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2 MEMÓRIAS PROFESSORAS CATEQUISTAS E SUA

3.4 A RELAÇÃO COM OS INSPETORES ESCOLARES

4.1.1 O uso do catecismo em sala de aula

A prática cotidiana do saber escolar denota um conjunto de hábitos que vão integrando-se simultaneamente e formando uma espécie de rotinização, isto é, uma rotina docente que caracteriza o professor, ou, um grupo de professores com interesses comuns. Especificamente no que se relaciona às Irmãs Catequistas, essa rotinização da prática docente estava intimamente ligada ao fazer religioso, inclusive um dos momentos da aula era diariamente dedicado à leitura e explicação do catecismo: no início da aula.

Considerando que a cultura escolar é um processo de práticas escolares que possibilitam a transmissão de conhecimentos e a imposição de valores e condutas destinados à escola (JULIA, 2001), a cultura escolar construída pelas irmãs caracterizou-se pela uniformidade na organização de suas aulas e pelo conhecimento pedagógico atrelado ao conhecimento religioso. Assim, padronizaram normas e finalidades específicas nas salas de aulas, e até mesmo nas escolas por elas administradas, produzindo assim uma cultura escolar conforme os princípios religiosos.

A organização da aula, e até mesmo das escolas, pôde ser percebida nas memórias quando se referiram ao momento dedicado ao ensino do catecismo. Irmã Geraldina lembrou que todos os dias a aula começava com uma oração e que depois da oração ela dava uns 15 minutos de catequese. Nessa linha, a irmã Verônica destacou que todo o tempo em que deu aula, nos primeiros minutos, a aula era de religião; e a irmã Cecília também destacou que era “praxe das irmãs fazerem meia hora, quarenta e cinco minutos de catecismo. Era no horário de aula.” Segundo suas memórias, o momento de oração, leitura e explicação do catecismo era sempre no início, inserido no horário de aula. Depois, seguia-se normalmente com o ensino das disciplinas previstas no cronograma. Diante dessas narrativas, a prática docente das catequistas durante a leitura e ensinamentos sobre o catecismo produzia uma cultura escolar própria, com mecanismos e normas que deveriam conduzir todas as salas de aula em que elas estavam presentes.

Todavia, não obstante reproduzirem uma cultura católica hegemônica, percebe-se, no interior das escolas, que a cultura escolar possuía suas especificidades e a capacidade de inovar de acordo com as singularidades de cada instituição, como, por exemplo, as memórias da irmã Hedwiges demonstraram:

A própria religião era para dar. As próprias irmãs que estavam trabalhando nas escolas estaduais e municipais, para dar uma educação religiosa, nós dávamos meia hora antes de começar as aulas. Se as aulas começaram às sete horas, eles vinham às seis e meia e a outra parte religiosa nós dávamos sempre aos domingos. [...] Mas, na escola, nós dávamos todos os dias a educação religiosa antes de começar o período do horário das aulas. (Irmã Hedwiges. Entrevista, 2014).

Todas as outras entrevistadas, inclusive em conversas informais com membros da Congregação, relataram que esse momento acontecia no horário de aula. A escola em que a irmã trabalhava possuía uma dinâmica própria, com suas nuances e adaptações conforme a sua realidade. Nesse sentido considero que a cultura escolar é “dotada de uma dinâmica própria” (FORQUIN, 1993, p. 17), com saberes, práticas, hábitos, valores e estratégias de adaptação à realidade social na qual está inserida. Dessa forma, assumir as especificidades de uma cultura transmitida de forma intencional pelo sujeito, pelo professor e adaptar-se a elas supõe a premissa de permanência de tradições culturais, neste caso, o ensino do catecismo no primeiro momento da aula. Nas salas de aula e escolas das Irmãs Catequistas formou-se uma cultura escolar singular no contexto da educação primária de Santa Catarina em meados do século XX; porém, considero aqui as especificidades culturais e os diferentes mecanismos de ensinamento religioso católico de acordo com a realidade escolar de cada integrante.

