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Em um primeiro momento, no plano moral, à visada da “vida boa”, momento elementar da perspectiva ética, corresponde uma reivindicação de universalidade. Para Ricoeur (1995, p. 165-66), a passagem da intenção ética através da prova imposta pela norma, suscitada por uma requisição advinda da própria racionalidade prática, exprime-se, aos moldes kantianos, enquanto uma exigência de universalização. De fato, é fácil reconhecer nesse critério a ortodoxia kantiana. No entanto, a exigência de universalidade só se deixa reconhecer, plenamente, com a entrada em cena da ideia de formalidade. Nesta medida, a regra formal não estabelece conteúdos para a ação, ela não diz puramente o que deve ser feito. Antes, ela caracteriza os critérios aos quais as máximas da ação devem ser submetidas, a fim de que a ação possa ser considerada moralmente boa. A esse respeito, a filosofia moral de Kant exibe toda a sua radicalidade: a máxima tem de ser universalizável, deve valer para todo e qualquer homem, em toda e qualquer circunstância, sem consideração pelas consequências advindas da ação (Cf. RICOEUR, 1995, p. 166).

Esse estágio, no programa kantiano, corresponde à submissão das máximas da ação à

regra de universalização. Em outros termos, isto significa que, quando a vontade racional põe

um projeto, deixa ela incluída na máxima uma pretensão à universalidade, que deve, a sua vez, passar através da prova imposta pela regra de universalização. Ao seu turno, o teste de

universalização, aplicado à máxima, define o formalismo. Para Ricoeur, neste estágio, não há

consideração alguma por recalcitrâncias oriundas da inclinação: o formalismo exclui tudo que é de ordem empírica, desde o desejo, o prazer e até mesmo a felicidade, e o faz não em virtude de alguma maldade congênita das inclinações, mas, simplesmente, porque elas não satisfazem o critério transcendental de universalização.

De acordo com Ricoeur (1995, p. 166), essa estratégia de depuração, característica da regra de universalização, “conduz à ideia de autonomia (...) que é a verdadeira réplica na ordem do dever à intenção da vida boa” (RICOEUR, 1995, p.166).

Afinal, a liberdade, ao se dar uma lei, não produz uma regra de ação que possa responder adequadamente à pergunta “Que devo fazer aqui e agora?”. Em vez disso, a autêntica liberdade só pode se basear no imperativo categórico: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2008, p. 62). Ora, para Kant, todo homem que se submete a esse imperativo é autônomo, pois, obedece apenas àquela lei que ele mesmo prescreveu.

Dito isto, passamos sem mais delongas à questão suscitada pela vacuidade de um imperativo que não diz nada a respeito de conteúdos morais.

Para Ricoeur (1995, p. 166), “é para compensar o vazio do formalismo que Kant introduziu o segundo imperativo categórico”, que é o equivalente, no plano moral, da solicitude pertencente à intenção ética. Nessa esteira, do mesmo modo que a solicitude não se acresce de fora à estima de si, o respeito devido às pessoas não constitui um princípio moral heterogêneo em relação à autonomia do si, desdobrando, em verdade, sua estrutura dialógica.

De saída, portanto, lembremos a segunda formulação do imperativo categórico kantiano: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como um meio” (KANT, 2008, p 73). Segundo Ricoeur, nesta fórmula, a ideia de pessoa como fim em si vem para equilibrar o formalismo característico do primeiro imperativo. O formalismo, ao seu turno, adiciona à solicitude – e, de maneira geral, a moral adiciona à ética – a interdição à violência. Ademais, para Ricoeur (2008a, p. 166), “quando Kant diz que não se deve tratar a pessoa como um meio, mas como um fim em si, ele pressupõe que a relação espontânea de homem a homem é, precisamente, de exploração”, isto é, a violência de uma vontade sobre a outra é inerente à própria estrutura da relação de homem a homem. Em função disto, passam ao primeiro plano as relações em que as trocas humanas são marcadas pela assimetria, relações em que “um exerce um poder sobre o outro”, e, portanto, “ao agente corresponde um paciente”, uma potencial vítima da ação (RICOEUR, 2008a, p. 166-67).

Com efeito, essa modalidade de ação tem como base uma dissimetria inicial que sustenta “todos os desvios maléficos da interação”, os quais se estendem desde a simples influência sobre a vontade alheia até encontrar seu ponto culminante na tortura e no homicídio. Todas as figuras do mal que adentram a dimensão intersubjetiva estabelecida pela solicitude ganham seu contraponto na série de prescrições, interdições, proibições. Estas, por sua vez, ganham seus contornos precisos em acordo com as diferentes formas de interação violenta. Deste modo, “a moral (...) é a figura que a solicitude assume diante da violência e

da ameaça da violência” (RICOEUR, 1995, p. 167, grifo do autor). Portanto, o comando

proibitório impetrado pela solicitude tem essa forma justamente por causa do mal. Por conseguinte, a forma negativa da proibição torna-se inexpugnável. Todavia, se é esse o sentido implícito na formalização kantiana, para Ricoeur, a segunda formulação do imperativo categórico não faz mais do que racionalizar a antiga Regra de Ouro. Esta, com efeito, exprime uma regra de reciprocidade, na medida em que pede que não se faça ao outro o que não se quer que seja feito a si. E essa racionalização, é certo, visa eliminar precisamente a natureza

teleológica da Regra de Ouro, em uma formalização levada a cabo pela introdução por Kant da ideia de humanidade, “ideia que é a forma concreta e, se podemos dizer, histórica da autonomia” (RICOEUR, 1995, p. 167). No entanto, precisamos enfatizar que Ricoeur considera a Regra de Ouro superior à sua versão formalizada (na moral kantiana), visto que nela a alteridade concreta não está suprimida pela ideia de humanidade. Nesse sentido, a Regra de Ouro parece manter em seu núcleo uma noção de alteridade que condiz melhor com a natureza das relações interpessoais.

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