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2. A LMNHA DO MOVMMENTO UORPORAL 66 �

2.2 O Uorpo na Antropologia 75 �

A visão, já apontada acima, de que o corpo é formado por sistemas biológicos e também sob a influência dos fatores sociais não é muito antiga na historia da Antropologia. De acordo com Rodrigues (2003), apenas nas últimas três ou quatro décadas é que se consolida uma visão mais sistêmica e orgânica a respeito desse campo30. Antes, o corpo era estudado sobretudo a partir da correspondência entre os sistemas biológicos, fortemente influenciada pelas teorias darwinianas. Darwin compreendia e reconhecia a influência de fatores externos na formação do corpo, mas “esses fatores ambientais foram identificados mais como as circunstancias físicas da existência (temperatura, umidade, altitude, disponibilidade de alimentos, etc.) do que como o envolvimento coletivo que preside a coexistência dos organismos” (RODRIGUES, 2003, p. 72). Tal visão, segundo o autor, apesar de atualmente ser considerada arcaica, afetou a antropologia do corpo e contribuiu para ressaltar os aspectos comportamentais dos seres vivos em geral: “Sobretudo, este tipo de antropologia [tradicional] praticamente desprezou as dimensões aprendidas e culturais da corporeidade [...]” (Idem).

Por meio da antropologia do corpo, pode ser observada a influência sociocultural na formação do corpo como um todo e, ao mesmo tempo, a manifestação de sua estrutura física e de seu comportamento mecânico, características que são biológicas. Como resultado dessa percepção, é importante que se visualize o corpo como uma estrutura em movimento que é constituída em função dos estímulos provenientes dos exercícios físicos e da relação com o outro. Assim ele se molda, por meio do treinamento, da convivência social e, em contrapartida, influencia esses outros corpos com os quais interage.

Pesquisadores tais como Émile Durkheim (1858 – 1917) e Marcel Mauss (1872 -1950), através de estudos realizados por volta do final do século XIX e na ������������������������������������������������������������

30 A julgar pela data de publicação do livro, hoje, atualizando, diríamos: “nas últimas

primeira metade do século XX, “começavam a descobrir que o corpo humano era muito mais que um dado biológico”. Tais autores puseram em “evidência diferenças gigantescas entre o humano e o corpo simplesmente animal” (RODRIGUES, 2003, p. 74). Franz Boas (1858 – 1942) foi um dos pioneiros no estudo da influência cultural na formação do corpo físico. De acordo com Rodrigues (2003), em um de seus trabalhos31, Boas (1974, apud RODRIGUES 2003), pesquisou sobre o formato do crânio nos descendentes de imigrantes nos EUA. Percebeu que apresentavam certas diferenças se comparado aos dos seus antepassados europeus.

Entre outras pesquisas igualmente interessantes sobre as transformações do corpo em contextos socioculturais, está a do pesquisador Robert Hertz (1980). Por meio de uma publicação intitulada A preeminência da Mão Direita, de 1909, sem pretender, inicialmente, que fosse uma investigação sobre o corpo, acabou por reunir um material etnográfico abundante como arcabouço para seu texto. O objetivo inicial “era fazer um paralelo e constituir um estudo sobre a polaridade religiosa entre o sagrado e o profano” (RODRIGUES, 2003, p. 76). Entretanto, ao mesmo tempo, sua pesquisa se transformou num curioso e importante documento sobre a influência social no movimento do corpo destro. Rodrigues (2003) comentando o resultado dessa investigação, diz que

Hertz chamou a atenção [para o fato de] que a preferência pela mão direita não se limita a ser uma tendência natural. [...] pode-se constatar, então, que em nenhum lugar a desteridade é aceita como uma necessidade natural apenas: representa também um ideal o qual todos devem se conformar, uma meta moral que a sociedade nos força a respeitar. (RODRIGUES, 2003, p. 77.)

