• Nenhum resultado encontrado

Fonte: Dados da Pesquisa, 2017.

Na comunidade quilombola de Canta Galo, as fugas e a formação dos quilombos concentravam-se ao longo dos Igarapés Muraiteua e Pirucaua, onde o ambiente da floresta amazônica oferecia ótimas possibilidades de fugas aos escravizados. “Escondiam-se na mata [...], o homem mandava procurar, botava gente para precurar e ficava aí [...] É, os escravizados estavam escondidos no mato” (MMEREDANE, QUILOMBOLA DE SÃO MIGUEL DO GUAMÁ, 2017. Grifo meu).

Além de configurar uma resistência contra a sociedade escravista no passado, os quilombos reinventavam no presente a sua própria existência. Não só pela resistência à escravidão, mas, também, às suas formas de produção econômica, fundamentadas nos latifúndios monocultores, detinados à exportação. (GOMES, 2015). Enquanto comunidades autônomas, os quilombos eram gestados pelo trabalho familiar (ALMEIDA, 2000), cuja produção (diversificada de alimentos e outros insumos) abastecia também os núcleos urbanos e, até mesmo, as fazendas monocultoras. (SALLES, 2005).

No Canta Galo, a ocupação de terras pela comunidade nasceu tanto das fugas quanto da herança das antigas fazendas escravistas da região. Dessa forma, efetivava-se a apropriação dessas terras ao longo do rio Guamá e Igarapés Muraiteua e Pirucaua, pelas famílias de antigos escravizados, onde refizeram sítios e se constituíram como comunidades que passaram a se reproduzir por várias gerações em contraposição à lógica dos grandes projetos de desenvolvimento da Amazônia.

Ali, os quilombolas passaram a se afirmar enquanto unidades de produção familiar que produziam sua existência material e imaterial por meio de práticas agro- extrativas realizadas a partir do “uso comum” (ALMEIDA, 2000) dos recursos, organizando-se num modo de vida, em que as matas e os rios representavam a sustentação da vida. Uma especificidade do uso comum e compartilhado dos recursos é a escolha e a alternância do lugar da morada, do roçado e do extrativismo na mata, cobinados com a criação do “animal solto” [...] “as galinhas e os porcos mariscavam nos terreiros” próximos das casas e, também, nos “lugares” de terras de uso comum, sob o cuidado de todos: [...] Antigamente, as criações eram soltas [...] mas todo mundo conhecia a sua. [...] mas, olha, vai lá no Pirucaua que ainda é assim [...]” (MMEREDANE, QUILOMBOLA DE SÃO MIGUEL DO GUAMÁ, 2017).

O modo de vida quilombola é tecido por uma profunda rede de solidariedade, parentesco e trocas materiais e imateriais, relações de “ordem moral” definida Woortmann (1990, p.62) como “família, trabalho e terra, nessa ordem social, constituem um ordenamento moral do mundo em que a terra, mais que coisa, é patrimônio, isto é, pessoa moral. [...]”.

A relação dos quilombolas com a terra é de troca recíproca, na qual o trabalho fecunda a terra, que se torna “morada da vida”. (HEREDIA, 1979). A relação com a terra é uma relação moral, cujo trabalho na terra é destinado, primeiramente, à reprodução do modo de vida. Ao se tornar morada da vida, a terra de um quilombola passa a constituir seu patrimônio, que corresponde às terras de morada dos “mais antigos” moradores que ainda povoam a memória, também reconhecidos como “donos do lugar”: [...] A família desse meu marido, era tudo gente do lugar, também [...] O compadre lá [...], também. [...]. (MMEREDANE, QUILOMBOLA DE SÃO MIGUEL DO GUAMÁ, 2017).

A geograficidade dos lugares de morada dos vizinhos revela que a apropriação do território por determinadas famílias era reconhecida pelos demais. Sua história na terra atestava-lhes a identidade quilombola: “é gente daqui”. Gente, ali estabelecidas, com seu sítio cuja apropriação foi feita no passado e ainda hoje, é marcada pelo sentimento de pertença: o lugar pertence à família “do compadre”, e este, é seu lugar. Dessa forma, para compreender a apropriação dos territórios quilombolas, no presente, é necessário considerar as possíveis leituras da vida cotidiana, que por sua vez, faz emergir o que é comum entre os sujeitos, os laços de identidade e sentido de pertencimento.

Na organização da comunidade, o sentimento de pertença é espacializado em 5 localidades que formam o Canta Galo, a saber, Nossa Senhora das Graças, Santa Helena, Santa Mônica, Pirucaua e Canta Galo: “[...] o Canta Galo vai desde a Santa Helena, no Igarapé Curuperé até o Pirucaua [...]. O Canta Galo é aqui e mais todo esse ajuntamento [...]”. (MMEREDANE, QUILOMBOLA DE SÃO MIGUEL DO GUAMÁ, 2017). “Ajuntamento” também significa “reunião”, “mutirão” ou “algo comum partilhado pelo grupo”. Nesse sentido, são espaços onde são tecidos os saberes e a identidade alimenta a construção da territorialidade.

