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A UTILIZAÇÃO DO DIREITO PENAL NO CAMPO DAS RELAÇÕES TRIBUTÁRIAS: UMA REFLEXÃO SOB A ÓTICA DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DO BEM JURÍDICO

CAPÍTULO III – CRIMES TRIBUTÁRIOS À LUZ DO CONCEITO DO BEM JURÍDICO PENAL E DO PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA:

3.5 A UTILIZAÇÃO DO DIREITO PENAL NO CAMPO DAS RELAÇÕES TRIBUTÁRIAS: UMA REFLEXÃO SOB A ÓTICA DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DO BEM JURÍDICO

PENAL

O segundo capítulo deste trabalho deixou evidenciado que a Constituição brasileira de 1.988, fundada no princípio da dignidade da pessoa humana, não admite a utilização do Direito Penal, senão para a proteção, subsidiária, ressalte-se, de bens jurídicos que tenham dignidade constitucional.

O Direito Penal no Brasil, pois, tem que ter por missão a exclusiva proteção de bens jurídicos e somente pode ser utilizado quando a conduta for apta a causar lesão ou perigo de lesão ao referido bem.

Fábio Roberto D’Ávila174 apregoa que a compreensão do crime como ofensa a bens jurídico-penais, como dano ou perigo a bens dotados de dignidade penal, embora possa ser, para muitos, uma questão trivial é, em verdade, um horizonte compreensivo que, para além de historicamente posto em questão, encontra no Direito Penal contemporâneo um ambiente hostil.

Isso porque, continua o autor, a ampliação do direito penal secundário (onde se inserem os crimes tributários), com o surgimento de novos espaços, cada vez mais complexos, de intervenção jurídico-penal, tem levado a um progressivo distanciamento do ilícito penal em relação aos vínculos objetivos que implicam o reconhecimento da ofensividade como elemento de garantia.

Essa utilização sem critérios do Direito Penal tem conduzido a um esfumaçamento dos valores tutelados, a uma perda de densidade tal que o bem jurídico passa a movimentar-se em um espaço de total indiferença em relação a meros interesses de política criminal.

Ainda de acordo com Fábio Roberto D’Ávila, a flexibilidade de teorias subjetivistas do ilícito, de concepções puramente normativistas ou, ainda, de leituras meramente formais do ilícito penal, hoje tão em evidencia, torna-se sedutora, mas, em

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D’Ávila, Fábio Roberto. O modelo de crime como ofensa ao bem jurídico. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: D’AVILA, Fábio Roberto; SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder (orgs). Direito penal secundário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, 71-72.

contrapartida, exige um preço alto em termos de legitimação, nomeadamente a supressão de elementos objetivos capazes de propiciar substrato material crítico à construção do ilícito-típico.

No Brasil, pelo que se percebe, os crimes tributários inserem-se no âmbito do nominado direito penal secundário e, aqui, fica mais do que claro que o Direito Penal Tributário não se propõe à tutelar um bem jurídico, o que retira a sua legitimidade.

Na verdade, o sistema jurídico penal hoje, tem sido utilizado, no ambiente das relações jurídico-tributárias, com feições exclusivamente utilitaristas em prol da sanha arrecadatória do Estado brasileiro que, como dito, tem uma das mais altas cargas tributárias do mundo.

Com efeito, o Direito Penal passou a ser um mero instrumento da política fiscal brasileira que o tem utilizado como mais um meio de cobrança, pois, bem se viu que, se há o pagamento do valor cobrado (atualmente, em regra, antes do recebimento da denúncia) não haverá qualquer punição, em decorrência da extinção da punibilidade.

O que se percebe, inclusive na prática forense hoje, é que, de fato, o processo e o direito penal têm sido utilizados para substituir um processo de execução fiscal. Isso porque, muitas vezes, antes de receber a denúncia, o juiz, sabendo da finalidade dos crimes tributários (arrecadar), oficia à Receita, a fim de que seja informado se o réu realizou algum parcelamento da dívida tributária.

Como refletido em artigo publicado pelo editorial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais175 se “a persecução penal é deflagrada apenas no caso de o devedor não efetuar o pagamento ou parcelamento de suas dívidas antes do início do Processo Penal, fica claro que sua utilização é mais inclinada a uma chantagem estatal do que ao atendimento de sua dupla finalidade de garantir a segurança e a liberdade aos cidadãos”.

