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UNIÕES E CASAMENTOS NÃO-HETEROSSEXUAIS: EXPECTATIVAS E

No documento LUGAR DE HOMEM É NA COZINHA? (páginas 56-58)

1.2 A FAMÍLIA

1.2.3 UNIÕES E CASAMENTOS NÃO-HETEROSSEXUAIS: EXPECTATIVAS E

A questão das uniões e casamentos gays por vezes se confunde com a questão da parentalidade que envolve a evocação de uma família de pessoas do mesmo sexo com filhos. Os estudos no território brasileiro seguem a tendência em privilegiar a homoparentalidade como sugere a revisão sistemática de literatura de Santos, Scorsolini-Comin e Santos (2012). Embora a questão do parentesco em famílias ainda seja, mesmo em menor escala, fonte de discussões a respeito das famílias gays, o desejo de ter filhos é algo que surge com menor frequência em casais homoafetivos se comparados a casais heterossexuais, como sugere um dos achados na revisão de Santos, Scorsolini-Comin e Santos (2012).

Na pesquisa de Salomé, Esposito e Moraes (2007), uma das principais motivações para os casais estabelecerem uma família é de garantir o cuidado um do outro e construírem uma história juntos. O amor, carinho e a atenção são tidos como aspectos essenciais dessas relações. Nos relatos dos participantes dessa pesquisa, o próprio significado de família é entendido como uma reunião de duas ou mais pessoas que vivem juntas, sendo parentes ou amigos, com o intuito de um cuidar do outro. O afeto aparece como o verdadeiro pivô de relacionamentos gays, e não necessariamente a procriação. Segundo Rosa et al (2016), o desejo de ter filhos é algo que não acontece de imediato na maioria das vezes em casais gays. O desejo de adotar/ter filhos pode acontecer por inúmeros motivos após a relação se estabelecer.

Ainda na esteira do conceito de família e o no papel das amizades nas relações gays, segundo Waseda et al (2016) e Sanches et al (2017), a rede de apoio formada em especial pelos amigos tem importante papel nas famílias gays. Principalmente porque na contemporaneidade ainda é comum as famílias de origem rejeitarem as relações dos filhos a princípio. Tal rejeição inicial acaba por vezes gerando dificuldades nas relações dos casais. Assim, esses casais acabam por vezes expandindo seu conceito de família para incluir a rede de amigos.

Ainda segundo Waseda et al (2016) e Sanches et al (2017), o posterior reconhecimento das famílias acerca das relações gays dos filhos é visto pelos casais como essencial para as suas identidades como casal. Muitas famílias de origem passam por um período de luto pelo fato de os filhos não corresponderem à expectativa heteronormativa que projetam neles e a aceitação de suas relações só vem a acontecer algum tempo depois. Em

especial, quando a família de origem percebe com o passar do tempo que a relação não é passageira. Essa relação com a família de origem é por vezes diferenciada em relação a casais heterossexuais que geralmente contam com o seu apoio e aceitação.

Como sugerem os resultados de artigos norte-americanos na revisão de literatura de Santos, Scorsolini-Comin e Santos (2012), as maiores dificuldades de famílias não- heterossexuais estão relacionadas ao preconceito exterior ao núcleo familiar e não ao arranjo familiar em si. As crianças criadas por casais gays têm desenvolvimento psicossocial semelhante ao de casais heterossexuais, e as diferenças encontradas nos estudos é a forma como essas crianças lidam com a homofobia por meio de sua consciência mais aguçada em relação à homossexualidade e ao heterossexismo na cultura ocidental.

No entanto, Santos, Scorsolini-Comin e Santos (2012) apontam um predomínio de trabalhos comparando casais gays com casais heterossexuais nos estudos norte-americanos, assim como, já mencionado acima, o predomínio de estudos sobre parentalidade no território brasileiro. Os autores ponderam que:

(...) esse movimento pouco contribui para o entendimento das possibilidades e desafios colocados pelos arranjos homoafetivos, pois evocam a tradição heteronormativa, não ajudando a perceber como esses formatos auxiliam a transformar o conceito tradicional de família. A simples diferenciação entre hetero e homossexual pode levar a reduções e preconceitos em relação aos arranjos ditos não tradicionais. (Santos, Scorsolini-Comin & Santos, 2012, p.580).

Essa observação vai ao encontro às problematizações levantadas por Miskolci (2007) e Butler (2003) acerca da luta do movimento LGBTQI+ pelo casamento enquanto uma forma de reconhecimento pelo Estado. Como mostram Santos, Scorsolini-Comin e Santos (2012) o predomínio nos estudos sobre parentesco no território brasileiro envolvendo filiação também aponta para esse enquadramento em um modelo heteronormativo, em que a família é somente aquela em que há um interesse em ter filhos. Interesse que, como sugere o estudo de Salomé, Esposito e Moraes (2007), não é a principal motivação de parte dos casais gays ao buscarem uma relação. Além disso, o parentesco se entendido como um “conjunto de práticas que estabelece relações de vários tipos que negociam a reprodução de vida e as demandas da morte” (Butler, 2003, p.221) é algo que pode incluir o nascimento e/ou criação de crianças, mas não se resume a isso. Em termos relacionais há inclusive outras possibilidades, como

sugere Miskolci (2007) ao citar Foucault em uma entrevista em que, ao discorrer sobre o direito de adoção e ser questionado pelo entrevistador se era sobre crianças, fala sobre a possibilidade da adoção de um adulto por outro, ou sobre adotar um amigo dez anos mais jovem ou 10 anos mais velho, etc.

No entanto, não é nosso objetivo discutir novas formas de relacionamento além da união e casamento gays nesse trabalho, mas sim, em resumo, problematizar brevemente como o enquadramento de relações gays em modelos da família heteronormativa, impõe limitações para pensar nessas relações como uma forma de crítica e transformação da instituição familiar, como já apontaram Santos, Scorsolini-Comin e Santos (2012).

Ainda assim, esses estudos sugerem que mesmo que as uniões gays estejam por vezes cobertas com o manto da normalidade advinda do ingresso dessas relações nos modelos familiares, isso não significa que não haja “falhas na repetição” desses modelos, lembrando Butler, e novas possibilidades emergentes a partir dessas falhas. O estudo sobre o discurso de casais gays de Luz e Gonçalves (2018) mostram o encontro e desencontro de velhos e novos modelos na narrativa dos cônjuges sobre suas relações.

Tal como a falha na repetição das normas de gênero abre caminho para uma transformação do gênero (Butler, 1990/2017), as uniões gays dentro do manto da instituição familiar, apontada como uma transmissora de normas e produtora de desigualdade (Miskolci, 2007), parecem também apontar para a possibilidade de uma mudança na estrutura dessa instituição histórica e sempre em metamorfose que é a família, ainda que dentro de certos limites.

No documento LUGAR DE HOMEM É NA COZINHA? (páginas 56-58)

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