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Ut pictura poesis: retrato poético do súdito prudente

Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo, ajuntar membros de toda procedência e cobri-los de penas variegadas, de sorte que a figura, de mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto (...) bem parecido com um quadro assim seria um livro onde se fantasiassem formas sem consistência, quais sonhos de enfermo, de maneira que o pé e a cabeça não se combinassem num ser uno.206

Seria inconveniente “ler historicamente” as obras Os Lusíadas e Prosopopeia sem, antes, nos atentarmos para o rearranjo de enunciados presentes nos costumes do gênero, o que, neste caso, nos remete aos costumes do gênero épico. Sendo assim, os elementos constitutivos destas obras não devem ser retomados sem que se considere a possibilidade de um vínculo entre eles e outros textos que, sendo canonizados como excelentes, acabam se tornando modelos de emulação. O objetivo deste capítulo é realizar uma leitura retórico-histórica de argumentos presentes em lugares muito específicos da disposição épica, a saber: prólogo, título, proposição, invocação, dedicatória e epílogo. Este procedimento nos ajuda a perceber a apropriação de lugares comuns utilizados por autoridades como Homero, Virgílio, Dante, Ariosto e Tasso (no caso da poesia épica), Cícero e Quintiliano (referências no campo da retórica), Horácio (com seus textos sobre poética) e Aristóteles (especialmente seus escritos sobre retórica e poética), para não citar outros. Longe de tentar demonstrar uma suposta permanência ou continuidade dos elementos comuns ao gênero em questão, o que nos instiga nesta investigação é o descontínuo, o novo olhar dirigido aos artifícios retórico-poéticos de outrora. Não obstante, pretende-se rever também a disposição ou ordenação dos argumentos para, enfim, mapear algumas figuras de elocução adotadas no decorrer da narrativa, sobretudo aquelas que remontam ao uso da mitologia greco-romana.207

206 HORÁCIO. “Arte poética”. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A poética clássica / Aristóteles,

Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 55.

207 Note-se que, propositadamente, deixamos para explorar aspectos da “narração” na terceira parte do

capítulo, não apenas por ser a mais longa, mas por levantar questões mais pertinentes à nossa proposta de trabalho. Só para esclarecer, a narração, juntamente ao título, proposição, invocação, dedicatória e epílogo, formam o que podemos chamar de “partes de quantidade” da epopéia. Ver: HANSEN, João Adolfo. “Introdução: Notas sobre o gênero épico”. In: TEIXEIRA, Ivan. (Org.). Épicos: Prosopopéia / O

Em outras palavras, o intuito deste capítulo é mapear e analisar elementos formais da poesia épica, valendo-se do esquema retórico da invenção, disposição e elocução. Esta é a oportunidade adequada para se propor uma leitura que se distancie, tanto quanto possível, dos anacronismos que integram boa parte dos escritos referentes ao gênero épico e, especialmente, às obras Os Lusíadas e Prosopopeia. O propósito, neste sentido, é voltar-se para a dimensão histórica dos lugares comuns, entendendo o verossímil poético como um produto temporal, para utilizar os termos de Pécora.

Lidamos, neste tópico, com o éthos do aedo (narrador), isto é, as tópicas a serem mapeadas e analisadas devem corresponder a um lugar de prudência que o narrador estabelece para si próprio, tornando-se, deste modo, um modelo de súdito que supostamente realiza tudo o que apregoa como sendo adequado. Há que se pensar, portanto, no estreito vínculo estabelecido entre a aparência e as paixões, tomando como pressuposto que o ânimo e a disposição do narrador influenciam nas paixões a serem suscitadas no auditório para o qual ele se dirige.208 Para efetivar a leitura retórico- histórica proposta, é imprescindível considerar, portanto, aquilo que Hansen chama de “mecânica das paixões”. No caso dos textos poéticos estudados, “as paixões nunca são expressivas ou psicológicas, mas retóricas, decorrendo de uma racionalidade formalizada numa técnica objetiva e assimetricamente partilhada de produzir efeitos”.209 Isto não quer dizer, todavia, que a sistematização técnica das paixões implica, necessariamente, na recepção esperada. O que sugerimos é uma possibilidade verossímil de ler os efeitos implicados nesta “mecânica das paixões”. No caso de Aristóteles, por exemplo, o homem detentor da phronêsis delibera bem, ou seja, sabe interagir com auditórios diversos, porque, através da sabedoria prática, ele lida bem com o contingente, com a dinâmica das ocasiões e circunstâncias. Ora, para se pensar a “prudência do artífice” na poesia épica, não se pode levar em consideração somente a

