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LÍNGUA E LITERATURA EM NHEENGATU

2. As diversas esferas orais e escritas 1 A literatura sob diversos olhares

2.3 Usos pelas comunidades linguísticas

Pretende-se refletir então, a partir de uma análise de construção dessa literatura brasileira que tomou outros embasamentos e perspectivas, como esses registros literários contribuíram para os caminhos do Nheengatu – em toda sua variação e diversidade linguísticas, considerando a distinção feita por Dell Hymes (1964) – e de centenas de línguas e culturas amazônicas, bem como refletir sobre a literatura oral coletada por esses pesquisadores, destacando o seu valor como portadora de etnoconhecimentos, e como lugar de memória e patrimônio imaterial (SANT’ANNA, 2003). Tal contexto literário dialoga com a formação de um imaginário cultural brasileiro que coexiste ainda hoje nas sociedades amazonenses.

O registro, conhecimento e gramaticalização das línguas indígenas sempre apresentaram profundas problemáticas. Por conta do hiato cultural, o trabalho dos primeiros missionários recebeu a crítica de não considerar o relativismo existente entre culturas tão distintas. O que o Estruturalismo questiona nesses textos é a “interpenetração de sistemas simbólicos que conduz, necessariamente, nesse caso, à desagregação de uma cosmologia tradicional e de uma religião primitiva, criando uma esfera simbólica híbrida, [...] que não é nem a dos missionários nem a do índio” (NAVARRO sobre BOSI, 1992). Porém, é diferente o caso das obras analisadas, pois nessas narrativas tão bem coletadas, temos como embasamento a realidade vivenciada pelos componentes das falas e o levantamento de dados empíricos de língua e literatura indígenas do século XIX.

39 Tal prática, a partir desse contato e diálogo com o presente, expõe uma relação de como e em que níveis a sabedoria indígena do século XIX transposta por não indígenas influenciou e construiu o que hoje se pode classificar como um dos elementos que compõem a identidade indígena a partir da língua e da cultura oral. Esse diálogo do objeto-passado com as implicações do presente é bem discutido e desenvolvido a partir de uma metodologia específica pela Educação Patrimonial – área que tomou força e atualmente é desenvolvida e aplicada em pesquisas na Arqueologia desde os anos 1970. Esta área trouxe à discussão as consequências diacrônicas e sincrônicas dos impactos da pesquisa e de registros literários escritos, que sempre tiveram como orientação principal o olhar ocidental e suas influências na cultura indígena. Tomando a tradução, por exemplo, dessas narrativas, que tiveram como processo linguístico a passagem entre as esferas Nheengatu-Português-Nheengatu escrito, podemos nos questionar a respeito dos efeitos de perda e ganho que ocorreram durante esses últimos cem anos ou mais de migração, miscigenação e trocas culturais.

Assim, as influências e interferências que a transposição linguística efetua na cultura indígena são fatores decisivos na constituição dessa língua. Bessa Freire aponta diversas influências do português, como empréstimos [termo ipeca foi substituído por pato], adaptações fonéticas/fonológicas [cruz (curusá), soldado (surará), livro (libru ou ribru), papel (papéra) etc.], e aponta também como a “LGA ampliou o valor semântico das palavras tupinambás para dar conta da nova realidade”, como boi e vaca foram denominados de

tapyíra (anta) e cachorro de iauára (onça).

A LGA incorporou ainda noções novas como aquelas referentes a tempo, espaço e distância: a noção de ano, por exemplo, foi representada pela palavra acaiú, considerando o fato de o caju ser um fruto que só dá uma vez ao ano, da mesma forma que a noção de mês, coberta pela palava iaci, relacionava-se à periodicidade rigorosa das fases lunares. (FREIRE, 2011, p. 70)

A problemática da transposição da Língua Geral falada para a escrita deve ser posta em questão; assim como tais análises comparadas a um levantamento do uso em voga da língua em São Gabriel da Cachoeira. Pelos aprendizados de campo, observei que o Nheengatu é falado e compreendido por diversas etnias: Baré, Baniwa e Werekena – sendo que em algumas comunidades destas duas últimas etnias o Nheengatu desempenha a função de

40 segunda língua, ou seja, com fins de comunicação fora do escopo familiar, pois entre familiares a língua primeira é a referente a sua etnia. Ao serem proibidos de falar a própria língua pela entidade-Estado da Igreja, foram deixando de falar suas línguas originais, e através do relacionamento interétnico que sempre existiu naquelas sociedades amazônicas, esses grupos apropriaram-se do Nheengatu como uma forma consciente ou não de preservação patrimonial da cultura indígena, tornando a Língua Geral instrumento de comunicação e transposição de saberes tradicionais condizente com todo um histórico social dessas comunidades. Como se pode ver, a Língua Geral narrada por Couto de Magalhães ainda estava em seu auge em fins do século XIX:

A língua viva atual é falada hoje em alguns lugares da Província do Pará, entre eles Santarém e Portel, no Rio Capim, entre os descendentes de índios ou entre as populações mestiças ou pretas que pertenceram aos grandes estabelecimentos das ordens religiosas. De Manaus para cima ela é a língua preponderante no Rio Negro, e muito mais vulgar do que o português. (1876, p. 30)

De acordo com levantamento de Cabalzar e Ricardo, no Alto e Médio Rio Negro atualmente há mais de vinte línguas de quatro grandes famílias linguísticas, a saber, Tukano, Arawak, Maku e Yanomami, e

[...] algumas etnias, ou parte delas, deixaram de falar suas línguas de origem, adotando outros idiomas indígenas, como é o caso dos Tariana no Uaupés, que atualmente falam tukano; ou dos Tukano que foram para o Médio Rio Negro e adotaram o nheengatu. (2006, p. 29)

Apesar do movimento de negação e preconceitos do século XX, quando o Nheengatu deixou para o Português o papel de língua franca intercultural, desde os anos 1980 as organizações indígenas têm se preocupado em reafirmar através principalmente das línguas suas cosmologias ancestrais. Dell Hymes (1964) teoriza tal movimento explicitando que a interação de língua e vida social deve abranger as múltiplas relações entre meios linguísticos e significados sociais; e em contextos plurilíngues a afirmação de identidade se faz mais fortalecida através da própria língua.

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