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O mundo de Jean Lorrain (1855-1906), como a sua actividade literária, oscila entre a tentação do snobismo, a prática do dândi e a frequentação de ambientes ambíguos e sórdidos. Do mesmo modo, a sua escrita oscilará entre a recorrente convocação intertextual de versos de Baudelaire e de Rimbaud (poetas que sintomaticamente, na segunda metade de oitocentos, em França, inauguraram definitivas vias da modernidade poética), as pertinentes e eruditas observações sobre autores seus contemporâneos (Schwob, Rollinat, Huysmans) e trechos ostensivamente “obscenos”, com largos passos em argot.

Lorrain apresenta-se, deste modo, como um ser eminentemente contraditório, profundamente marcado por uma notória ambiguidade sexual que se manifesta não só na sua vida326 como também na sua produção literária. A ambiguidade em Lorrain

é, em nosso entender, sintoma da sua própria sensibilidade decadente.

Contrariamente a Mario Praz que, após ter dedicado algumas páginas ao nosso autor327, formula um juízo de valor menos positivo sobre a sua personalidade e

obra, Carassus escreve:

Ecrivain maniéré et puissant, trop pressé pour ne point se plagier lui- même et plagier les autres, il réussit à se créer une légende dont il fut sans doute l‟esclave. D‟une verve mordante il stigmatise les snobs, mais son oeuvre et sa vie contribuent à façonner le snobisme.328

De facto, na obra de Jean Lorrain manifestam-se, de um modo claro, algumas das tendências da estética decadente329: o binómio amor-morte, o fascínio pelo maravilhoso, o gosto do macabro, da putrefação. Mas também a predilecção pelos ambientes e atmosferas rarefeitos e preciosos onde, contudo, se pressente algo de

326 Para além das biografias já citadas, consulte-se o também já citado estudo de Phillip Winn,

Sexualités Décadentes chez Jean Lorrain: le héros fin de sexe, Op. Cit.

327 Mario Praz, Op. Cit.,. Sobre Jean Lorrain vejam-se, sobretudo, as pp. 321-24, 333-41 e passim. 328 Carassus, Op. Cit., p. 434.

329 Veja-se o verbete da autoria de José António Costa Ideias, “Decadentismo”, in E-Dicionário de

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profundamente inquietante e sórdido. Repare-se que, sintomaticamente, Carassus intitula, na sua obra, o capítulo dedicado a Jean Lorrain “Lorrain ou le démon de la perversion”. É, de facto, uma “atmosfera perversa” que se respira, não apenas nessas espécies de súmulas da literatura decadente que são os romances Monsieur de

Phocas e Monsieur de Bougrelon e nas fábulas em que se movem princesas cruéis e cínicas, mas também nos relatos propriamente fantásticos. Afirma ainda Carassus:

Lorrain se partage entre l‟horreur et la curiosité de la chair; sa curiosité s‟unit à un goût de violence barbare; les rêves moyennâgeux coexistent chez lui avec les obsessions écoeurantes, une certaine candeur naïve avec la perversité.330

A algumas dezenas de anos destas afirmações do estudioso, Jean Lorrain é hoje o escritor decadente em cuja obra a crítica recente “revisita” os traços mais característicos do fantástico decadente.

Como já referimos, os autores do fantástico deste período colocam-se numa relação dialogal (se bem que antagónica) com a Ciência: «La science moderne a tué

le Fantastique et avec le Fantastique la Poésie, Monsieur, qui est aussi la Fantaisie: la dernière Fée est bel et bien enterrée et séchée comme un brin d‟herbe rare, entre deux feuillets de M. de Balzac.»331. A personagem que assim exprime os seus juízos

de valor sobre as relações entre o fantástico e a ciência no conto de Jean Lorrain – o interlocutor do “électricien” Folster – acaba por se confessar “de la vieille école”, como “de la vieille race” era o interlocutor do conto de Maupassant “La Peur”. Trata- se, em ambos os casos, de uma personagem que constitui uma espécie de laudator

temporis acti, ainda ligada ao conceito romântico de fantástico, saudosa do encanto de Hoffmann. Mais interessante e explícita é a resposta do electricista que vive, de facto, a sua época: «jamais le Fantastique n‟a fleuri, sinistre et terrifiant, comme

dans la vie moderne! Mais nous marchons en pleine sorcellerie, le Fantastique nous

330 Carassus, Op. Cit., p. 435.

331 Jean Lorrain, “Lanterne magique”, in Histoires de masques, Saint-Cyr-sur-Loire, Christian Pirot, 1987., p. 38. Repare-se na crítica ao projecto realista de Balzac.