Uraguai / Caramuru / Vila Rica / A Confederação dos Tamoios / I Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 45.

208 Isto nos leva a não perder de vista os aspectos patéticos implicados na invenção poética. Longino pode

nos auxiliar nesta empreitada, pois seus escritos sobre o sublime insistem na correlação entre a linguagem empregada e a emoção compartilhada com os auditórios. Sobre o assunto, afirma Longino: “o arranjo, que é certa harmonia da linguagem, privilégio natural do homem, atingindo a alma mesma e não apenas os ouvidos, move espécies variadas de palavras, pensamentos, ações, belezas, musicalidades – coisas essas que conosco nascem e crescem; do mesmo passo, pela combinação e múltiplas formas de seus próprios sons, transmite à alma dos circunstantes a emoção existente no orador, fazendo os ouvintes compartilhá-las e, pela gradação dos termos, edifica o sublime”. É através do arranjo, portanto, que a obra recobra ares de unidade orgânica e a dimensão patética pode ser apreendida através das técnicas retóricas mobilizadas. Ver: LONGINO. “Do sublime”. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 59.

209 HANSEN, João Adolfo. “Letras coloniais e historiografia literária”. In: Matraga: Revista do Programa

argumentação lógica, mas também o lugar que se constrói para o orador e para os auditórios. Isto acaba nos remetendo novamente à questão da “autoria”, pois muitas vezes se confunde o “indivíduo” responsável pela escrita da obra e o “aedo”, versão racionalizada de um narrador apropriado que tende a contribuir com os efeitos retóricos a serem viabilizados por intermédio do discurso.

A “pintura que fala”: retratos da concórdia nos títulos e proposições

Diferentemente das obras atribuídas a Homero e a Virgílio, que contam com títulos que remontam ora ao nome do herói/protagonista (como no caso da Odisséia e da Eneida) ora ao cenário (como ocorre na Ilíada), o título camoniano incorpora a pluralidade do bem comum de que faz parte: Os Lusíadas.210 Como assegura o helenista Jean-Pierre Vernant, o herói cantado na épica greco-latina “é ao mesmo tempo o representante das expectativas coletivas, o responsável pela salvação comum e um indivíduo que coloca suas façanhas pessoais acima de tudo”.211 Desta forma, nomear o protagonista logo no título da obra indica que suas façanhas individuais favoreceram a sobrevida da coletividade que integra.212 Tendo vivido a dimensão corporativa da monarquia portuguesa, Camões assinalou, em outra direção, a importância da harmonia e da concórdia estabelecida entre os habitantes do reino que, em uníssono, deveriam assegurar a unidade do Império. A tomar, então, pelo caráter corporativista da política portuguesa, é possível inferir que a referência a heróis, no plural, poderia favorecer a recepção por parte dos leitores, que deveriam cogitar a possibilidade de conquistar reconhecimento e fama, caso suas ações se ajustassem em alguma medida à conduta heroica retratada na obra.213 Não se trata, contudo, de um projeto “nacionalista”, noção

210 Este posicionamento não deixou de render ao poeta severas críticas, por parte de comentaristas e

críticos. Nas palavras de Luís António Verney (1713-1792), Camões, apesar do “engenho poético” e da “imaginação fecunda”, investiu na criação de uma obra defeituosa, devido à falta de erudição, de juízo e de discernimento. O autor critica, por exemplo, a opção pelo título, ao afirmar que “os mestres da arte tomam o título, ou da pessoa, como Odisseia, Eneida, ou do lugar de acção, como Ilíada”. O poeta, “em vez de tomar o dito título de Vasco da Gama etc., toma-o de todos os portugueses, buscando para isto um termo latino que tanto calça aos portugueses navegantes, como aos que ficaram no reino”. Ver: VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar (Cartas sobre Retórica e Poética). Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 167.

