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O vínculo entre poder e saber

É comum encontrar nos textos foucaultianos menções ao entrelaçamento entre poder e saber, bem como alusões aos efeitos concretos produzidos por este par nas sociedades ocidentais. No entanto, esta recorrência não significa que onde supomos um dos elementos deste par, inexoravelmente encontraremos o outro. De fato, esta articulação é um produto da cultura ocidental e, portanto, diz muito sobre como nossa sociedade se apresenta e funciona porque, para Foucault, no Ocidente “os homens se governam (eles próprios e os outros) através da produção da verdade” (2006b, p. 343). Ocorre, entretanto, que esta afirmação não deve ser remetida à ideia de racionalidade como critério evolutivo – a partir do qual certas práticas seriam mais ou menos racionais do que outras e, portanto, mais adequadas e legítimas do que outras – ou à ideia de razão como valor incontornável – isto é, se

tal prática é racional, ela é aceitável. Parece-nos que o filósofo pretende evidenciar o jogo, a articulação entre as práticas e os discursos verdadeiros que as fundamentam, cuja junção não é absolutamente necessária, mas cujos efeitos sobre a sociedade que a forjou são formadores e transformadores.

Por um lado, esta relação entre poder e saber é negada evocando-se a neutralidade da ciência, pelo menos daquela que se iniciou no século XIX e foi denominada de positivista porque fundada em métodos e procedimentos observáveis, verificáveis, mensuráveis e classificáveis, segundo determinados níveis técnicos e com a utilização de instrumentos adequados e independentes dos sujeitos que os praticam. Ora, essa concepção positivista remete – guardada a especificidade epistemológica do positivismo – ao pressuposto vigente no cerne da filosofia ocidental desde Platão, mas radicalizado pelo kantismo, no qual o conhecimento comparece como uma faculdade intrínseca à natureza humana que devidamente utilizada permite o desvendamento das leis da natureza, o verdadeiro e essencial conhecimento das coisas. Ou seja, conforme essa asserção, entre o homem, o conhecimento e o mundo a relação é de afinidade, semelhança, continuidade (FOUCAULT, 2002, p. 16-18). É nesse contexto que a anedota do xogum citada por Foucault n’A Ordem do Discurso, adquire pleno sentido. Eis o chiste:

No início do século XVII, o xogum ouvira dizer que a superioridade dos europeus – em termos de navegação, comércio, política, arte militar – devia-se a seus conhecimentos de matemática. Desejou apoderar-se de saber tão precioso. Como lhe haviam falado de um marinheiro inglês que possuía o segredo desses discursos maravilhosos, ele o fez vir a seu palácio e aí o reteve. A sós com ele, tomou lições. Aprendeu a matemática. De fato, manteve o poder e teve longa velhice. Foi no século XIX que houve matemáticos japoneses. Mas a anedota não termina aí: tem sua versão europeia. A história conta, com efeito, que aquele marinheiro inglês, Will Adams, for um autodidata: um carpinteiro que, por ter trabalhado em um estaleiro naval, aprendera a geometria. Deve-se ver nesta narrativa a expressão de um dos grandes mitos da cultura europeia? Ao saber monopolizado e secreto da tirania oriental, a Europa oporia comunicação universal do conhecimento, a troca indefinida e livre dos discursos (FOUCAULT, 2005a, p. 37-38).

Por outro lado, ninguém se surpreende – talvez já nem perceba – a proliferação de certos discursos no contemporâneo, notadamente a quase onipresença do discurso médico. Quase não se questiona acerca do peso e da

legitimidade que este discurso confere a determinadas decisões em âmbitos tão diversos de sua aplicação como nas instituições legais, judiciárias, educacionais e econômicas – supondo-se, é claro, que de fato estes discursos conferem peso e legitimidade. Em todo caso, qual a lógica que justifica ou sustenta o fato destas instâncias decisórias – soberanas, por definição – demandarem a produção de discursos científicos?

Segundo Foucault, em nossa sociedade, ao lado do aparecimento de uma nova modalidade de poder – deparamo-nos não apenas com o modelo da soberania, mas também com um modelo fundado na estratégia – surge uma vontade de saber articulada aos ideais de cientificidade do positivismo, sob a garantia da conjuração do desejo e do poder que indubitavelmente os constituem, mas cujo reconhecimento poderia desqualificá-los. Este empreendimento visa negar o quanto aquilo que é reputado como verdadeiro carrega do sangue restante das lutas e das coerções em torno da produção da verdade. De fato, ocorre exatamente o contrário. Se, por um lado, as disputas em torno do verdadeiro e do falso, o deslizamento entre estes dois polos nos escapa, por outro lado, a verdade como critério legitimador e objetivo final de práticas discursivas e práticas não discursivas se impôs; de tal modo que a partir do século XIX, essa “vontade de verdade”, institucionalizou-se e exerceu sobre outros discursos certa pressão até tornar-se quase que incontornável (FOUCAULT, 2005a, p. 16-20). Por isso Foucault dirá:

A verdade não existe fora do poder ou sem poder [...]. A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira com se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (1996, p. 12).

No entanto, segundo Deleuze, entre saber e poder há total heterogeneidade, pois o saber corresponde às matérias formadas que nos dispositivos são imantadas pelas forças em perene conflito. Contudo, a relação é de “pressuposição recíproca e capturas mútuas” (1988, p. 81), em que as relações de poder funcionam como afetos que investem sobre as formas, isto é, se o saber ancora-se na repartição do

visível e do enunciável, são as condições de possibilidade que balizam o aparecimento de certos discursos. Mas, inversamente, são os conteúdos formados que integram as relações de poder e lhes conferem positividade, forjando, assim os regimes de saber-poder e sua miríade de efeitos.

Com isso, o modelo estratégico de poder confere visibilidade ao campo de correlação de forças articuladas a uma determinada cientificidade que produzem os discursos de verdade aceitáveis em nossa época. Por isso, conforme Birman, a forma do espiral seria a melhor metáfora para evidenciar o vínculo que se estabelece entre poder e saber nos dispositivos, na medida em que esta imagem “indica como a mútua implicação entre saber e poder acaba por criar um cenário no qual os oponentes se situam num desequilíbrio permanente e em posições espaciais diferentes” (2002, p. 309), porém em constante provocação e mobilidade.

Decorre que esta nova configuração evidenciada por Foucault remete ao problema do papel do intelectual na cena política. Pois, segundo a proposição de que saber e poder se vinculam agonicamente, como proferir discursos de verdade? Num primeiro nível, este questionamento remete ao enunciado da verdade como esclarecimento, desvelamento do real e, por consequência, ao processo de conscientização. Num segundo nível, alguém que se propõe proferir discursos de verdade assume implicitamente o papel de falar em nome de outros, mas também de prescrever e direcionar suas ações.

Ao recorrer à figura do intelectual específico cujo papel é o de “lutar contra as formas de poder ali onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento disso: na ordem do ‘saber’, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do ‘discurso’” (FOUCAULT, 2006b, p. 39), em detrimento da figura do intelectual universal que se arroga a função de dizer a verdade de todos, Foucault propõe a problematização da ideia de representação no campo político. Isto não significa, entretanto, que a ação política se restrinja à defesa de interesses estritamente pessoais com os quais haja identificação ou proximidade, pois esta postura incorre na polarização e esterilização do debate porque impede a reflexão acerca do bem comum.

Com efeito, ao conferir visibilidade ao liame entre poder e saber através do diagnóstico do presente, julgamos que Foucault busca ampliar o conjunto de elementos que tensionam o campo político, no qual é necessário que o debate ultrapasse, porém não descarte, o problema das singularidades e da disputa entre forças dissimétricas.

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