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II. (EST)ÉTICAS NO DOCUMENTÁRIO MUSICAL

2.1 A ORGANIZAÇÃO DO DISCURSO E A REPRESENTAÇÃO

2.2.3 Universos musicais Explorando a forma

Ao falar de Favela on blast, no primeiro capítulo, fiz referência à voz do documentário como o meio pelo qual o ponto de vista do documentarista se manifesta. Para Nichols, ela [a voz] está relacionada com o estilo, o qual, no caso do documentário “deriva parcialmente da tentativa do diretor de traduzir seu ponto de vista sobre o mundo histórico em termos visuais, e também de seu envolvimento direto no tema do filme” (2005, p.74).

Concordando com a afirmação de Nichols, mas com a proposta de ampliar os “termos visuais” que o autor menciona para uns “termos estéticos” que contemplem a tradução tanto visual como sonora do mundo, este item se propõe estudar “axiográficamente” as indagações estéticas do corpus e sua relação com a ética.

Para isto, seguem cinco cenas, uma de cada filme, a partir das quais pretendo desenvolver as reflexões correspondentes a este item:

Primeiro exemplo. Sin mapa. No clímax do ataque de pânico de René durante a visita em La Rinconada, no Peru, o cantor pede desesperadamente a Marc de Beaufort que o acalme. Durante a cena, que se vale da confusão psicológica do artista, alternam-se imagens

[Figura 5] e sons da situação (diálogo, respiração, ruídos) com a gravação da canção de Calle 13, “Algo com sentido”. Entre palavras faladas e cantadas, escutamos:

- René: tranquilízame, ¿no me voy a morir? - Música: nada de lo que digo tiene sentido.

- René: lo que yo no te he dicho a ti es que yo soy hipocondríaco entonces cuando me empiezan a hablar mucha mierda...

- Música: estoy botando fluido por los oídos. - René: la mente me corre, ¿me entiendes? - Música: ya yo no soporto este ruido. - René: me vuelvo loco…

- Música: por favor que se detenga la orquesta o si no voy a volarme la cabeza,

gracias.

Figura 5 - Montagem de imagens e trechos da canção alternados durante o pânico de René

Segundo exemplo. Faço de mim o que eu quero. Encerrando o documentário, Petrônio Lorena e Sergio Oliveira batem palmas como se fossem a claquete que marca o último corte de Faço de mim o que quero. Depois de quinze minutos de provocações estéticas, o último corte dá passo a uma sequência de créditos pouco usual. Duas bailarinas dançam sensualmente em frente à câmera, mostrando os créditos de direção, produção, etc. escritos nos seus corpos – que não se preocupam por ocultar celulite, estrias e demais “imperfeições” físicas – [Figura 6]. A sequencia é musicada com a canção que dá nome ao filme:

Faço de mim o que quero, faço o que quero em mim. Faço às vezes uma boa,

mas também faço algumas ruim. Porque, meu bem,

ninguém é perfeito e a vida é assim. Porque, meu bem,

ninguém é perfeito e a vida é assim […]

Terceiro exemplo. Sou feia mas tô na moda [Já mencionado no primeiro capítulo]. Animação em 2D que mostra um casal “brega-chique” brindando na praia. De repente sua tranquilidade é interrompida por uma enorme “mulher-robô” que chega, os cobre com sua sombra e os mata pisando neles com seu sapato-plataforma. As outras pessoas que se encontram no lugar fogem apavoradas e nesse momento a “mulher robô” recebe uma outra colega idêntica, dançam na praia enquanto a música retumba dos alto-falantes integrados em seus corpos. Durante esta cena aparecem os créditos do filme (nome, produção, fotografia, edição e direção) [Figura 7].

Figura 7 - Sequência de créditos Sou feia mas tô na moda

Quarto exemplo. Favela on blast. Como acontece em vários momentos deste filme, no meio de duas sequências diferentes é inserido um pequeno clipe descritivo que faz as vezes de transição [Figura 8]. Aqui, vemos como no meio de uma rua, um grupo de homens fabrica artesanalmente uma enorme caixa de som. Cortam a madeira, colam as partes e encaixam cada peça até chegar ao resultado final, uma grande caixa de som que muito provavelmente amplificará as batidas do funk carioca em algum lugar do Rio de Janeiro. Os fabricantes posam orgulhosos ao redor do novo alto-falante. Corte.