211 VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo: Edusp, 2002, p. 384.

212 Como nos lembra Jacques Rancière, o poema épico “é o livro da vida de um povo, expressão de um

mundo onde o caráter de cada individualidade exprime em sua unidade o ethos de uma coletividade”. RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 33.

213 Não estamos sugerindo que as obras de Homero e Virgílio não pudessem ter, também, uma expressão

que daria margem a anacronismos. Trata-se de eleger, enquanto objeto do canto, o “corpo místico” lusitano.214 Não obstante, é por ser amplo e, portanto, impreciso, que o título camoniano entoa um convite ao leitor. Sendo assim, ele é menos uma constatação empírica do heroísmo, e mais uma projeção da necessidade de sua existência, consideração esta que pode nos oferecer pistas no que se refere à opção pelo título Os Lusíadas, e não, por exemplo, Vasco da Gama.

Em Prosopopeia, ao contrário, o título localiza e precisa o alvo de seu encômio: Prosopopeia Dirigida a Jorge d’Albuquerque Coelho, Capitão e Governador de Pernambuco, Nova Lusitânia. A princípio, são indicados os títulos nobiliárquicos do destinatário, o local no qual serve como donatário e, por fim, a causa que dignifica o louvor: o estabelecimento de uma “Nova Lusitânia”, o que implica fazer da Capitania de Pernambuco (colônia) um reflexo e/ou extensão do Império português (metrópole). O termo prosopopeia, por sua vez, nos alude a diferentes perspectivas de leitura: pode ser entendida como figura retórica que confere vida a seres ausentes, inanimados ou míticos, fazendo possível menção aos deuses pagãos que, pela via da alegoria, participam da fábula épica, como Proteu, Lêmnio e Netuno. Por outro lado, a prosopopeia pode indicar a vivacidade do retrato poético pintado, procedimento que concede ao leitor a oportunidade de poder identificar e apreciar os traços que caracterizam e moldam o herói215 ou, para utilizar uma expressão camoniana, que leva o auditório a testemunhar uma “pintura que fala”.216 Em qualquer interpretação que se

herói(s) e, principalmente, com as formalidades do texto que, afinal, encenam em suas linhas circunstâncias distintas e separadas por um longo intervalo de tempo.

214 É interessante o fato de Joaquim Nabuco, na segunda metade do século XIX, entender a amplitude do

canto camoniano de forma similar, apesar de utilizar categorias anacrônicas porque atreladas ao sentido de uma “literatura nacionalista” e de um ímpeto “patriótico” do poeta. Ele afirma, em certo momento, que o propósito central de Camões era o de “cantar a pátria”, ou seja, a empresa liderada por Gama seria um mero desdobramento de um propósito que era muito maior. Neste caso, se a ideia do poema é a expedição de Gama, a pátria seria o “espírito” da epopeia. Esta hierarquização dos elementos constitutivos da fábula épica permite a edificação, portanto, de “um todo harmônico e grandioso” que seria Os Lusíadas. O herói da epopeia, portanto, não é Vasco da Gama, chefe da expedição e “viva representação da pátria”, mas Portugal. NABUCO, Joaquim. Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artistico. 1872, pp. 77-85.

215 Ver: LUZ, Guilherme Amaral. “O canto de Proteu ou a corte na colônia em Prosopopéia (1601) de

Bento Teixeira”. In: Tempo, Revista do Departamento de História da UFF. Niterói-RJ: v. 25, 2008, pp. 210-216.

