• Nenhum resultado encontrado

A S USUAIS CLÁUSULAS DE RESERVA DE PROPRIEDADE NO CONTRATO DE

II. A PROFUNDAMENTO DOGMÁTICO DO PROBLEMA D ESENVOLVIMENTO DOS INSTITUTOS

3. A CLÁUSULA DE RESERVA DE PROPRIEDADE NO CONTRATO DE MÚTUO : UMA

3.1. A S USUAIS CLÁUSULAS DE RESERVA DE PROPRIEDADE NO CONTRATO DE

Em face das análises efectuadas e das considerações tecidas, quid juris quanto à inserção de uma cláusula de reserva de propriedade num contrato de mútuo, enquanto contrato para financiamento de um bem (automóvel136), adquirido por compra e venda, e celebrado entre uma instituição de crédito e um consumidor? Deixámos colocado o problema137 e apresentámos as soluções propostas pela Jurisprudência138. Releva agora desenvolvê-lo mais criticamente e tomar uma posição sobre o assunto.

Constatámos que o comércio automóvel é um dos campos de aplicação mais comuns do crédito ao consumo. As pessoas compram automóveis a crédito e as entidades bancárias concedem financiamento para esse fim. Não estamos, em regra, perante um crédito pessoal/livre, isto é, concedido para que as pessoas utilizem as quantias ao seu dispor para a aquisição de um qualquer bem/serviço (mútuo sem destinação). Na verdade, a concessão de crédito no contexto automóvel assume, na maioria das vezes, a forma de um "crédito automóvel", tendo o financiamento um escopo específico: permitir a aquisição desse bem pelo

135 Vd. "Alguns Aspectos Jurídicos dos Contratos Não Bancários de Financiamento de Aquisição e Uso de

Bens", in Revista da Banca, n.º 22, Abril-Junho, 1992, p. 49ss.

136 A cláusula pode, contudo, inserir-se em qualquer outro negócio que não a compra e venda financiada

de automóveis. Centrar-nos-emos, porém, nesta hipótese dada a sua frequência na prática.

137

Supra p. 14ss.

cliente (mútuo com destinação139). Aliás, também como forma de garantir a aplicação da quantia ao fim visado, constitui prática corrente a sua entrega directa pela entidade financiadora ao vendedor do veículo, embora também possa ser o consumidor a fazê-lo140. É também nesse contexto que surgem as cláusulas de reserva de domínio. O terceiro financiador, ao celebrar o contrato de mútuo com o seu cliente, estipula (em geral, previamente e sem negociação) numa das suas cláusulas que a propriedade do automóvel fica reservada a seu favor até ao cumprimento integral ou parcial das obrigações derivadas do negócio, concedendo o consumidor o seu expresso acordo a tal situação141. Refira-se um exemplo típico dessa cláusula:

"A [financiadora] reserva para si a propriedade do bem alienado, até ao integral cumprimento por parte do Comprador de todas as obrigações estabelecidas no presente Contrato, ao que este dá o seu expresso acordo, sendo por conta do Comprador todos os custos e despesas decorrentes do respectivo registo"142.

Esta disposição coloca problemas pela sua atipicidade jurídica e dada a natureza da reserva de propriedade e o seu habitual campo de aplicação aos contratos de alienação.

Outra cláusula de reserva de domínio que também iremos tratar, distinta da supra citada e muito frequente na prática, é a seguinte:

"Nos termos do art. 409.º do Código Civil, e até à data em que todas as prestações (...) hajam sido pagas pelo Comprador (...), a propriedade do veículo é inicialmente reservada para o Vendedor Registado, que cedeu ou cederá [ao financiador] a titularidade de tal reserva de propriedade. O Comprador presta o seu consentimento a tal cessão. Nos termos do disposto no art. 591.º do Código Civil o Comprador sub-roga o [financiador] nos direitos do Vendedor Registado, decorrentes da reserva de propriedade (...)"143. Aqui, é o comprador que cumpre a obrigação com dinheiro mutuado, que sub-roga o financiador na posição jurídica do vendedor, ficando tal situação expressa no próprio contrato de mútuo (art. 591.º). Há, contudo, hipóteses em que se prevê, no mútuo, ser o próprio vendedor a sub-rogar

139 As expressões "mútuo com e sem destinação" são de GRAVATO MORAIS – in Contratos..., ob. cit.,

p. 49.

140 Não considerando, contudo, existir um mútuo, pela quantia não ter sido primeiramente entregue ao

mutuário, vd. o Ac. do TRP de 06.06.02, CJ, 2002, III, p. 193. Há quem retire, no entanto, do facto da quantia ser entregue pelo financiador directamente ao vendedor, uma especial ligação entre os dois contratos, argumentando assim em favor da validade da cláusula no mútuo.

141 Há ainda casos, como referimos supra, diferentes daquele que pretendemos tratar, em que é reservada a

propriedade a favor do vendedor para garantir o crédito do terceiro financiador. Cf. Ac. do TRL de 13.03.03, in CJ, 2003, II, p. 74 e de 22.01.08, proc. 7355/2007-1 e de 27.07.06, proc. 937/2006-1 e do TRC de 23.11.00, CJ, 2000, T.V, p. 99. Cf. ainda GRAVATO MORAIS, Contratos..., cit., p. 321ss.

142 In Ac. do TRC de 23.06.09, proc. 2620/08.6TBAGD.C1. 143

Acs. do STJ de 02.10.07, proc. 07A2680 e de 12.05.05, proc. 05B538; e Acs. do TRL de 12.03.09, proc. 3184/08-2, de 15.04.08, proc. 2596/2008-7 e de 16.12.03, proc. 7023/2003-7.

o financiador na sua posição, quando deste recebe a quantia mutuada, nos termos do 589.º CC. São este tipo de cláusulas que trazem à colação argumentos relacionados com o instituto da sub-rogação (art. 589.ºss). O problema será adiante analisado em detalhe144.

Estão, pois, em causa dois tipos distintos de cláusulas inseridas nos contratos de mútuo, embora ambos visem permitir ao financiador beneficiar da reserva de propriedade de um bem. Num dos tipos o mutuante reserva para si directamente a propriedade do bem ao abrigo do art. 409.º. No outro tipo prevê-se uma transmissão da reserva para o mutuante, por força de uma sub-rogação (art. 589.ºss). Iremos agora analisar autonomamente cada uma das situações.

Concluímos, pois, não se verificar, na prática, o que GABRIELA FIGUEIREDO DIAS previu, ao referir que não se encontraria "certamente, uma cláusula de reserva de

propriedade naquelas transacções em que o comprador satisfaz as suas necessidades de crédito mediante recurso a um financiamento bancário ou equiparado", na medida em que tal

financiamento seria garantido "normalmente, por um penhor sem desapossamento ou por uma

hipoteca mobiliária ou imobiliária"145. Efectivamente, a prática fez com que se tornassem

socialmente típicas cláusulas em que a propriedade do bem alienado é dada em garantia ao financiador.

Ante tal realidade, pergunta-se se será possível, nomeadamente ao abrigo da liberdade contratual (art. 405.º), prever que a propriedade de um veículo fique originariamente reservada para o financiador que emprestou a quantia necessária à sua aquisição, mas que não vendeu o bem, ou que tal reserva lhe seja cedida pelo vendedor.