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Uso de recursos expressivos na terapia

No documento Jung e arte: a obra em contínuo devir (páginas 119-121)

1 Introdução: aproximando psicologia analítica e arte

2.5. Territórios vizinhos à arte

2.5.2 Uso de recursos expressivos na terapia

Neste sub-item mostrar-se-á como a expressão por meio de materiais plásticos - lápis, pincel, tinta, barro… - era, para Jung, um valioso recurso que contribui para uma conexão fluida e passível de compreensão entre a consciência e o inconsciente - e, portanto, favorecedora do processo psicoterápico. Não se trata de uma atividade artística, dado que as criações são pessoais e sem intuito expositivo e mercadológico, por isso a escolha de não se usar o termo "recursos artísticos". Oliveira (2014) enfatiza a secundariedade, ou até irrelevância do valor artístico-estético das produções realizadas em contextos terapêuticos:

Devemos ter em mente que nem toda experiência artística tem efeito terapêutico, seja sobre o artista, seja sobre o espectador, assim como nem tudo o que um paciente produz plasticamente [...] como expressão do inconsciente tem valor artístico em si. Nesse sentido podemos questionar se o que um terapeuta propõe a seus paciente num ateliê ou consultório pode ser chamado de ‘arte’, quando se trata mais especificamente de um conjunto de técnicas expressivas dedicadas a explorar o mundo anímico, emocional do paciente/cliente (OLIVEIRA, 2014, p. 13-14).

Contudo, pode-se considerar o uso de recursos expressivos como algo adjacente ao campo da arte, pois se vale de materiais comuns aos artistas; visa produzir algo concreto, dar forma para algo até então abstrato; e tem grande potencial de trazer à tona uma força criativa. Uma importante particularidade do uso de linguagens expressivas em terapia é a experimentação de materiais distintos, na qual é possível voltar-se, também, para a multiplicidade e "a poética dos elementos […]” (OLIVEIRA, 2014, p. 17) - e assim aflorar, quem sabe, uma poética da psique.

A presença de atividades plásticas nos escritos de Jung é notável, não apenas em relatos de casos clínicos, mas também em sua própria história. Em Memórias, Sonhos, Reflexões (JUNG, 1961/2012) fica evidente o papel, para Jung, da pintura e da escultura na elaboração de conteúdos psíquicos, inclusive, na produção de textos teóricos: "Sempre que me sentia bloqueado, em períodos posteriores, eu pintava ou esculpia uma pedra: tratava-se sempre de um rite d'entrée que trazia pensamentos e trabalhos" (p. 218).

Enquanto psicoterapeuta, Jung escreveu diversos textos apresentando o uso de recursos expressivos como uma espécie de técnica que pode enriquecer o processo terapêutico. Para apresentar alguns motivos que levavam Jung a lançar mão deste recurso com seus pacientes, serão considerados os textos Os objetivos da psicoterapia, Seminários sobre sonhos de crianças, Considerações teóricas sobre a natureza do psíquico, A Função transcendente e A Esquizofrenia (respectivamente: JUNG, 1929/2013b, 1936-1937/2011, 1946/2013, 1958/2013a e 1958/2013c). Jung encarava a expressão plástica como uma maneira específica de relação entre o consciente e o inconsciente. O produto criado pode ser entendido como o resultado de um

trabalho conjunto entre eles que "corporifica o anseio de luz, por parte do inconsciente, e de substância, por parte da consciência" (JUNG, 1958/2013a, par. 168). Ao atribuir forma visível para conteúdos obscuros e poder, assim, olhá-los com certo distanciamento, a consciência pode analisar e interpretar o que antes lhe parecia incompreensivelmente caótico. Pensando no caso de crianças, Jung (1936-1937/2011) propôs o desenho como uma forma de objetivação da fantasia, como um recurso capaz de tornar mais palpável uma fantasia ameaçadora, capaz de esfriar e despontecializar as fantasias que são sentidas como muito assombrosas.

Uma das consequências resultantes da expressão plástica apontada por Jung é a diminuição da pressão do inconsciente sobre o consciente (JUNG, 1946/2013). "É como se a psique, ao remontar ao estado primitivo, se exprimisse nessas imagens, e assim obtivesse uma possibilidade de funcionar em conjunto com o nosso consciente, que é de natureza diferente, e isso eliminasse - ou melhor, satisfizesse - as exigências da psique que perturbam o consciente" (JUNG, 1929/2013b, par. 111). Jung, porém alertava: "Além dessas representações é necessário compreender intelectual e emocionalmente as imagens, a fim de integrá-las ao consciente, não só racional, mas também moralmente" (Ibid.).

Dentre os motivos que levaram Jung a recorrer à expressão plástica com seus pacientes, destacamos (JUNG, 1929/2013) a ênfase que Jung dava ao esforço feito ao pintar (ou desenhar, ou recortar…) em oposição à menor importância que ele atribuía ao quadro em si; atentava para o efeito que a produção artística gerava naquele que a executava, justamente porque assim a pessoa tornava-se capaz de agir, não se limitando a falar do assunto, mas representando o que antes percebia passivamente. E "é porque a sua [do paciente] fantasia não lhe parece totalmente desprovida de sentido que, ao ativá-la, o efeito se acentua" (Ibid., par. 106). Após a execução, segue-se um momento de atenta contemplação; então, os detalhes deste material oriundo dos esforços conjuntos do consciente e do inconsciente podem ser vistos com certo distanciamento e elaborados plenamente. E desta forma "o paciente pode tornar-se independente em sua criatividade […], pois, ao pintar-se a si mesmo - digamos assim - ele está se plasmando. O que pinta são fantasias ativas - aquilo que está mobilizado dentro de si. E o que está mobilizado é ele mesmo […]" (JUNG, 1929/2013b, par. 106).

Embora a maior ênfase de Jung recaísse sobre a execução da pintura, do desenho, da escultura ou de qualquer outra forma expressiva, o papel da recepção do produto deste fazer também é bastante significativo. Diante do trabalho artístico pronto, seu autor depara-se com aquilo que, antes virtual, tornou-se palpável. Olhando com certa distância, as imagens podem ser analisadas, interpretadas e, assim, tornarem-se mais compreensíveis para o ego. O fundamental da recepção - ou, talvez, re-incorporação - das imagens é a articulação dos conteúdos do inconsciente ao consciente, que pode ocorrer graças à atividade contemplativa.

Contudo, nem sempre o esforço da execução e a contemplação do(s) trabalho(s) pronto(s) levam a uma compreensão clara e fechada; nem sempre o que está expresso plasticamente adquire um sentido familiar à consciência.

Agora há um sentido novo, que antes lhe era desconhecido: seu eu aparece como objeto daquilo que está atuando dentro dele. Numa série interminável de quadros, o paciente esforça- se por representar, exaustivamente, o que sente mobilizado dentro de si, para descobrir, finalmente, que é o eterno desconhecido, o eternamente outro, o fundo mais fundo de nossa alma" (Ibid., par. 106).

Muitas vezes, o resultado consiste - como ocorreu com Jung em seu confronto com o inconsciente - em tornar-se familiar com os outros em nós que estão adormecidos no inconsciente. No caso da terapia, ao pintar as fantasias ativas, aquilo que está mobilizado dentro de si, o paciente pode se dar conta de que seu eu pessoal não corresponde à totalidade de sua psique (JUNG, 1929/2013b).

No documento Jung e arte: a obra em contínuo devir (páginas 119-121)