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CALDERÓN E O TEATRO ESPANHOL

3.1. A estrutura da peça e a caracterização das personagens

3.1.1. Unidades de ação, de tempo e de espaço

A ação dramática gira em torno do conflito entre a liberdade e a predestinação através da figura emblemática de Segismundo. Observamos que a peça contempla os preceitos aristotélicos de obediência à unidade de ação. Para Aristóteles (1991), a unidade de ação deve resultar da lógica interna dos acontecimentos sem que seja necessário sair dos limites da ação. Ademais, na tentativa de alcançar o efeito trágico, Aristóteles adverte aos poetas que a tragédia deve possuir uma extensão bem delimitada, possuindo começo, meio e fim.

Respeitando esses parâmetros, podemos dizer que a obra La vida es sueño possui uma extensão bem delimitada. Seu argumento lógico indicia com clareza seu começo, meio e fim. Paralelamente ao conflito de Segismundo, desenvolve-se o conflito de Rosaura e das demais personagens. No entanto, apesar de desencadear diversos conflitos, pode-se afirmar que as

ações da peça encontram-se subordinadas umas às outras e estão diretamente relacionadas ao conflito principal de Segismundo. Todos os conflitos e ações da obra estão interligados, constituindo, assim, uma unidade de ação. Observamos que, mediante o desenvolvimento do conflito principal de Segismundo, que possui como temática a predestinação e a liberdade, pode-se observar o conflito secundário de Rosaura, personagem que tenta recuperar sua honra, já que seu antigo noivo Astolfo fugiu para a Polônia para casar-se com Estrella, abandonando-a.

Nesta obra, Calderón de la Barca elenca como eixo fundador de sua peça questionamentos que envolvem a fé, a ciência e a liberdade do homem moderno. Além disso, o dramaturgo somente relata os fatos importantes ao entendimento da trama e não prolonga seu discurso.

Constatamos que a peça inicia-se em meio a fatos importantes, com a entrada marcante de Rosaura e Clarín na Polônia. Horácio (2005), na sua Arte Poética, aduz que não é necessário evidenciar na construção da ação das composições poéticas fatos que não são essenciais para a compreensão da trama. Podemos assegurar que Calderón em La vida es sueño obedece a esse princípio de economia artística. Através das ações podemos observar o desenvolvimento do conflito das personagens e suas respectivas caracterizações. Além disso, pode-se observar este desenvolvimento do conflito e a caracterização das personagens mediante os diversos monólogos da peça.

Em El arte nuevo de hacer comedias en este tiempo, Lope de Vega (2002) teoriza sobre as unidades de ação, de tempo e espaço, como discutido no primeiro capítulo dessa dissertação. Lope de Vega rompe com os preceitos das unidades de tempo e espaço das poéticas greco-latinas e propõe uma nova forma para o drama.

Calderón de la Barca na obra La vida es Sueño introduz os novos preceitos do drama propostos por Lope de Vega e divide sua obra em três atos. Também podemos observar que Lope de Vega rompe com o conselho de Aristóteles (1991) quando este argumenta que o drama deve se suceder em um pôr do sol. Provavelmente a obra calderoniana transcorre em mais de dois dias, pois devemos perceber o intervalo de tempo entre o desenvolvimento e o desfecho da trama.

Ademais, através do desenvolvimento do conflito, também podemos afirmar que a peça ocorre em mais de um dia, pois o intervalo de tempo entre as discussões na torre e no palácio até a guerra do bosque perpassa, provavelmente, o período de uma revolução do sol.

Observamos também que a obra La vida es sueño se sucede em mais de um lugar, rompendo, assim, com a unidade de espaço proposta pela Arte Poética de Horácio (2005) e a

Poética de Aristóteles (1991). A obra transcorre em três lugares distintos: na torre, onde Segismundo encontra-se trancafiado; no castelo da Polônia, onde vivem Basílio, Estrella, Astolfo e Clotaldo; e no bosque, onde acontece a guerra entre Segismundo, os soldados e Basílio. Todos os espaços foram demarcados através das rubricas realizadas por Calderón de la Barca ao longo da obra, como por exemplo, as marcações a seguir:

(dentro Segismundo)

SEGISM. Ay, Mísero de mí, ay, infelice! ROSAURA. ¿Qué triste voz escucho?

Con nuevas penas y tormentos lucho. (LA BARCA, 2011, p. 85)35

Calderón informa aos leitores que Segismundo encontra-se dentro da torre. A rubrica do autor apenas demonstra que a personagem encontra-se dentro, no entanto, pelo contexto da obra e pelas demarcações realizadas através dos diálogos das personagens, é possível assegurar em qual espaço a peça ocorre. Já neste outro exemplo, extraído do primeiro ato da peça, podemos averiguar que Segismundo encontra-se no Palácio:

(Salen músicos cantando, y criados dando de vestir a Segismundo, que sale como asombrado.)36

SEGISM. ¡Válgame el cielo! ¿Qué veo? ¡Válgame el cielo! ¿Qué miro? Con poco espanto lo admiro, con mucha duda lo creo. ¿Yo en palacios santuosos? (LA BARCA, 2011, p. 125)37

Neste fragmento, observamos que Segismundo encontra-se no Palácio, deslumbrado com o novo ambiente. Já na citação adiante, podemos constatar que a trama ocorre no bosque:

(Tocan al arma y sale Segismundo y toda la compañía) SOLDADO. El lo intricado del monte,

entre sus espesas ramas, el rey se esconde. SEGISM. ¡Seguidle!

35“SEGISMUNDO (dentro) – Ai, mísero de mim! / Ai, infeliz! ROSAURA – Que triste voz! / Que triste esse

rumor!” (LA BARCA, 2007, p. 39)

36“(Saem músicos cantando e criados dando o que vestir a Segismundo, que sai assombrado.)” (Tradução livre

nossa)

37“SEGISMUNDO – Estranho é tudo que vejo... / Tudo que sinto e respiro... / É espanto o que admiro... / é tanto

que já não creio... / Eu, em telas e brocados, / eu cercado de criados, / um leito cheio de sedas / gente pronta

No quede en sus cumbres planta que no examine el cuidado, tronco a tronco y rama a rama. CLOTALDO. ¡Huye, señor!

BASÍLIO. ¿Para Qué? ASTOLFO. ¿Qué intentas? BASÍLIO. Astolfo, aparta. CLOTALDO. ¿Qué quieres? BASÍLIO. Hacer, Clotaldo,

un remedio que me falta. (LA BARCA, 2011, p. 197-198)38

Calderón segue os preceitos de Lope de Vega elencando três lugares distintos para a peça. Nos dois primeiros atos de La vida es sueño, a peça ocorre na torre e no palácio e, somente no terceiro ato da peça, Calderón acrescenta o bosque à trama. As advertências feitas nas Poéticas clássicas aos limites que cada gênero literário possui foram ignoradas em La vida es sueño, pois Calderón rompe com as unidades de tempo e espaço e, como veremos adiante, o autor mescla personagens trágicas com cômicas em sentenças trágicas. Essas rupturas feitas por Calderón de la Barca permite-nos compreender que o drama em análise segue a vertente dos dramas de Lope de Vega, não somente pelo tom cômico dado às peças, mas pela estrutura do drama. No entanto pode-se observar diversos elementos da tragédia grega em La vida es sueño.