Abordando o assunto, Sérgio Rosenthal176 aponta que se apresenta pacífico o entendimento no sentido de que o fim arrecadatório constitui finalidade precípua da repressão estatal às figuras delitivas de natureza tributária, não sendo desnecessário

175EDITORIAL IBCCRIM. Reflexões sobre os crimes tributários: protesto pela coerência. In Boletim

IBCCRIM. SãoPaulo: IBCCRIM, ano 19, n. 227, p. 01, out., 2011.

176ROSENTHAL, Sérgio. A extinção da punibilidade nos crimes de natureza fiscal após o advento da Lei

n. 9.938/2000. In: Direito Penal Empresarial. SALOMÃO, Heloisa Estellita. São Paulo: Dialética, 2001, p. 236.

consignar que, a possibilidade de extinção da punibilidade, representa verdadeiro estímulo legal para que seja efetuado, rapidamente, o adimplemento do tributo devido.

Em assim sendo, não se pode admitir que haja esse total desvirtuamento do Direito Penal no Brasil, na medida em que, repita-se, a incriminação de condutas deve ter o objetivo de tutelar bens jurídicos importantes. Não se está a defender que o bem jurídico “arrecadação tributária” não seja relevante e merecedor de proteção, até porque, é com esses recursos, que o Estado promover (ou deveria promover) as suas políticas sociais, distribuindo, assim, a justiça social no Brasil.

O que se está advogando é que o Direito Penal não pode ser utilizado como um mero instrumento de arrecadação de tributos, pois o Estado detém, como se verá, outros meios para essa finalidade.

Destarte, a conclusão que se extrai da análise do atual modelo penal tributário brasileiro é que o Estado não faz uso do Direito Penal para a proteção de um bem jurídico, pois, se o fizesse, não haveria a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo. Essa conduta estatal de uso do Direito Penal como instrumento de cobrança viola o princípio da estrita proteção de bens jurídicos, norma essa que é o sustentáculo da Teoria Constitucionalista do Direito Penal.

Além disso, é importante ressaltar que, a utilização da ameaça de prisão com o propósito de cobrar os seus créditos tributários pode ser interpretada como violadora direta da Constituição Federal, especificamente do seu art. 5º, inciso LXVII, que veda a prisão por dívida, devendo-se consignar que não se sustenta o argumento de que não há essa violação ante o fato de que os tipos penais tributários punem, na verdade, a fraude utilizada para a evasão fiscal.

É que, se a punição fosse dirigida a uma eventual fraude utilizada pelo contribuinte, com mais razão ainda, não se faria necessário, a criação de crimes tributários.

Isso porque, a atual legislação penal brasileira, já conta com tipos penais, desde 1.940, voltados para proteger o bem jurídico “fé pública”. De fato, o Código Penal, no seu título X, traz vários tipos penais que incriminam condutas que lesionam a fé pública, sendo certo que, muitos dos crimes previstos no citado título, têm penas superiores aos crimes tributários.

Em reforço ao argumento da ilegitimidade dos crimes fiscais são interessantes as ponderações feitas por Gamil Foppel e Rafael de Sá Santana177, no sentido de sua inconstitucionalidade.

Para os autores, os crimes tributários estão em desacordo com o enunciado da Súmula 323178 do Supremo Tribunal Federal.

O referido enunciado jurisprudencial veda a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para o pagamento de tributos, sendo que, por vias indiretas, acaba por vedar, também, a prisão pelos crimes tributários. Pois, tais ilícitos penais, como restou demonstrado, têm o objetivo de compelir o contribuinte a pagar o tributo sonegado. Destarte, se não é admissível a apreensão de mercadorias como forma de coerção para o pagamento do tributo devido, não deverá se admitir, por óbvio, a restrição da liberdade do indivíduo.

Em assim sendo, percebe-se que, sob a ótica do bem jurídico penal, não se legitimam os crimes tributários, motivo pelo qual a descriminalização seria medida de rigor.

3.6 CRIMES TRIBUTÁRIOS NO BRASIL E O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA