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A unidade dos Estados

No documento O EGO COMO PROBLEMA EXISTENCIAL EM SARTRE (páginas 50-53)

2.2 A vinculação do Ego com os Estados, as Ações e as Qualidades

2.2.1 A unidade dos Estados

A primeira palavra de Sartre, no segmento em que trata dos Estados como unidades transcendentes das consciências, na Transcendência do Ego, é a afirmação de que os mesmos só aparecem a uma consciência reflexiva, ou seja, não é possível apreendê-los nos casos de consciência espontânea. Desta afirmação, pode-se já extrair algumas conseqüências, quais sejam: 1) Se o estado é apreendido por uma consciência, aqui, uma consciência reflexiva, é porque ele é um objeto; 2) A reflexão é, conforme visto, para Sartre, dubitável; assim, nem todos os objetos que ela afirma são imanentes e certos. O estado é um exemplo de objeto que

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Cf. “... there are three important senses of “transcendent” to be distinguished in discussing Sartre’s account of the ego, although the first sense, it was suggested, is only indirectly relevant. These senses are: “transcendentI,”

in contrast to facticity, refers to the capacity of consciousness to go beyond what is given in imagining and desiring; in contrast to what is immanent, “transcendent2” is applied to objects which are for consciousness, not in consciousness; “transcendent3,” in contrast to “limited to the particular experience,” is applicable to objects

extrapola o que pode ser afirmado a partir da consciência instantânea. Ele, do mesmo modo que o Ego, aparece através da consciência que é feita objeto na reflexão, como um novo objeto que não estava presente para a consciência irrefletida. 3) Ao extrapolar a consciência espontânea, o estado dá-se como um objeto não restrito à experiência irrefletida. Ele afirma o seu ser para além da instantaneidade da consciência que o apreende, fazendo ver que a indistinção entre a aparência e o ser, a qual legisla a consciência, não se impõe para ele.

Tais características do Estado podem ser observadas a partir do exemplo do ódio, o qual Sartre explora de forma emblemática. Sartre propõe:

Consideremos uma experiência reflexiva de ódio. Eu vejo Pedro, sinto uma profunda perturbação de repulsão e de cólera ao vê-lo (estou já no plano reflexivo): a perturbação é consciência. Não posso enganar-me quando digo: experimento neste momento uma violenta repulsão por Pedro. Mas o ódio é esta experiência de repulsão? Evidentemente que não. Ele não se dá, para além disso, como tal. Com efeito, odeio Pedro há muito e penso que o odiarei sempre. Uma consciência instantânea de repulsão não poderia ser, portanto, o meu ódio. Se eu a limitasse ao que ela é, a uma instantaneidade, não poderia mesmo falar mais de ódio. Eu diria: «tenho repulsão por Pedro neste momento» e, dessa maneira, eu não comprometeria o futuro. Mas, precisamente por essa recusa de comprometer o futuro, eu cessaria de odiar. (SARTRE, 1994, p. 59-60)

Fica claro, dessa maneira, que o estado não se restringe a consciência instantânea. Os dados provenientes desta são certos, mas não envolvem nenhuma pretensão quanto ao passado ou quanto ao futuro. O estado, por sua vez, é um objeto transcendente que deve ser descrito como uma intuição que aparece a uma consciência reflexiva, sem, contudo, restringir-se a este aparecer. Pode-se, então, sumariamente concluir que o estado é um objeto e como tal permite sua apreensão pela consciência; mas, por ser um objeto transcendente, o que se prova pela sua manutenção, mesmo quando não é alvo de visada da consciência, ele é incerto. Disso resulta poder-se dizer do estado que ele é, mesmo quando não se dá no aparecer e, ademais, que é o elemento agregador das consciências singulares que o manifestam. Disse-se, antes, que o estado aparece através da consciência refletida. Isso significa que, tomando como exemplo o caso em questão, ou seja, o ódio, cada experiência de repulsão revela-o. Contudo, ele não pode ser equiparado a nenhuma destas experiências, pois, conforme dito, não se limita a elas. De acordo com Sartre,

Cada «Erlebnis» revela-o por inteiro, mas ao mesmo tempo isso não é mais que um perfil, que uma projecção (uma “Abschattung”). O ódio é um título de crédito para uma infinidade de consciências coléricas ou repugnadas, no passado e no futuro. Ele é a unidade transcendente desta infinidade de consciências. (SARTRE, 1994, p. 60)

Por conseguinte, ele só é, na medida em que é a unidade destas consciências instantâneas. Se não houvesse nenhuma consciência singular de repulsão, não haveria também

o ódio como objeto transcendente que extrapola cada uma destas manifestações individuais, sem deixar, porém, de agregá-las.

