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Urbanização avassaladora: a destruição da rede hídrica

Como se sabe, muitos bairros se desenvolveram ao longo das ferrovias Sorocabana e São Paulo Railway. Estas, além de incentivarem a urbanização de áreas até então rurais, definiram a malha urbana.

Mais obscuras, no entanto, são as relações que as ferrovias estabeleceram com a rede hidrográfica. Se por um lado a malha ferroviária da Sorocabana e da futura Santos- Jundiaí tomava partido da topografia plana da várzea do rio Tietê, por outro lado subjugava seus tributários, retificando-os em galerias subdimensionadas. Além disso, a malha ferroviária tornou-se uma espécie de dique que represa o escoamento superficial da água da chuva, ocasionando inundações à sua montante.

Dado que a urbanização acompanhava o traçado da ferrovia, não era necessário grande adensamento populacional para que rapidamente as relações da cidade com os rios se tornassem problemáticas nas imediações da orla ferroviária. Neste quesito, a nossa ascendência parece ter desempenhado papel secundário.

A pluralidade de povos que por aqui se instalaram e a constatação de que por toda a metrópole o destino dos córregos foi o mesmo (independente se banhavam bairros dominados por portugueses, italianos ou afrodescendentes) minimiza o peso que a herança cultural desempenhou no processo de transformação e destruição de nossa base hidrológica (na escala do cotidiano, ao menos).

Mais esclarecedora do que a simplista interpretação malthusiana-ambientalista (que evoca o espectro da superpopulação para explicar todo e qualquer problema ambiental) ou a leitura “culturalista” (que expande a ideia do semeador português versus o ladrilhador espanhol, de Buarque de Holanda, para explicar porque “damos as costas” para os rios)22, a destruição da rede hídrica paulistana é mais bem entendida quando

considerados os processos macroeconômicos a que os rios, córregos e habitantes da cidade foram submetidos pela lógica do capitalismo retardatário brasileiro.

Operações típicas da expansão da cidade paulistana, o aterramento de várzeas e a canalização de córregos e rios são fruto da pressão de setores do sistema capitalista para a transformação de corpos d’água em infraestrutura de produção e circulação de mercadorias – quer seja em solo urbano a ser negociado (SEABRA, 1987), em admirável

22 Sem mencionar que a própria teoria de Sérgio Buarque de Holanda já foi questionada por Nestor Goulart

Reis Filho, que demonstrou que não faltaram projetos urbanísticos na era colonial, mas sim eficácia na aplicação das diretrizes urbanísticas da administração portuguesa no Brasil.

máquina hidráulica para gerar energia, em sumidouro para efluentes industriais (JORGE, 2006) ou ainda em avenida de fundo de vale (TRAVASSOS, 2004, 2010) para viabilizar uma sociedade baseada no automóvel.

Os registros históricos permitem observar que inicialmente o córrego Água Preta fazia parte do cotidiano dos moradores de seu vale. Como se pode ver na foto abaixo, muitas vezes foi conferido ao curso d’água um espaço de destaque nas propriedades. Essa relação mudou nos anos 50.

Figura 28 A família Bombarda na ponte que construíram sobre o Água Preta, nos fundos de sua casa (1942). Ao lado, na foto tirada em 1961, observa-se a degradação do córrego. Fonte: WAKAHARA, p. 10, sem data.

Segundo Tramontino (2011, p. 139), a chegada de linhas de ônibus à Pompéia nos anos 40 intensificou o adensamento populacional da região. Em pouco tempo, um grande número de pequenas unidades residenciais instalou-se às margens do Água Preta e o córrego passou a ser utilizado como destino para o esgoto doméstico.

No entanto atribuir ao aumento de população a culpa exclusiva pela degradação do córrego seria um equívoco. Até pouco tempo repleto de pracialidades23, a decadência

do Água Preta envolve outros dois elementos: a retração regional do uso dos espaços livres públicos (fenômeno ligado à popularização da televisão e do automóvel) e a crise no sistema de coleta de esgotos, que nos anos 60 atingiu o mais baixo índice de cobertura do século XX .

O resultado desse adensamento induzido pelo Estado sem a necessária expansão das redes de infraestrutura e para muito além da capacidade de suporte natural do território, foi que o córrego, antes palco de brincadeiras, manancial para dessedentação

23 Segundo Queiroga, pracialidade é uma categoria de entendimento do lugar, uma prática espacial própria

da esfera da vida pública que pode ocorrer em diferentes lugares além de praças ou largos públicos. Ela é caracterizada pela apropriação eventual ou cotidiana que transcende a funcionalidade específica de um local e que o transforma em espaço de encontro e convívio, de manifestações populares e culturais, enfim, da política em seu sentido mais amplo.

de animais e até mesmo fonte de areia para construção, se transformou em um canal de esgoto a céu aberto.

Considerado um problema de saúde pública, em 1965 parte do córrego já estava ocultado em galerias subterrâneas, o que possibilitou a abertura de ruas e faixas sanitárias sobre seu antigo leito. A canalização total consumiu mais uma década. Entre 1985 e 1999, faixas sanitárias ganharam o status de travessas e vielas.

Não bastasse desconsiderar totalmente os processos naturais, a canalização do córrego Água Preta foi tecnicamente precária e toscamente executada.

De acordo com o Estudo de Viabilidade Ambiental (EVA) – Galerias Complementares dos Córregos Agua Preta e Sumaré realizado pelo Consórcio LBR- Hagaplan-Geosonda (2013), acerca da capacidade das galerias existentes, ao longo de 3300 metros há grande variação de seções hidráulicas e declividades (incluindo trechos com declividades negativas!).

Segundo o levantamento, há trechos cuja capacidade de vazão é inferior que segmentos à montante. Outro erro crasso, que beira o inimaginável, é apontado pelo levantamento da Hidrostudio Engenharia citado no estudo de impacto ambiental (EIA) Operação Urbana Água Branca (EMURB, 2009): as ensecadeiras não foram retiradas à época de construção! Ou seja, desde sua inauguração as galerias estavam obstruídas, com menor capacidade de vazão do que a projetada, provocando remanso e escoamento em carga.

O estudo aponta ainda outras deficiências encontradas nas galerias do córrego Água Preta24 que influenciam na sua capacidade de escoamento e que colaboram com o

processo de assoreamento:

-galerias de ligação saliente em relação à parede da galeria principal (provoca perda de carga, turbulência e acúmulo de detritos);

-armadura exposta e saliente (acúmulo de detritos, falta de segurança); -detritos de grandes dimensões (obstrução da seção hidráulica).

Tudo isto, evidentemente, facilita a ocorrência de inundações.

24 Vale destacar que o estudo se refere a deficiências encontradas no conjunto dos córregos Água Branca,

Água Preta, Sumaré, Quirino dos Santos e Pacaembu. É possível, portanto, que alguns desses problemas não estejam presentes nas galerias do Água Preta.

Figura 29 Manchas de inundações nas bacias dos córregos Água Preta e Sumaré.

Fonte: EIA Operação Urbana Consorciada Água Branca. EMURB, 2009.