A reflexão dos quilombolas da Comunidade de Canta Galo, sobre o território, traduz o anseio da terra para todas as gerações que se formarem nessa comunidade, como isso, eles reivindicam a titulação de seu território, com uma das medidas de proteção contra pessoas externas que agridem o meio ambiente com práticas predatórias. Com essas medidas eles acreditam que podem dar continuidade às atividades de roça e extrativa e assim ainda manter a floresta que hoje existe.

Na comunidade há muitas festas de Santos católicos. A festa de Nossa Senhora das Graças, acontece no mês de agosto. A outra, que apesar de não ser do local, também mobiliza as pessoas: é a festa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, no segundo domingo de outubro. Esta ida a Belém está muito relacionada às promessas feitas e que precisavam ser pagas. A veneração ao santo padroeiro e romarias são práticas que se difundem por toda a sociedade, mobilizando um grande número de pessoas e

baseia-se em duas faces de uma dívida para com a divindade que ocorre de forma direta e intensa: uma é a que o leva até a castigar a imagem do santo quando há omissão por parte do mesmo, dos pedidos realizados; e a outra face desta dívida é a preocupação do camponês de cumprir a promessa feita, materializada em orações e bens como gratidão às graças recebidas, temendo um castigo se assim não agir. [...] porque fornece uma expicação cheia de sentidos e de sinais para quem observa diariamente o mistério da terra, da água e do ar, bem como a incompetência dos poderes seculares para atender às necessidades inerentes ao seu modo de vida (MOURA, 1988, p. 22).

Nestas práticas religiosas há um conteúdo que se insinua, efetivamente imerso no modo de vida quilombola: “ele parece estar na forma de diferenciar, socialmente, os dias comuns dos dias especiais” (MOURA, 1988, p. 22). Concordando com a autora, quem dá sentido a esses dias especiais são os santos e as divindades. São raras, as datas que alteram a substância imaterial do tempo, como ocorre a que ocorre num dia de festejo do santo padroeiro, capaz de alterar o cotidiano. Nas quatro comunidades, identifiquei somente a festa da consciência negra e no Canta Galo, além dessa, a festa de aniversário da Associação.

Na comunidade do Canta Galo tem um grupo de mulheres quilombolas, o mesmo “surgiu em 2010, com o apoio da Santa Rita de Barreiras, do Conselho da Mulher de São Miguel e do Cedenpa”, [...] o objetivo é a ajuda mútua entre as mulheres que participam do grupo e para trazer melhorias para a comunidade”. (MMEREDANE, QUILOMBOLA DE SÃO MIGUEL DO GUAMÁ, 2017).

Observei também que muitos moradores do Canta Galo têm migrado para a cidade, em busca de ocupação fora do extrativismo. As reflexões sobre este assunto conduziram conversas sobre a ausência do Estado para garantir a segurança alimentar e gerar excedentes para comercialização.

Nos espaços de terra firme, as aberturas de roçados devem respeitar as matas ciliares e áreas definidas para reserva florestal. No que se refere à criação de animais de médio e grande porte, já se tem a preocupação de cercar a área, respeitando as áreas de preservação e por fim em formas de valorizar os produtos do extrativismo vegetal. São ações simples, mas que fazem a diferença para a sustentabilidade da comunidade.

4.2 Menino Jesus

A Comunidade Quilombola Menino Jesus, fica localizada no KM 20 da PA 322, adentrando ao Ramal Pueirinha, município de São Miguel do Guamá. Também conhecida como Pueirinha, devido ao PEC – Pueirinha Esporte Clube e ao Campo de futebol, localizado no arraial da comunidade. Apresenta uma área total de aproximadamente 288, 9449 há e aproximadamente 20 famílias.

Certo “afastamento” criou condições bastante peculiares na configuração sócioespacial desta comunidade, por exemplo, a presença somente da igreja cristã católica e os valores identitários, tendo como elemento a resistência cotidiana no processo silencioso e gradativo através do qual frearam a notória invasão de terras contestando abertamente as relações de propriedade em termos de ocupação e uso efetivo, recebendo assim, o título definitivo, em 2008. Segundo Loureiro e Pinto (2005, p.78),

nos anos de 1970 e 1980, a terra pública, habitada secularmente por colonos, ribeirinhos, índios, caboclos em geral, foi sendo colocada à venda em lotes de grandes dimensões para os novos investidores, que as adquiriam diretamente dos órgãos fundiários do governo ou de particulares (que, em grande parte, re-vendiam a terra pública como se ela fosse própria). Em ambos os casos, era freqüente que as terras adquiridas fossem demarcadas pelos novos proprietários numa extensão muito maior do que a dos lotes que originalmente haviam adquirido.