Ao serem indagadas acerca do posicionamento do inspetor quanto ao momento dedicado a orações e leitura do catecismo, todas elas lembraram que não havia problemas. Até mesmo, relataram que registravam tudo num caderno vistoriado pelo inspetor e recebiam frequentes elogios pela prática. A irmã Geraldina assim se pronunciou sobre esse aspecto: “mesmo na escola pública, se chegasse o inspetor, o inspetor visitava a escola, poderia sentar lá no lado porque eu iria dar a minha aula de Educação Religiosa, de religião. Depois, o que a gente tinha que dar todo dia”. Logo, era uma prática conhecida e consentida pelo poder público. A irmã Cecília, ao ser provocada a falar sobre as inspeções desse momento, também lembrou: “eles sabiam que era assim”. Nessa mesma linha, a irmã Maria narrou: “Sim, o inspetor ia na escola, mas não ia tanto. Mas, quando ia, olhava o caderno dos alunos. Eles sabiam de tudo. Não precisa ver nada!”.

Nessas narrativas, observa-se que esse tempo dedicado ao ensino da religião católica não era questionado pelos representantes do Estado, mas sim assimilado positivamente. No que se refere a essa temática, Horta (1994) destaca que, na década de 1930, enquanto no cenário nacional representantes da igreja católica que reivindicavam a implantação do Ensino Religioso nas escolas públicas eram derrotados, em Santa Catarina, a realidade era outra.92 No estado catarinense, a reaproximação

entre Estado e igreja, mais especificamente na área da educação, iniciou- se em 1914, com D. Joaquim.

Nesse período, foi visível a reaproximação das instituições pela estratégia cooperacionista com o Governo Estadual mediante acordos que permitiriam o Ensino Religioso oficial em todos os estabelecimentos escolares. Assim, em 12 de março de 1919, veio a confirmação da Secretaria do Interior e Justiça que permitia ao clero o ensino da doutrina cristã nos estabelecimentos públicos aos alunos que a isso quisessem sujeitar-se. Quer dizer, foi autorizado o Ensino Religioso de caráter facultativo (SOUZA, 2003). Essa relação amistosa entre Estado e igreja ficou cada vez mais espessa e mais clara, quando D. Joaquim, aos poucos, fez suas doações de prédios escolares ao Estado e, em troca, permitiu o Ensino Religioso na rede de ensino público.93

Outro exemplo relativo à proximidade entre igreja e Estado em Santa Catarina foi a presença de padres na sala de aula para acompanhar o trabalho desenvolvido pelas irmãs:

Então, na catequese, veio um padre que chegou bem na hora da doutrina e era a meia hora antes de começar a aula. Ele disse: ‘Irmã, mas que cedo! Os alunos vêm?’. ‘Vem!’, eu disse. ‘E olha, é difícil faltar um. Eles vêm correndo. Os pais deles são muito religiosos’. Então ele disse assim: ‘Pode dar!’. E ele ficou lá sentado junto com os alunos assistindo minha doutrina. Ah, mas me deu um toque, toque no meu coração, porque ele era um grande homem aqui e daí quando acabei ele disse assim: ‘Batem palmas para irmã Hedwiges, batem palmas, pois ela falou muito bem, ela falou muito bem!’ (a irmã faz o gesto de bater palmas e se impõe na cadeira com orgulho). ‘E agora eu quero

92 Para aprofundar essa questão, ler Horta (1994, p. 93-136).

93 É importante destacar que as Irmãs Catequistas não eram responsáveis por ministrar o ensino religioso

como disciplina escolar, mas sim como uma prática comum inserida no seu cotidiano, ou melhor, na sua prática docente.

ver como a irmã faz! Ela faz pergunta para vocês?’, ele continuou. ‘Faz!’, todos disseram. ‘Aqui a gente sempre conta um pouquinho’, eu disse. Depois ele falou: ‘Vamos ver se vocês aprenderam o que a irmã Hedwiges ensinou’. E ele ainda fez uma pequena revisão, ele falava, e eles disseram assim, assim e assim. (Irmã Hedwiges. Entrevista, 2014).