De acordo com o autor, nem precisaríamos nos apoiar nas reflexões de Hertz (1909) sobre o domínio do religioso para perceber que o mutismo da mão esquerda está impregnado nas práticas sociais minuciosas da atualidade. Abridores de lata, cadernos com espiral, carteiras escolares, maçaneta de ������������������������������������������������������������

31 BOAS, Franz. “Changes in Bodily form of Descendants of Immigrants”. In:

porta, tesouras, saca-rolhas, instrumentos musicais e mais uma série de outros objetos portam evid6encias de terem sido criados para o uso do corpo destro. A pesquisa de Robert Hertz reforça, mais uma vez, a influência do meio externo cultural nas movimentações corporais do indivíduo. E, mais além, os estudos antropológicos não apenas se detiveram sobre as modelagens físicas influenciadas pelo contexto social, mas também se dispuseram a refletir sobre questões complexas que envolvem a espontaneidade e a veracidade dos sentimentos humanos individuais. Os choros e outras ações de um velório, segundo Rodrigues (2003), “não são fenômenos exclusivamente psicológicos e fisiológicos” (p. 81), mas são também reflexos sociais “marcados eminentemente pelo signo da não-espontaneidade” (MAUSS32 apud RODRIGUES, 2003, p. 81). Observando a emoção das carpideiras, que choravam nos velórios como atrizes remuneradas para acentuar a tristeza nesse ambiente, notar-se-á que, contaminadas pela excitação excessiva do ambiente, pela tristeza artificializada, “passam a verter lágrimas efetivamente tristes, sentindo as emoções que foram pagas para fingir – lágrimas que expressam e suscitam tristezas ‘verdadeiras’” (RODRIGUES, 2003, p. 82). Como fenômeno cultural, o corpo é assim estudado hoje, a partir de um considerável referencial antropológico, histórico e sociológico. O conhecimento estabelecido a partir desses campos veio sendo afirmado e criticado década a década, de tal forma que, segundo Rodrigues (2003), é possível ser referido categoricamente desta forma:

Em primeiro lugar, como a escola francesa nos ensinou, o corpo humano é muito menos biológico do que se pensava. Em segundo lugar, [...] o corpo humano é muito menos individual do que costuma postular o pensamento influenciado pela visão de mundo de nossa cultura individualista. [...] Em terceiro, que o corpo humano é socialmente construído, [como, por exemplo, um menino selvagem que convive com animais, aprende a farejar e a se locomover como eles, encurvado, que não seria o “natural” da postura humana]. Quarto ponto, [...] o corpo apresenta as características dos fenômenos culturais; ele é relativo: [varia entre as ������������������������������������������������������������

sociedades]. Também é histórico: não é o mesmo segundo os diferentes tempos de indivíduos, grupos e sociedades. Quinto ponto, como queria a escola, as sociedades constroem o indivíduo.33 (RODRIGUES, 2003, p. 87.)

Entretanto, foi Marcel Mauss (1974 apud RODRIGUES, 2003) quem publicou em 1936 um artigo intitulado As Técnicas Corporais, uma comunicação que “de certo modo formalizou a fundação da antropologia do corpo” (RODRIGUES, 2003, p. 84). Nela, elaborou uma “teoria da técnica corporal a partir [...] de uma descrição pura e simples das técnicas corporais” (MAUSS apud RODRIGUES, 2003, p. 85). Seria interessante seguir o raciocínio de Mauss, indo mais adiante em suas proposições nesse ensaio, e pensar nas categorizações enunciadas acima, lembrando que além das gesticulações e expressões faciais que não são as mesmas em culturas diferentes, mas que “variam também [nas pessoas] os ritmos e os movimentos das diversas partes de seus corpos” (Idem, p. 85-86).

É fundamental, para o desenvolvimento de uma movimentação adequada, treinar o corpo. Para tanto, faz-se necessário adotar formas de organização eficientes. Nesse momento é que aparece a necessidade de uma técnica, para dar ao corpo a condição de um mover-se de acordo. A técnica seria, portanto, uma “maneira pela qual os homens e a sociedade sabem servir-se de seus corpos” (MAUSS, apud RODRIGUES, 2003, p. 86): da mesma forma que no interior de determinadas culturas foram padronizadas maneiras de usar a saliva para colar selo ou observar a direção do vento, usar o dedo do pé para auxiliar na tecelagem ou fazer coisas simples como cuspir no chão, engolir comprimidos, etc., no meio artístico das artes cênicas, também são encontradas técnicas criadas para auxiliar a ordenação dos movimentos corporais. Vejamos, a seguir, como são relacionadas algumas técnicas cênicas auxiliares na composição do corpo artístico e do movimento.

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33 De acordo ainda com Rodrigues (2003), depois de ser publicado o livro Vigiar e

Punir, Michel Foucault (1975 apud RODRIGUES, 2003) estabelece uma recíproca para essa afirmação, a de que “uma sociedade se faz fazendo os corpos em que existe” (p. 87).