216 Os Lusíadas, 2008, canto VIII, estrofe 41, p. 234. O livro de Frances Yates sobre a arte da memória

associa esta terminologia a Simônides (556-468 a.C.). Plutarco afirma que “Simônides chamava a pintura de poesia silenciosa e a poesia, de pintura que fala”. Cícero e Quintiliano, dentre outros autores, afirmam que Simônides foi o criador da “arte da memória”. Não sugerimos que Camões tenha emulado Plutarco, apenas evidenciamos um lugar comum. Ver: YATES, Frances Amelia. A arte da memória. Tradução de Flavia Bancher. Campinas, SP: Editoria da Unicamp, 2007, p. 48. Ver também: WEINRICH, Harald.

Lete: arte e crítica do esquecimento. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 29-31.

adote, o que está colocado em relance é a vivacidade e a gravidade do retrato épico do homenageado que, como o próprio título adianta, é um importante súdito do Império, hierarquicamente bem situado e responsável pela condução da capitania que administra.

Os títulos das obras de Camões e Bento Teixeira podem denotar, respectivamente, uma noção mais ampla e outra particular. Aquele parece pluralizar o alvo do canto para conferir primazia à unidade imperial, enquanto que este seleciona um herói dentre vários para representar o bem comum e assegurar sua harmonia. Eis, então, a possível conexão entre ambos: o louvor épico gesticula para a necessidade de harmonia do organismo social, independentemente do local ou do(s) herói(s) que a conduzem. A poesia cristã canta a coesão do corpo místico e, concomitantemente, o respeito às hierarquias. Neste sentido, o que interessa não é se o aedo nomeia um ou mais heróis, mas se o seu canto assegura a vitória da ordem sobre o caos, seja em uma capitania ou na capital do Império. Esta é uma das condições para a existência da concórdia: que o indivíduo, antes de lutar pela ordem geral, garanta a manutenção da ordem em sua própria vontade, aceitando e incorporando o lugar hierárquico que lhe é atribuído.

Desta forma, ainda que pautado em uma proposta distinta, seu teor não se distancia totalmente do epos217 homérico, no qual o herói “não é separado do que realizou, efetuou, nem do que o prolonga”. De acordo com Vernant, o homem grego “está no que faz e no que o liga aos outros”.218 No caso da obra camoniana, que é destinada ao então rei, D. Sebastião, faz todo o sentido referir-se aos lusitanos, pois o prolongamento do monarca situa-se justamente nos súditos e demais integrantes que o servem. Necessário lembrar que a presença do herói, sob efeito de representação, supria a falta “física” do rei, ao mesmo tempo em que encarnava o “corpo político” do mesmo, e é nesse ponto que ambos se confundiam. Não é o caso, entretanto, de o rei e o herói pensarem de forma similar, mas de o rei pensar e agir através do herói que, na poesia épica, não detém vontade própria que não esteja atrelada à vontade régia. O efeito de fazer-se presente, desta forma, é fundamental na propagação das designações régias, o

217 Epos, neste caso, deve ser apreendido como discurso, narração e/ou palavra. É desta expressão que

deriva o termo épico.

que indica que o pacto colonial transcende sua realidade dicotômica restrita aos ciclos econômicos.219

Camões recorre a uma série de argumentos para dar viço às liminares épicas e especificar as tipologias heroicas que subsidiam seus versos:

As armas e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas

Se vão da lei da Morte Libertando: Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar engenho e arte.220

Como convém à proposição, o aedo assinala o objeto de seu canto: anuncia as “armas e os barões assinalados”, aludindo através de uma sinédoque às façanhas militares, matéria privilegiada da épica. João Adolfo Hansen afirma que este trecho recupera um estilo alto e sublime, pois emula o primeiro verso da Eneida: “Eu canto as armas e o barão primeiro”.221 Em sua Jerusalém Libertada, Torquato Tasso também emula e epopeia de Virgílio: “Canto l’arme pietose e ’l capitano”.222 No entanto, Camões não reduz seu louvor a um herói apenas, mas a um conjunto de barões que não identifica a priori, o que justifica o uso da terceira pessoa do plural. Outro poeta que pluraliza o objeto de seu canto é Ludovico Ariosto, ao cantar “Le donne, i cavallier,

219 Sobre a relação entre o herói e o rei, ver: LUZ, Guilherme Amaral. “Produção da concórdia: a poética

do poder na América portuguesa (sécs. XVI-XVIII)”. In: Varia Historia, Belo Horizonte: UFMG, v. 23, n. 38, 2007, pp. 558-560.

220Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofes 1-2, pp. 87-88.

221 Ver: HANSEN, João Adolfo. “Introdução: Notas sobre o gênero épico”. In: TEIXEIRA, Ivan. (org.).

Épicos: Prosopopéia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A Confederação dos Tamoios: I-Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 19.

222 “As armas canto e o capitão piedoso”. TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José

Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto I, estrofe 1, p. 113.

l’arme, gli amori”,223 verso que remonta a uma passagem de Dante (“le donne e’ cavalier, li affanni e li agi”)224 e justapõe os dois temas centrais de sua epopeia: as “armas” e os “amores”. Mais adiante, Camões salienta o caráter inédito das façanhas que vai cantar e identifica a empresa ultramarina enquanto matéria excelente a ser contemplada pelos ecos de sua narrativa. O poeta adianta para o leitor que as façanhas que vai narrar terminam com a edificação de um “Novo Reino”, à maneira de Virgílio que, em seu exórdio, antecipa que a razão última da trajetória de Ulisses é a fundação de Roma.225

Na segunda estrofe, Camões precisa e demarca o fundamento de sua narrativa. O objetivo central que alicerça o seu canto, afirma, é a ampliação da fé cristã através da expansão do Império português.226 Em razão deste propósito, o poeta pluraliza e especifica os seus protagonistas: são objetos de seu elogio os nobres “barões assinalados”, os “Reis” e os homens de valor que conquistaram memória perene em virtude de suas ações.227 Quando contempla este “corpo” de heróis, o aedo exalta a importância de determinados integrantes do Império,228 que deveriam atender ao padrão de conduta ensejado pela ortodoxia católica. É importante lembrar, neste caso, que o corporativismo prima pela ética cristã e pelo respeito incondicional à hierarquia política, sob a orientação de uma concepção de história providencialista e, portanto, centrada na figura de Deus.

223 “Damas e paladins, armas e amores”. ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso: cantos episódios.

Tradução, introdução e notas de Pedro Garcez Ghirardi. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, canto I, estrofe 1, p. 51.

224 “damas, senhor’s, empresas, equipagens”. ALIGUIERI, Dante. A Divina Comédia. Introdução,

tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Editora Landmark, 2005, “Purgatório”, canto XIV, v. 109, p. 425.

225 Em uma coletânea de ensaios publicados em 2006, Francisco Murari Pires retoma a historiografia

helênica para aproximá-la da composição épica, afirmando que autores como Heródoto e Tucídides são tributários de certas convenções próprias na narrativa homérica. Dois dos princípios aventados pelo autor se sobrepõem: a dimensão arqueológica, ligada ao início da narrativa e, portanto, ao fato a ser narrado, e a dimensão etiológica, referente à causalidade. Se o objeto do canto é “as armas e os barões assinalados”, a causa do elogio é a fundação de um Novo Reino. Sobre os princípios acima referidos, ver: PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 274-275.

226 Ver: PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della

Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefocauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 141.

227 De acordo com Maria Leal de Matos, o poema “não intenta a glorificação do homem em geral, mas –

muito particularmente – a dos portugueses que se empenham nas descobertas, empreendimento que assume um significado religioso bem determinado e bem inserido no seu momento histórico”. MATOS, Maria Vitalina Leal de. Introdução á Poesia de Luís de Camões. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983, p. 25.

228 Interessante notar que Camões inclui, dentre os participantes de seu canto, integrantes da nobreza em

suas duas variantes mais gerais: da nobreza “natural”, hereditária, e da nobreza “política”, concedida pelo direito positivo. Ver: HESPANHA, António Manuel. “A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime”. In: Tempo, v. 11, n. 21, 2006, pp. 135-136.

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