Entretanto, por mais diversas que sejam as manifestações de um estado através das consciências singulares, não serão suficientes para eliminar o seu caráter dubitável. Em conformidade com o que foi dito acima, é próprio do estado essa condição, pois a consciência que o apreende, quando afirma algo para além do instante, não se limita a descrição do que se apresenta e, por conseguinte, o estado não pode ser designado como certo. Por outro lado, disso não se segue que o estado seja uma mera hipótese. O estado é um objeto real, apreendido através da vivência, o que se dá por ocasião de uma reflexão impura, isto é, uma reflexão que compromete o futuro (SARTRE, 1994). Novamente, tomando o exemplo do ódio, Sartre faz notar a distinção entre a reflexão pura e a impura. Para ele (1994, p. 61), a reflexão pura deve ater-se ao dado, no caso em questão, explica: “É o que se pode ver quando alguém, depois de ter dito em cólera: “eu detesto-te”, cai em si e diz: “não é verdade, não te detesto, disse isso debaixo da cólera””. Há aqui duas reflexões; a impura: “eu detesto-te”, propõe uma fuga do instante, uma afirmação que não se limita aos dados certos da consciência espontânea. A outra, pura, busca limitar-se à instantaneidade, negando a afirmação que opera a passagem ao infinito e, por conseguinte, apenas descrevendo a experiência.

Faz-se importante ressaltar, ao esclarecer a condição do estado, que ele não é um absoluto à maneira da consciência. Adversamente, ele, sendo um objeto é passivo; o estado encontra na sua estrutura existencial a revelação da sua relatividade aos atos reflexivos. Portanto, ainda que possam ser descritos como uma força, não se aniquila com isso a sua passividade, na medida em que os estados são existentes relativos à consciência. Em suma, eles são inertes (SARTRE, 1994). Segue que o caráter de força e de passividade podem ambos ser atribuídos aos estados concomitantemente.

Sartre (1994) frisa também que o estado age diferentemente do lado do corpo e do lado da consciência. Ao considerar a sua ação no primeiro caso, o estado é visto como causa das expressões corpóreas. Sartre exemplifica (1994, p. 62), “Ele é causa da minha mímica, causa dos meus gestos: “por que razão fostes tão desagradável para o Pedro?”, “porque eu detesto-o””. A resposta impõe, patentemente, ao estado o papel de uma explicação causal para as reações físicas. Mas, como entendê-lo do lado da consciência? A chave é o conceito de emanação. As consciências singulares devem aparecer à reflexão como emanando do estado. Como isso é possível? Da mesma maneira que no caso do Ego, em que ocorre uma relação que inverte a ordem real, as consciências singulares são primeiras, pois o estado, conforme

descrito, somente é possível através da síntese dos vividos instantâneos. Porém, a relação entre consciência e estado é estabelecida a partir de, como dito por Sartre (1994), uma relação mágica. Isso implica, segundo ele (1994, p.62), que “A repulsão dá-se, de algum modo, como produzindo-se ela mesma por ocasião do ódio e à custa do ódio. O ódio aparece através dela como aquilo de onde ela emana. Reconhecemos de bom grado que a relação do ódio à «Erlebnis» particular de repulsão não é lógica”. O ódio aparece, então, desse modo, a fim de possibilitar a ligação entre ele (estado), que é inerte, e a consciência espontânea. Assim, tem- se preservado os dados certos da consciência espontânea, a repulsão, sem, porém, deixar de lado a exigência característica ao estado, a saber, aparecer como origem das espontaneidades da consciência28.

No documento O EGO COMO PROBLEMA EXISTENCIAL EM SARTRE (páginas 50-53)