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3. INOCÊNCIA E OS DRAMAS SHAKESPEARIANOS: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

3.1 O uso da epígrafe em Inocência

As epígrafes shakespearianas contidas em Inocência são os primeiros indícios de que, nesse romance, Taunay empreende um diálogo com as obras do dramaturgo inglês. Faz-se necessário, entretanto, destacar que esse recurso intertextual é utilizado pelo autor ao longo de toda a obra, havendo, além das epígrafes referentes a dramas de Shakespeare, outras citações emprestadas de autores como Molière, Cervante, Ovídio, Walter Scott dentre outros. De acordo com Almeida (1999, p. 107-108), a epígrafe assume, em Inocência, “o papel de uma colagem e transforma-se numa máscara atrás da qual se oculta o narrador para dialogar com a sua narrativa e, por via indireta, com o leitor.” Por meio desse recurso, são dadas pistas acerca das obras com as quais o romance dialoga, ficando esse leitor encarregado de fazer tantas associações quantas permitam o seu repertório de leituras.

Rita Felix Fortes, em seu artigo “Um diálogo com a tradição nas epígrafes de Inocência”, enumera todas as citações sobrepostas aos 30 capítulos desse romance – inclusive as shakespearianas –, bem como descreve brevemente como elas estão relacionadas ao enredo da obra. Considerando as epígrafes “verdadeiros prenúncios do enredo” (FORTES, 2005, p. 230), Fortes menciona cada uma delas, observando que todas antecipam os acontecimentos da narrativa, ou ainda indicam a existência de relações entre as personagens do romance com outras pertencentes a obras canônicas. É o caso, por exemplo, da seguinte epígrafe extraída de Dom Quixote que se sobrepõe ao capítulo II: “Comigo, respondeu Sancho, o meu primeiro movimento é logo tal comichão de falar que não posso deixar de desembuchar o que me vem à boca.” (CERVANTES apud TAUNAY, 1999, p. 32). A partir da leitura do referido capítulo, no qual as personagens Pereira e Cirino se encontram em meio ao sertão de Mato Grosso, é possível perceber a relação entre o pai de Inocência e a personagem Sancho, de Dom Quixote, uma vez que ambos têm prazer em falar incontrolavelmente.

43 Esta outra epígrafe cervantesca antecede o capítulo XII: “Quem, porém, mostrava mais surpresa e admiração era Sancho Pança. Nunca, em dias de sua vida, vira perfeição igual.” (CERVANTES apud TAUNAY, 1999, p. 85). Nesse caso, tal citação remete não mais a Pereira, e, sim, a Meyer, que, nesse capítulo, tem a oportunidade de conhecer Inocência e, de modo sincero e espontâneo, demonstra sua admiração diante da beleza da jovem. Já no capítulo XX, encontramos mais uma epígrafe extraída de Dom Quixote: “Disse-lhe Sancho: Cada qual abra bem o olho e fique alerta, porque o diabo entrou na dança e se lhe derem ensejo, ver-se-ão maravilhas. Virai-vos em mel, e as moscas vos comerão.” (CERVANTES, apud TAUNAY, 1999, p. 129). Dessa vez, a epígrafe está relacionada às desconfianças de Pereira em relação a Meyer, para o qual estavam direcionadas todas as atenções do pai de Inocência, pois temia que o alemão pudesse seduzir sua filha, já prometida a outro homem.

Walter Scott é outro autor de cujas obras Taunay extraiu algumas epígrafes e as inseriu em Inocência. Ele recorre a Scott, primeiro, para fazer remissão à hospitalidade com que Pereira acolhe Meyer e José Pinho: “Está a ceia na mesa. Torne o bom acolhimento desculpável o mau passadio.” (SCOTT apud TAUNAY, 1999, p. 46). Essa epígrafe, sobreposta ao capítulo IV, é semelhante à que precede o capítulo X, uma vez que também traz à tona essa questão da hospitalidade, estando relacionada, mais uma vez, ao tratamento de Pereira para com os visitantes. Mais adiante, no capítulo XII, Taunay recorre novamente a Scott, dessa vez para se referir à agonia de Inocência diante da impossibilidade de se unir amorosamente a Cirino: “Santa Maria, advogada nossa, ouvi nossos rogos. Virgem pura, ante os se prostra uma infeliz donzela.” (SCOTT apud TAUNAY, 1999, p. 157).

Poderíamos nos estender nessa enumeração das epígrafes presentes em Inocência, mas não o faremos, pois isso foge da nossa proposta de ter como centro apenas os intertextos shakespearianos, e também porque tal trabalho já foi empreendido por outros estudiosos, como é o caso de Fortes (2005). Wimmer (1992) também trata dessas questões, mas restringe-se apenas às citações extraídas de autores franceses. Parece pertinente destacar, ainda, que esse recurso intertextual utilizado por Taunay em Inocência pode ser observado, também, no romance A Mocidade de Trajano, no qual encontramos epígrafes de autores como Byron, Plutarco e Vitor Hugo. Assim como em Inocência, Shakespeare figura entre os autores de cujas obras Taunay mais extraiu citações, as quais se encontram distribuídas entre a primeira e a segunda parte do referido romance. O primeiro capítulo da primeira parte, por exemplo, já é precedido da

44 seguinte epígrafe shakespeariana, refrente a Macbeth, a qual mantém relação com a perda da mãe sofrida pela personagem Trajano, evento narrado logo no início da narrativa: “Não posso deixar de lembrar-me que aquellas cousas existião e me erão bem caras.” (SHAKESPEARE apud TAUNAY, 1871, p. 5).

Genette (2001, p. 144) define a epígrafe como uma citação localizada na borda de uma obra, geralmente próxima ao texto. Esse teórico francês assinala que a presença ou a ausência de uma epígrafe pode indicar certas características de uma obra, como o período ao qual pertence, o gênero e o teor. Nesse sentido, o século XIX é apontado como uma época em que se utilizou excessivamente dessa forma de citação, como um desejo de integrar o romance – em especial, o romance histórico e filosófico – em uma tradição cultural. Os românticos, por exemplo, tomaram emprestado epígrafes de Walter Scott, Byron e, especialmente, Shakespeare. (GENETTE, 2001, p. 159-160).

Ainda segundo Genette (2001, p. 160), a epígrafe é um sinal de cultura, uma chave de intelectualidade, representando, para o autor, uma maneira de alcançar reconhecimento, por meio da escolha de seus pares, junto dos quais deseja reservar um lugar no panteão. Nesse caso, Genette (2001, p. 147) aponta que a escolha dos autores de cujas obras se extraem as epígrafes é mais importante do que o próprio conteúdo delas, as quais são aparentemente distribuídas sem ser levada em consideração a sua correspondência com os capítulos aos quais são sobrepostas. Esse parece não ser, entretanto, o caso de Taunay, uma vez que todas as epígrafes inseridas em Inocência têm relação com o conteúdo dos capítulos, o que revela uma preocupação do autor em não as inserir de maneira aleatória. Assim, vejamos como se dá a relação entre as citações shakespearianas no romance em questão, bem como os efeitos resultantes da inserção delas para a economia narrativa da obra.

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