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3. A FICCIONALIZAÇÃO DO RELATO JORNALÍSTICO

3.2. Ficcionalizando o jornalismo

3.2.1. Era uma vez a objetividade jornalística

Nesse momento, não nos interessa uma discussão epistemológica sobre a aplicabilidade da objetividade na prática jornalística, nem muito menos se o produto noticioso reflete fielmente os fatos que relata. Interessa-nos, sim, perceber até que ponto a narrativa que aí se constrói consegue efetivamente convencer os indivíduos de que a concretude está sendo exposta em toda sua factualidade – a meta é atingir o efeito de real. Assim procedemos, pois acreditamos que a relativização da credibilidade do jornalismo está mais relacionada ao enfraquecimento do consenso social em torno da objetividade do que à inequívoca incapacidade dessa instância em apreender, na sua totalidade, os acontecimentos.

Importa considerar que são alheios aos indivíduos os métodos de apuração dos fatos empregados pelo jornalismo, situação essa que nos conduziu à constatação do quão improvável é o questionamento da objetividade a partir de um olhar crítico do sujeito para tais procedimentos. Agora se considerarmos a pragmática da recepção, tal questionamento torna- se procedente: a dúvida sobre um dado relato só surge quando esse é confrontado com outro relato de mesmo objeto, cujo enfoque lhe seja discordante. Noutras palavras, o indivíduo só se interroga sobre a validade de uma dada realidade na medida em que tem acesso a uma outra tão convincente quanto aquela.

Outrora, quando era escasso e restrito o acesso a variadas fontes de informações, tornava-se mais fácil conduzir os agentes sociais à consonância em torno de uma dada perspectiva do mundo. Estamos nos referindo à formação de um senso comum que serve de referência em relação à qual toda nova informação é confrontada. O relato jornalístico contribui em muito para a formação de tal repertório social, no entanto é obrigado a adequar- se constantemente a esse para não cair em contradição, pois expectativas já foram geradas. Quando falamos adequação, estamos nos referindo às escolhas temáticas, sintáticas e lexicais efetuadas pelo jornalismo no âmbito daquilo que os indivíduos entendem como sendo o mundo concreto, gerando, assim, um processo de identificação. Em outras palavras, a notícia, ao se adequar as expectativas do público, evidencia uma realidade com a qual esse se sente familiarizado e que, para ele, figura a única possível.

Podemos deduzir, a partir dessa constatação, que a objetividade do jornalismo é alcançada quando uma notícia consegue levar os seus consumidores à percepção de que aquilo que se mostra corresponde fielmente aos acontecimentos concretos, sendo tal feito possível através do recurso da verossimilhança. Quando essa é plenamente alcançada pela narrativa noticiosa, os fatos aí expostos são sentidos como óbvios, indicando que as marcas

das escolhas arbitrárias feitas pelo jornalista foram perceptivelmente abstraídas pelos receptores, ou seja, a autoria foi suprimida. Barros Filho (1995, p. 76) nos resume tal situação enfatizando que “elementos formais e de conteúdo do produto mediático informativo fazem crer na ausência (aparente) do autor-codificador, que faz crer na objetividade (aparente), que, por sua vez, faz crer na mídia como ‘espelho’ da realidade [leia-se mundo concreto], e assim sucessivamente”. Nesse sentido, “o efeito real, enquanto ilusão causada pelo trabalho de formalização simbólica, será tanto mais perceptível quanto menos evidente for a mediação do autor” (p. 72).

É justamente esse autor que no contexto atual se mostra tão presente, evidenciando, desse modo, a subjetividade intrínseca da narrativa jornalística. Contrariamente ao que se pode pensar, a percepção de tal presença não se deve necessariamente ao descuido do produtor em relação à verossimilhança do enunciado, mas a alta exposição do receptor a variados e distintos enunciados, igualmente verossímeis, que o conduz a duvidar dos fatos, ou melhor, dos enquadramentos apresentados. Vemos, com isso, a objetividade do enunciado entrar em processo de erosão, pois foi evidenciada a sua qualidade de constructo subjetivo.

Com efeito, o que as diversas tecnologias comunicacionais proporcionaram foi a evidenciação da multiplicidade de pontos de vista possíveis sobre o mundo, todos com igual potência de veridicidade, levando, assim, os indivíduos a questionar a credibilidade de um discurso absoluto em relação à concretude que os rodeia. Dessa forma, o consenso de outrora foi esfacelado. Não existe mais a crença numa descrição plena dos fatos, estado no qual o jornalismo se apoiava para apregoar uma dada perspectiva acerca dos acontecimentos cotidianos como a única possível. É nesse sentido que o relato jornalístico experimenta a descrença, por parte da sociedade, na sua objetividade. Isso conforma, em certa medida, com a seguinte afirmação de Bourdieu (1998, p. 8): “a objetividade do sentido do mundo define-se pela concordância das subjetividades estruturantes (senso = consenso)”. Em suma, quando é abalado o consenso que sustentava apenas uma única visão sobre o concreto como a efetiva, tem-se ameaçado o mérito da objetividade. Isso significa justamente que foi evidenciada a condição subjetiva das narrativas do mundo.

Importa lembrar que não é apenas o campo jornalístico que tem relativizada a sua objetividade, até porque esse atributo não lhe é exclusivo, muito pelo contrário, pois, como vimos, o jornalismo foi apenas mais um dentre tantos outros campos do conhecimento que tomaram para si tal prerrogativa. É a objetividade enquanto meio indubitável de abordagem do mundo que está sendo questionada devido à evidenciação da potência subjetiva,

ocasionando, portanto, a crise dos paradigmas. Nessa situação, todos os discursos estão nivelados na escala da credibilidade, todos, em certa medida, tornaram-se ficções.

Esse processo de ficcionalização trouxe um grande problema para o jornalismo: se a maior atratividade do produto noticioso era sua (auto-imputada) factualidade, ou seja, sua (pretensa) capacidade de mostrar os acontecimentos em toda sua concretude, como será possível para ele manter seus consumidores se tal atributo lhe foi desmerecido? O caminho para o jornalismo parece ter sido a transformação da notícia em espetáculo, pois diante da impossibilidade de manter o público pela racionalidade (objetividade) dos fatos, só lhe restou seduzi-lo através da emocionalidade (subjetividade) da dramatização factual.