Sua recordação foi embalada não somente pela experiência em sala de aula, mas pelo o que essa prática representava para ela: o respeito e admiração do padre que a observava. Foram experiências vividas na escola que possuíam significados além do espaço escolar. Considerando que “a história, como toda atividade de pensamento, opera por descontinuidades: selecionamos acontecimentos, conjunturas e modos de viver, para conhecer e explicar o que passou” (ALBERTI, 2004b, p. 132- 133), foi relembrando a experiência que a irmã Hedwiges passou diante do padre, que sua narrativa foi entoada pelo acontecimento passado como um momento valoroso e ímpar na sua trajetória profissional. Valores tais que a faziam sentir-se singular em sua história, mas, ao mesmo tempo, inserida num contexto coletivo que deveria ser preservado. Foi na sutilidade das suas memórias que suas representações vieram à tona para mostrar o quanto essas irmãs foram importantes num dado momento histórico. A irmã Hedwiges relatou um fato isolado, uma ocasião que, para ela, foi singular, mas estava carregada de sentidos para mostrar a importância que a Congregação representava não unicamente para a educação, mas também para os olhos do clero. Naquele instante, era a imagem não somente que ela fazia de si, mas também a imagem que construía para si e para o outro.

Ao conhecer a trajetória das irmãs, percebo que elas se sentiam não somente como participantes de uma memória coletiva, mas também sujeitos de uma história que estava viva na sua individualidade. Era um movimento intrínseco entre a memória autobiográfica e coletiva, na perspectiva proposta por Halbwachs (2003). De acordo com o autor, a memória individual não está inteiramente isolada e fechada:

Para evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as

palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. Não é menos verdade que não conseguimos lembrar do que vimos, fizemos, sentimos, pensamos num momento do tempo, ou seja, nossa memória não se confunde com a dos outros. Ela está muito estreitamente limitada no espaço e no tempo. A memória coletiva também é assim, mas esses limites não são os mesmos, podem ser mais estreitos e também muito mais distanciados. (HALBWACHS, 2003, p. 72).

As referências que estruturaram as memórias das Irmãs Catequistas combinaram-se com as experiências vividas com membros do próprio grupo de pertencimento ou que compartilharam de uma identidade comum, como, por exemplo, a visita do padre na sala de aula da irmã Hedwiges. Essa memória coletiva emaranhou-se de modo que não havia mais distinção entre as lembranças tomadas de fora, do padre, e as lembranças ditas individuais, o sucesso que a irmã teve diante da sala. Nesse sentido, “a memória se enriquece com as contribuições de fora que, depois de tomarem raízes e depois de terem encontrado seu lugar, não se distinguem mais de outras lembranças” (HALBWACHS, 2003, p. 98). Isso demonstrou que as lembranças individuais das irmãs não estavam fechadas em torno de si mesmas, ou imunes às influências de outras memórias, elas estavam fixadas na memória coletiva do grupo de pertencimento ou com identidades partilhadas. Halbwachs (2003) ressalta que a memória está em permanente interação, sendo moldada, de certa forma, pelas influências sociais e coletivas a que está exposta. Consoante o autor, em certos momentos, o sujeito seria capaz de se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para evocar e manter lembranças impessoais, na medida em que essas interessam ao grupo (HALBWACHS, 2003).

Construir uma identidade de si, para si e para o outro fazia parte da constituição constante do ser professoral das Irmãs Catequistas. Ser reconhecida por outros grupos sociais como uma boa professora não era unicamente uma satisfação pessoal, mas uma legitimação perante a sociedade. A representação que a irmã Hedwiges construiu do padre ao observá-la infere que sua atuação em sala de aula deveria ser reconhecida não apenas como profissional, mas também como religiosa, pois ambos os processos eram unos e não deveriam ser vistos isoladamente.

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