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UNIVERSOS ARQUETÍPICOS: SÉRIE IMPRESSÕES MOMENTOS I, II E

A partir do verbete de dicionário ‘imprimir’, deu-se início à série Impressões: Momento I, Momento II e Momento III, proposições que tiveram como referência iconográfica a imagem de um cilindro gravado com cenas de caça, da Mesopotâmia, cerca de 2250-2150 a.C. (período árcade) e sua impressão sobre uma placa de argila.

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Naquele momento, havia a curiosidade sobre técnicas de imprimir e de algo perceptível além dos sentidos quando, por detrás das imagens, havia sempre um universo de símbolos que não se faziam transparentes no primeiro olhar. Sobretudo pelo fato dessa placa de argila ter sido ‘gravada’, o que enfatiza o gesto atemporal das impressões, isto é, reafirma as acepções de marca e registro de um corpo sobre uma superfície como uma ação recorrente do ser humano.

Sabe-se que cabe ao artista-pesquisador em artes se integrar ao universo simbólico, tentando desvendar seu significado nas obras, pois:

[...] uma palavra ou imagem simbólica tem um aspecto “inconsciente” mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado [...] Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance da nossa razão. [...] por existirem inúmeras coisas fora do alcance da compreensão humana é que frequentemente utilizamos termos simbólicos como representação de conceitos que não podemos definir ou compreender integralmente. (JUNG apud GONÇALVES; TESCHE, 1998, p.97)

Compreendendo-se o símbolo dessa maneira, ao expressar as nuances de uma produção inconsciente de imagens, percebe-se que é preciso ir mais a fundo na interpretação destes, pois “precisamos de imagens que efetivamente nos deem insight às profundidades arquetípicas de nossa experiência de vida; de outra forma, temos apenas explicações superficiais que permanecem nos níveis puramente pessoal, social e físico” (MOORE, 1999, p. 253). Mesmo que os arquétipos nunca possam ser

Figura 1: Cilindro-carimbo e placa de argila.

19 conhecidos em sua totalidade, mas apenas vislumbrados parcialmente, como diz Carl Gustav Jung (2016), é no âmbito das artes que eles se expressam mais facilmente.

Por isso é latente a necessidade em aprofundar temas que possam transcender o nível pessoal para compreender a coparticipação no processo da vida como um todo. Busca-se na experiência artística o meio de adentrar mais facilmente na linguagem simbólica para familiarizar-se com o campo arquetípico.

Paralelamente, optou-se por trabalhar com as ‘impressões’ no plural para conhecer os polissêmicos sentidos semânticos e técnico-gráficos que a palavra proporciona ao incorporar uma variedade de processos e técnicas. Inicialmente, o tema foi explorado pela materialidade de corpos que se atritam e deixam marcas sobre si, numa relação indiciática entre objetos e superfícies.

‘Impressões’ tornou-se, portanto, um conceito, e as técnicas utilizadas geraram objetos, gravuras e desenhos que foram montados em três instalações contíguas. Assim, os elementos compositivos foram escolhidos por associação e correlação do universo arquetípico dos materiais e dos suportes de ação.

Quanto aos materiais e suportes, a argila foi a matéria-prima principal em três estágios distintos de sua utilização: argila em natura, biscoito (ou terracota) e vidrado. E dessa escolha resultaram as três instalações da série Impressão: Momento I, II e III.

2.1.1 SÉRIE IMPRESSÕES MOMENTOS I, II E III

2.1.1.1 MOMENTO I: IMPRESSÕES ZODIACAIS

Placas de argila impregnadas de outros materiais, disco de arado, desenhos dos glifos zodiacais compuseram uma mandala, onde cada signo solar4 ocupou sua

4 Os signos de zodíaco são doze e “representam as partes da eclíptica nas quais o sol parece passar sucessivamente. Cada signo cobre trinta graus de um círculo de 360”. (AUBIER, Catherine. Dicionário Prático de Astrologia. Trad. Marlene Souza Santos e Léa Fiss Carmona. São Paulo: Melhoramentos, 1988).

20 casa5 de origem. Os atributos designados a cada signo foram representados com elementos, imagens ou objetos que correspondessem aos conteúdos e propriedades dos arquétipos de cada signo zodiacal, uma ligação local e cósmica.

Considera-se que a linguagem astrológica tem sido utilizada através do tempo para “manifestar algum tipo de simbolismo que reflita a íntima correspondência que há entre os movimentos do céu e os acontecimentos na vida humana terrestre” (HARRES apud LEWIS, 1994, p. XV)6. Nada mais oportuno fazer uso desta linguagem para vislumbrar correspondências no percurso criativo.

5 Os signos do zodíaco referem-se à natureza da pessoa e as casas astrológicas ao seu ambiente, existindo uma associação entre cada um dos 12 signos e cada uma das 12 casas”. (LEWIS, 1997, p. 149)

6 De acordo com sua história, a astrologia, antes considerada uma ciência, passou a ser combatida pela ciência e pela religião. E a partir do período medieval era considerada superstição, como atesta Lewis: “Desde o iluminismo, o mundo ocidental tem sido abrigo para um expressivo grupo de cientistas e admiradores da ciência que têm deposto contra a religião e qualquer coisa que ouse sugerir que o

Figura 2: Impressões Momento I, instalação, 1999.

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As forças astrológicas são invisíveis, assim como a gravidade, mas ambas podem ser estudadas a partir de seus efeitos, os seus impactos sobre as pessoas e acontecimentos da humanidade. Diferente da astronomia, que estuda os astros para entender eventos celestes, a astrologia tem como objetivo estudar a relação dos astros com os eventos humanos. “Pois o firmamento não é um mero céu estrelado cósmico, mas um corpo que, por sua vez, é uma parte ou um conteúdo do corpo humano visível” (JUNG, 2013, p.26).

Tão milenar quanto o contato do ser humano com a astrologia, também é milenar a produção de artefatos e objetos feitos de cerâmica, uma técnica que conta a história da própria humanidade. Assim, a associação da astrologia com as técnicas de modelagem em argila em Momento I, enfatiza a antiga relação do ser humano com a terra e com os astros, o cosmo7.

ser humano é mais do que um organismo físico-químico. A astrologia tem sido relegada à categoria de superstição irracional, junto com tudo o mais que não se enquadre nessa definição limitada de ciência” (LEWIS, 1998, p. XVIII). Paradoxalmente, os médicos do final do século XV foram astrólogos, que “por dever de profissão, eram os que detinham o conhecimento do céu, eram chamados de iatromatemáticos, que significa os que têm a arte de curar e usam a matemática – a astrologia” (HARRES, In. LEWIS, 1997, p.16). Além de cuidar das tripulações, esses médicos guiavam e treinavam os timoneiros a se orientar no mar, ensinando-lhes a ler a posição dos astros. Não obstante, Paracelso ao desenvolver sua doutrina secreta do arcano, como documenta Carl Gustav Jung (2013), dizia que “o médico não deve ser apenas alquimista, mas também astrólogo, pois uma segunda fonte de conhecimento é o firmamento ou o céu. Em Labyrinthus medicorum, diz Paracelso que as estrelas no céu “devem ser agrupadas” e o médico deveria “tirar daí a sentença do firmamento”. Sem esta arte de interpretação das constelações astrais, o médico seria um pseudometicus (JUNG, 2013, p. 26). 7 Estamos falando tanto da astrologia natal, aquela que se relaciona com o indivíduo, como da astrologia mundial, ou judicial, aquela “que se ocupa de entidades e processos mais amplos” (LEWIS, XLIV, 1997).

Figura 3: Impressões Momento I, detalhe dos signos de câncer, touro e gêmeos.

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2.1.1.2 MOMENTO II: ARANDO O SOLO DAS IMPRESSÕES

A instalação de parede-piso foi constituída por um disco liso de arado, gravuras de metal, matriz de cobre e peças de cerâmica – barras de cerâmica com incisões obtidas pela pressão de objetos e texturas sobre a argila. A cerâmica em estado de biscoito (terracota) foi justaposta ao tema do arado da terra, do preparo do solo para a agricultura, e por isso toma-se emprestado o termo ‘torrões’ – camadas mais profundas do solo, também chamada de leiva8 – para designar as peças de cerâmica.

Assim, barras de cerâmica, representando mostras de ‘torrões’, formavam uma grande corrente iniciando no meio do disco de arado até alcançar o piso, para em seguida estenderem-se sobre as calcogravuras de impressão digital com escrituras de um mantra, descrevendo um percurso com direção e movimento cíclicos.

Discos de arado de borda lisa e recortada são considerados como implemento no preparo primário do solo, um contexto interessante para ser refletido nesse processo. Mais precisamente por ponderar que da mesma forma que o preparo é considerado primário, de igual maneira dava os primeiros passos na construção do processo criativo rumo às camadas mais interiores do terreno da pesquisa. E o arado servira para esse propósito, preparar o solo para uma nova cultura.

8 Quando o arado corta estas camadas promove uma inversão destas; a gradagem do solo (escarificação ou quebra de camadas adensadas ou compactadas), o prepara e o nivela para uma nova “cultura” e os torrões deste solo são trazidos à tona para se misturarem com as camadas mais externas (GALETTI, s/p, 1998).

Fotografia Tonico Portela

Figura 4: Detalhe das barras de cerâmica e gravuras com inscrições

23 Figura 5: Impressões Momento II, instalação, 1999; visão geral (esq.) e detalhes dos torrões, matriz de cobre e gravuras (dir.).

