem. Nícias começa a expor o que entende por coragem. Interrupções de Laques, intervenções de Sócrates e eis que, no final, nem Laques e nem Nícias conseguem responder o que é a coragem. Para eles, se Sócrates conseguiu desconstruir tudo aquilo que eles pensavam saber sobre a coragem é porque ele é sabedor do que realmente venha a ser a coragem e que pode ser o melhor educador para seus filhos, como conversa Laques e Nícias. Laques aconselhando Nícias, diz:

O sábio és tu, ó Nícias. Seja como for, aqui ao Lisímaco e ao Melésias eu vou dar um conselho: no que respeita à educação dos jovens, mandem-nos passear, a ti e a mim, e, como dizia no começo, não deixem aqui o Sócrates ir-se embora. Se eu tivesse filhos nessa idade, era exactamente isto o que faria. 90

Só que contrariando o que eles pensam, Sócrates responde:

Ó Lisímaco, mas seria terrível uma coisa dessas – não aceder em colaborar para tornar alguém melhor. Se, de facto, nas conversas anteriores eu me tivesse mostrado sabedor e estes dois não sabedores, seria justo chamar-me a mim de preferência para este trabalho. Mas, neste momento, estamos todos caídos em aporia. [...]. O que eu afirmo, com efeito, meus amigos – e nenhuma palavra saia daqui para fora – é que precisamos, em comum, nós todos, de procurar o melhor mestre que houver, mas para nós próprios, que bem precisamos, em primeiro lugar; [...]. 91

Por fim, Sócrates fala que todos eles precisam de um mestre para que aprendam, já que se descobriram ignorantes no concernente à coragem, o que é que ela vem a ser. Ninguém pode ensinar aquilo que não sabe, deixa entender Sócrates, mas para saber alguma coisa é

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FOUCAULT, Michel. Fearless Speech. Los Angeles: Semiotext(E), 2001, p. 97.

90 PLATÃO. Laques. Tradução Francisco Oliveira. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 98. 91Ibidem, p. 99.

necessário, como bem nos falou Nícias neste diálogo, que se deixe ter a si próprio como mestre do cuidado e do conhecimento de si.

O Alcibíades colocou-nos como objeto do cuidado de si a alma, cuidado que, como vimos, é conhecimento. Com o diálogo Laques o cuidado ao qual o sujeito deverá estar preocupado não consiste mais em conhecimento da alma, mas o objeto do cuidado é a vida.

Aqui, o cuidado de si não consiste mais em um conhecimento da alma como parte divina em si, mas o objeto do cuidado é o bios, a vida, a existência, e cuidar de si significará dar forma à própria existência, submeter a própria vida a regras, a uma técnica, a pô-la à prova segundo procedimentos: é a filosofia como arte de vida, técnica de existência, estética de si. O Laques fala dessa coragem e desse risco: não mais o de situar além do próprio corpo uma realidade ontológica distinta (a alma), mas de saber quanto custa àquele que dá a sua vida imanente um certo estilo regrado. 92

O cuidado de si, a partir do Laques, é um cuidado com a própria vida e com a forma de conduzi-la e regrá-la. Em outras palavras, o Laques é o ponto de partida para que o próprio sujeito possa exercer uma verdade que é ao mesmo tempo uma prática de si. 93

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GROS, Frédéric. “A parrhesia em Foucault”. In: GROS, Frédéric; ANTIÈRES, Philippe. Foucault: a coragem da verdade. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2004 (Episteme; 1), p. 161-162.

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