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entoure...»332. É esta personagem dos “tempos modernos” que acaba por revelar ao seu interlocutor (“apaixonado” por “paisagens encantadas” e “artificiais”) o fantástico “sinistro e aterrador” da vida quotidiana. Noutro dos seus contos (“L‟Une d‟elles”), Lorrain põe na boca da protagonista as seguintes palavras: «Raconte-moi

une histoire, mais bien ignoble, qui donne la chair de poule et en même temps mal au coeur, une histoire comme en invente Marcel Schwob». É significativo que Lorrain atribua às narrativas de Schwob os mesmos elementos e componentes do fantástico que reconhece nos seus próprios contos. O medo (la chair de poule) e o mal-estar, a inquietação (mal au coeur). Os escritores de finais de oitocentos partilham, deste modo, uma mesma poética do fantástico e, se bem que de modo diferente, todos eles tendem a exprimir as mais profundas inquietações anímicas da época.

Se em Maupassant o fantástico nasce sobretudo do medo, do desconhecido e inexplicável, do frisson de l‟inconnu voilé333, em Jean Lorrain (como em Schwob334)

o fantástico nasce do terror. São estes os “dados novos” em que se funda o “novo fantástico”.

Os autores da narrativa fantástica decadente irão aderir programaticamente a esta “poética do terror”, de um terror fortemente interiorizado, persuadidos, deste modo, de que as suas criações literárias se encontram em sintonia com a época. Trata-se, como já referimos, de um terror “interiorizado”, não de um simples frisson, mas de algo que implacavelmente irá consumir o sujeito em crise, paralisando-o, revelando-lhe o inquietante vácuo da sua existência, fazendo-o tomar dolorosa consciência do desgosto de si mesmo e do mundo que o rodeia, levando-o, em última instância, à experiência da loucura. Estas características do fantástico decadente encontram-se de acordo com a sensibilidade da época finissecular. O fantástico

332 Ibidem, p. 40.

333 Guy de Maupassant, “La Peur”, in Le Horla, Op. Cit., p. 207.

334 É significativo que Schwob tenha privilegiado o terror e a piedade enquanto motivos fundamentais da narrativa moderna. A este propósito veja-se o prefácio do autor a Coeur double. Mimes, Paris, UGE, 1979, pp. 7-30.

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decadente revela-nos que o homem que descobriu a sua individualidade se encontra agora irremediavelmente só. Os temas do sonho, a exploração dos universos oníricos, da noite, na esteira dos românticos, tornam-se temas privilegiados dos decadentes, que os tratam com tonalidades de angústia. De um modo geral, os escritores decadentes expressam uma mesma visão disfórica da realidade, uma comum inquietação. O fantástico decadente revela-se, assim, como o território privilegiado para dar forma ao exercício de um olhar diferente sobre a realidade, sobre o eu, sobre o outro. Deste modo, o fantástico decadente será, talvez, o campo no qual se reflecte com maior clareza a sociedade de finais de oitocentos, os seus mitos e as suas angústias, expressão da crise do indivíduo e dos seus valores, da crise do intelectual face a uma sociedade que lhe é “estranha”. Bozzetto afirma, a este propósito:

le fantastique est pour cette époque un moyen privilégié d‟aventure en accord avec une écriture. Il permet (...) l‟inscription figurale de l‟impossible à concevoir. Seul il rend visible la réalité sentie comme hétérogène – au moment où la crise dans le monde extérieur et dans le monde intérieur coïncident. En lui et par lui s‟expriment l‟incertitude du regard et de la pensée.335

Jean Lorrain é um escritor que (como, aliás, Fialho de Almeida) se demarca claramente dos cânones da ficção realista-naturalista, sem contudo pôr radicalmente em causa os pressupostos básicos da visão naturalista (a degenerescência física e psicológica em relação de homologia com a decrepitude moral e social), largamente dominante na época. No entanto, os seus contos e narrativas breves, nomeadamente os seus relatos fantásticos, como teremos ocasião de demonstrar, tendem a “desestabilizar” os padrões convencionais deste tipo de realização narrativa. Deste modo, Jean Lorrain é, de facto, um dos escritores mais significativos, na França finissecular, do “novo fantástico”336, comentador satírico e irónico da

“modernidade”, o escritor que, quiçá, melhor soube descrever a ambígua e polimorfa capital francesa, metrópole da decadência, dando a ler nos seus textos os “fantasmas” (individuais e colectivos) de uma época de crise.

335 R. Bozzetto, “Le Fantastique fin de siècle hanté par la réalité”, Op. Cit. p. 20. 336 Cf. J.-B. Baronian, Un nouveau fantastique, Op. Cit.

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Como referimos, nos últimos anos, sobretudo em França, os estudos sobre Lorrain têm-se multiplicado e a sua fragmentária obra tem sido objecto de constantes reedições337. Esta “recuperação” da obra de Jean Lorrain contribuiu, em larga medida, para que a crítica passasse a considerar os textos do esteta finissecular como uma das mais veementes expressões de modernidade literária, pela sua capacidade de evocar os temas do imaginário decadente num quadro realista. Gérard Peylet, por exemplo, afirma a este propósito: «Jean Lorrain sort le conte fin de siècle de la

gratuité en atteignant une modernité qui sauve cette littérature de l‟impasse dans laquelle l‟esthétisme menaçait de l‟enfermer.»338.

De Sonyeuse (1891) a Buveurs d‟Âmes (1893), de Sensations et Souvenirs

(1895) a Un Démoniaque (1895) e a Histoires de Masques (1900) que encerra o ciclo de relatos fantásticos e alucinatórios deste autor, encontram-se alguns dos motivos e temas fundamentais que constituem a base sobre a qual se desenvolverão as obsessões de Lorrain. O relato fantástico decadente em algumas obras de Jean Lorrain - paradigma do esteta finissecular –, assume-se como experiência imaginária dos limites da razão, manifestação clara do vector irracional que “trabalha” o Fim- de-Século europeu, acentuando a importância da máscara, dos “jogos de artifício”, da angustiada exploração dos abismos do "eu".

Jean Lorrain move-se quase sempre num mundo dominado por um insuperável terror, num universo marcado por uma atmosfera de «humidité fade d‟un éternel ciel gris», onde a chuva e o nevoeiro dão frequentemente origem a um desconcertante sentimento de degenerescência, de putrefacção e de desgosto.

337Cf., em particular, a colecção “Bibliothèque Décadente”, dirigida por Jean de Palacio, nas edições Séguier.

338 G. Peylet, La Littérature fin de siècle..., Op. Cit., p 105. Vejam-se igualmente as já citadas biografias de Jean Lorrain, fundamentais para o estudo de um autor em que a relação arte-vida é, de facto, indissociável.

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A cidade, os grandes espaços urbanos – incessante “cenário” de grande parte das suas narrativas breves – mais do que ambígua é cruel. E a noite é o momento, por excelência, da eclosão das visões, das alucinações, numa obscuridade povoada por seres inquietantes, misteriosos e indefiníveis:

La terreur, c‟est surtout de l‟imprévu, et si la nerveusité des peureux s‟exaspère dans l‟obscurité, c‟est que cette nuit aveugle est peuplée pour eux de fantômes, auxquels ils ne peuvent donner de formes (...) l‟ombre silencieuse et hostile recèle tout l‟infini dans le mystère et toute l‟épouvante dans l‟inconnu ...339

A obscuridade, com efeito, é povoada com formas indistintas, «grimaces

flottantes, arbres qui veulent saisir» e num crescendo de «agrandissements subits

d‟objets inanimés, qui s‟animent dans l‟ombre et que l‟ombre déforme et dont l‟ombre menace», cria-se no leitor – através da repetição do vocábulo “sombra”,

ambígua de per se - uma sensação de medo. Quem, na infância, experimentou estas sensações, prossegue Lorrain, sempre transportará consigo «la notion de l‟invisible et

le sens du mystère flairé et pressenti»340. O mistério, o desconhecido, concretizam- se, no mundo fantástico-alucinatório de Jean Lorrain, na imagem da máscara, elemento profundamente radicado no imaginário decadente e largamente utilizado por outros escritores deste período.

339Jean Lorrain, “Trio de masques”, in Histoires de Masques, Op. Cit., p. 62. 340 Ibidem, p. 63.

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