Figura 8 - Elaboração de um alto-falante em Favela on blast

Quinto exemplo. Free tempo. Acusado por narcotráfico, o cantor porto- riquenho Tempo, foi preso em Miami, Estados Unidos. Em Free tempo, o cantor relata: “Yo escribí una canción que era bien real y era una canción en que yo hablaba en tercera persona y ellos la usaron como fianza para decir que yo era un peligro para la sociedad”. O depoimento

é seguido do áudio de “Narcohampón”, que acompanha fragmentos da letra em inglês, imagens de arquivo, textos explicativos sobre a situação e finalmente – sobre outra canção – uma imagem de Jesus e outra imagem de arquivo da mulher e da filha do cantor [Figura 9]. Cantor e pessoa. Acusação e defesa. Bem e mal. Tudo construído sobre claras e simbólicas imagens visuais, e sobre o efeito empático da música descrito por Chion. A emoção nos pede acreditar em Tempo.

Figura 9 - Imagens que apoiam a história de “Narcohampón” em Free tempo

Nos cinco momentos descritos anteriormente, percebe-se uma ampla gama de olhares e tratamentos estéticos que deixaram como resultado cinco representações distintas dos universos musicais abordados nesta pesquisa. Alguns mais “plásticos” e outros mais “informativos” – ou uns mais poéticos e outros mais expositivos –, todos aproveitaram de diversas formas as imagens, sons e ruídos dos lugares e personagens captados com as lentes de oito documentaristas com formações, olhares e origens diferentes.

Vemos como planos, cortes e movimentos são, por um lado, rastros de um processo mecânico (da câmera), e por outro um processo metafórico (do olhar) em que o registro da câmera reflete “as posições éticas, políticas e ideológicas de quem a usa” e onde o estilo transcende as “técnicas vazias de significado, sendo em si o portador do significado” (NICHOLS, 1991, p.119).

O que comunicam o jogo de palavras e sons da cena de Sin mapa Calle 13, os créditos escritos no corpo de Faço de mim o que quero, a sequência da elaboração alto-falante em

Favela on blast, a animação em Sou feia mas tô na moda, e a história de Tempo na prisão em Free tempo?

Excetuando Free tempo, todos os documentários inserem em diversas cenas elementos que descontraem com humor algumas discussões que bem podem ser suscitadas pelos documentários. A inexperiência dos integrantes de Calle 13 e algumas reflexões obvias por parte do seu líder, são enriquecidas com elementos visuais e sonoros54 inseridos na etapa de pós-produção, tal como o evidenciou a cena de Sin mapa descrita em páginas anteriores. Da mesma forma, inúmeras canções da banda servem também de trilha sonora em momentos nos quais a palavra poderia ser um tanto obvia e desnecessária. O documentário, como o grupo, aposta por manter no meio de tanta denúncia, um espaço aberto ao humor, que se bem não deixa de ser crítico, gera momentos de descontração vitais na obra fílmica.

Por sua vez, a sequência de créditos de Faço de mim o que quero, como a maioria das cenas do documentário, parece deslocar o espectador com respeito aos formatos e linguagens habituais, pelo menos no que se refere a documentários como este 55. Como foi tratado no item 2.1, são recorrentes as imagens que tendem a exotizar os universos musicais e os personagens que aparecem ao longo do filme.

Tanto os textos escritos sobre os corpos das dançarinas, quanto as diversas imagens de performances, os jogos de luz e os objetos registrados, provocam o espectador no que diz respeito ao gosto. Lorena e Oliveira se valem do que é - no meu modo de ver - “excêntrico”, pondo o lado estético do filme no primeiro plano, sem justifica-lo verbalmente. Tal tratamento – um tanto contemplativo – permite ver, também, um olhar estrangeiro e externo dos diretores frente ao seu objeto, mais uma constante entre os documentários do corpus, já que nenhum deles pertence ao universo registrado.

Em Sou feia mas tô na moda, a animação das mulheres robôs parece ser uma das poucas apostas em termos de estética visual por parte da diretora. A mensagem é direta. Grandes mulheres aparecem nos cenários mais elitistas do Rio para ocupar as ruas com sua música. Elas são valentes, poderosas e também divertidas. Tal animação é, também, uma das poucas situações que rompem com um tratamento monótono em que um personagem fala, outro contesta, aparece um show e alguém conclui. Fato que diferencia este documentário do

Favela on blast, que procura romper a linearidade da história com ações e imagens que, como

no clipe antes descrito, surpreende o espectador com diversas situações que descontraem o espectador com recursos estéticos que dinamizam o filme.

54 Imagens de arquivo, fragmentos musicais, animações, etc.

A partir das anteriores observações nos debruçaremos, a partir de agora, sobre o tipo de discurso que foi formulado pelos documentários. De que forma podem ser lidos os jogos estéticos destes filmes, os depoimentos dos seus personagens e as escolhas dos seus diretores? De que forma o corpus representa comunidades que na introdução deste texto afirmei como frequentemente marginalizadas?