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2. Panorama do método compreensivo: a sociologia weberiana

2.1. A sociologia compreensiva

2.1.2. Realidade e disposições metodológicas

2.1.2.3. Valor

Ao argumentar sobre a “neutralidade” do saber científico, Weber (1992) ressalta que o estudo da realidade fundada em valores contraditórios não pressupõe o intuito de dizer quais são os mais ou são os menos corretos dentre eles. Enquanto cientista, interessa-lhe o embasamento axiológico da realidade, mas não lhe parece que a ciência deva impor ou sugerir uma hierarquização dos valores que estuda. Instante dessa mesma realidade, que o faz responsável por seus próprios limites e o condena à particularidade, a ciência representa uma perspectiva fundada em valor: não tem legitimidade para o julgamento axiológico, não pretende estabelecer verdades, mas sobrevive enquanto lhe for reconhecida a validade como maneira de abordar o real — uma validade contextual, localizada historicamente. Weber vê a ciência como uma das faces da cultura moderna, em que se define uma forma de conhecimento institucionalizada segundo valores específicos (1986a: 126). Como qualquer outra configuração do pensamento, ela parte de uma escolha humana e suas evidências são válidas segundo os limites do ponto de vista que ela representa. A

Weber assume que os pareceres do cientista social não podem reproduzir perfeitamente o mundo da prática, servindo antes para propor interpretações possíveis. A investigação da cultura parte de uma postura axiológica que se caracteriza pela rejeição de quaisquer julgamentos de valor: “não é verdade que ‘compreender tudo’ significa ‘perdoar tudo’” (Weber, 1992: 371). Weber sugere uma ciência que estude as opiniões sem tomar partido. Reconhece a constituição axiológica do mundo, pois ignorá-la seria equivalente a estabelecer uma noção de totalidade e, portanto, uma explicação metafísica, com a qual se enterraria definitivamente qualquer proposta de neutralidade. Para Weber, o conhecimento científico não pode fugir às “significações culturais” (1986a), ou seja, à manifestação cultural de sua própria época: para tratar da história, precisa eleger o “significativo”, tendo como objeto o que é relevante para a modernidade.

Assumir as significações culturais é um momento decisivo para a compreensão. À medida que servem de filtro ao entendimento humano, quando este se coloca diante de uma realidade infinita, elas chamam atenção para o finito (Weber, 1986a: 96), que é a dimensão na qual se confere um sentido ao mundo que, sem a interferência de perspectivas fundadas em valores, não possui nenhum.

Para a relação entre valor e ciência que se estabelece nesses termos, Freund (1970: 46) apresenta uma sistematização através de cinco pontos: a) “seleção do tema”; b) definição de uma “individualidade histórica”; c) justificação das relações e dos elementos que aparecem na pesquisa; d) atribuição de causalidade; e) afastamento do “simplesmente vivido ou vagamente sentido”. Essa interpretação sugere que sejam observadas, na teoria de Weber, as influências do conceito, de sua construção, sobre a maneira como se apresenta a realidade: o objeto das ciências da cultura não tem uma natureza autônoma com relação aos valores, mas é fruto da adesão a uma forma de ver as coisas. A dimensão empírica não se oferece diretamente para ser apreendida, mas está condicionada à definição do “cultural”, ou à relação entre realidade e “idéias de valor” (Weber, 1986a: 92). Pode-se dizer que o pensamento weberiano, ao situar o valor na base da possibilidade científica, assume como diretiva epistemológica o trabalho no nível do contexto artificialmente definido, ou seja, no nível de uma realidade cujos limites existem apenas para as significações culturalmente estabelecidas.

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Como já foi visto, dentro das definições de Weber, o que a sociologia apresenta de novo com relação à história é um interesse pela generalização. Isso não faz, contudo, que ela seja uma disciplina inteiramente original. A questão epistemológica que se oferece através da consideração dos valores e que, em termos metodológicos, resulta no tratamento do conceito enquanto tipo ideal é básica para as ciências sociais ou, enfatizando o interesse deste trabalho, é básica tanto para a história como para a sociologia. Ambas as disciplinas, na qualidade de “ciências interpretativas da ação”, têm a tipificação como parte importante de seu estatuto. Tal como a história, a sociologia trata do “culturalmente importante” e propõe um estudo da ação. Há uma continuidade entre os fundamentos das duas disciplinas, em que a sociologia pode ser percebida como uma maneira de investigar a história, sem atenção direta à idiossincrasia, mas sempre orientada pela referência da ação individual.

Para comparação com o pensamento de Hegel, o que está em questão não é propriamente a definição weberiana da história como um saber distinto do sociológico, mas a sociologia como releitura do procedimento de investigação histórica. Até aqui, a revisão de alguns elementos epistemológicos e metodológicos da teoria weberiana não permite, na sua comparação com o ideal hegeliano de ciência, que se vá muito além do reconhecimento de uma divergência fundamental, entendida na radical rejeição, por parte de Weber, de um embasamento metafísico da pesquisa sobre a realidade. Parece bastante óbvia a contradição entre as noções de realidade trabalhadas em cada matriz de pensamento: a de Hegel, matéria para um conhecimento completo, estabelecida a partir de uma unidade essencial; a de Weber, como realidade fragmentada em valores, indissociável da própria limitação do pensamento.

São duas idéias de realidade e dois pontos de partida para a ciência bastante distintos, mas a maneira como, neles, propõe-se relacionar conceito e objeto converge num princípio: em ambos, a dimensão objetiva da realidade, ou seja, a forma em que a história dos acontecimentos concretos se torna apreensível, resulta do trabalho subjetivo do cientista, da aplicação de suas categorias cognitivas. Total (para Hegel) ou parcialmente (para Weber),

seja como negação do espírito verdadeiro (no espírito objetivo) ou como adaptação do fato histórico a um interesse específico (nas individualidades históricas), o objeto depende do conceito, é uma criação do pensamento.

Para aprofundamento desse esforço comparativo, lembrando-se de como Hegel pensa a identidade dos indivíduos a partir de generalizações, serão trabalhadas, no capítulo que se segue, a) a proposta weberiana de estudar a história por meio de generalizações, que se chamarão estruturas, bem como b) uma reconfiguração do papel do indivíduo decorrente da adoção desse procedimento.

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