2.1.1.3 MOMENTO III: ARQUEOLOGIAS

A instalação composta por placas de cerâmica vitrificadas, calcogravuras e estruturas de vergalhão de ferro sugeria uma fundação arquitetônica, construída com uma malha de vergalhão no chão, emoldurando as gravuras e as placas de cerâmica.

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Fotografia: Tonico Portela.

Fotografia Tonico Portela

Figura 6: Impressões Momento II, 1999; detalhe da montagem: gravuras, placas de cerâmica.

25 Essa casa, ou melhor, esse arcabouço de casa, se conformou como suporte ideal para imprimir algumas considerações sobre individualidade, memórias e desejos que estavam representados por relevos de objetos e de utensílios correlacionados à sala, ao quarto de dormir, ao banheiro e à cozinha.

A relação entre a obra e a arqueologia é estabelecida “para dar algum sentido aos restos de material do passado [...]” (RAHTZ, 1989, p.9) e do presente. Neste sentido, a definição de Philip Rathzt vem elucidar essa intenção:

A arqueologia é o estudo da cultura material em sua relação com o comportamento humano – as manifestações físicas das atividades do homem, seu lixo e seu tesouro, suas construções e seus túmulos. Ela se ocupa também do ambiente em que o gênero humano se desenvolveu e no qual o homem ainda vive. (RAHTZ, 1989, p. 9)

Mas Momento III refere-se a uma arqueologia simbólica, diferente daquela comumente utilizada em aferições científicas. Neste aspecto, percebe-se a nuance que distingue a arte da ciência. Na arqueologia de Rathz utilizam-se procedimentos técnicos que venham aferir e determinar tipos de cultura material produzida pelo ser humano num determinado tempo e ambiente. No entanto, recorre-se à arqueologia para dar sentido poético aos “tesouros” e “lixos” pessoais do processo criativo, sem ter que chegar a qualquer verdade. É importante ressaltar que a arte não está a reboque das ciências, mesmo quando delas se aproxima. A arte se apropria de temas, mas não cabe a ela verificar, descobrir uma verdade.

Fotografia: Tonico Portela.

26 Os objetos escolhidos para gravar nas placas de cerâmica, o preparo da cerâmica em três etapas – modelagem em argila, biscoito e vitrificação – e as leituras simbólicas sob a luz da astrologia davam sentido para mim, pois vivia o momento de construção da residência onde moro e fazia parte de um grupo de estudo em astrologia holística. Cada passo na construção da obra parecia ter um desencadear de correspondências com o sentido que queria dar à vida. Estava ampliando os dados coletados para alargar a compreensão da relação entre arte e vida, numa tentativa, embora ingênua naquela época, de conhecer os reais constructos da minha prática artística.

Se “as artes nos oferecem um caminho através de nossas dificuldades, com a luz moderada da imaginação em vez da lâmpada resplandecente do esclarecimento” (MOORE, 1999, p. 255), constata-se agora que muitas perguntas surgem e poucas respostas são encontradas. Isso se deve ao fato de o trabalho artístico ter revelado que há muito a aprofundar nas questões por ele suscitadas.

Conhecer e articular os princípios de arquétipo durante o processo criativo e saber que o pensar na arte como agente transformador encontra eco na ciência, continuam sendo fatores imprescindíveis para se fazer uma leitura do percurso artístico. Perceber através de Moore e de Jung que nossas experiências comuns estão enraizadas em formas fundamentais que modelam e se reproduzem na vida dos seres humanos, e que estas formas estão na base do ser, desvela a dimensão e influência que os arquétipos exercem, dá “conta de que sou um indivíduo, que minha experiência do arquétipo [...] será exclusivamente minha e que, não obstante, ao comparar minha experiência àquela dos outros, posso apreciar algumas das fontes profundas de meu trabalho” (MOORE, 1999, p. 253).

Mas se foram apenas as camadas de poeira da superfície que ficaram deslocadas, que fora apenas o mapa de uma revolução solar9 (método de prognóstico astrológico) que se inscreveu, ou que fora uma representação de casa-indivíduo aquela erguida ao longo dos cursos-fluxos da investigação. A terra que cultiva, que alimenta e que constrói, foi a terra que deu forma a três momentos interligados pelas

9 Chama-se revolução solar, “um dos métodos para previsão de circunstâncias […] Este retorno solar ocorre no aniversário do indivíduo […] A partir de um mapa de revolução solar, os astrólogos conseguem prever condições para o ano vindouro […] (LEWIS, 1997, p. 464).

27 impressões. Portanto, se desdobraram em novas proposições que deflagrariam os próximos cursos da experiência artística. Hoje percebe-se que as obras produzidas naquele ciclo do processo criativo se tornam imagens com potencialidade arquetípica, pelas quais sou motivado a aprofundar nos mistérios da alma.

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