• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1: OS NINHOS DOS VAMPIROS 1.1 O vampiro ancestral pré-literário

1.4. A vampirização na cultura africana

Apesar de sua “esmerada mitologia” (MELTON, 2008, p. 3), os povos africanos não “são conhecidos pela sua crença nos vampiros” (Ibidem), segundo J. Gordon Melton. Aliás, são raros os estudos acerca deste mito nos diferentes contextos culturais africanos, em virtude das escassas fontes de informação e dos poucos documentos sobre o vampirismo no continente. Entretanto, J. Gordon Melton (2008) apoia-se nas pesquisas de Montague Summers, pesquisador sobre o vampirismo pelo mundo, que, na década de 1920, encontrou dois exemplos muito próximos do vampiro da tradição Ocidental: o asasabonsan e o abayifo. Na verdade, este vampiro apresentado por Melton está associado ao que se conhece como bruxo ou o feiticeiro.

Em território africano, encontra-se um mito envolvendo uma criatura intitulada asasabonsam, com características mais próximas do grotesco, encontrada no folclore dos povos ashanti, de Gana. Na breve descrição, apresentada por Gordon Melton (2008), essa criatura era um humanoide em sua aparência, porém, possuidor de dentes de ferro. Tal criatura refugiava-se nas profundezas de florestas, distante do convívio com os humanos. Ficava no topo de árvores e “balançava suas pernas, usando os pés em forma de gancho para capturar pessoas desprevenidas que passassem por perto” (MELTON, 2008, p. 4).

Neste elenco de criaturas africanas, outra encontra-se mais próxima da característica de vampirização, comum ao vampiro, conforme reconhecido no cânone literário ocidental. Tal criatura é chamada de obayifo, sendo uma designação Ashanti, do Oeste africano, para “vampiro”, que reapareceu sob diversos nomes distintos nas tribos vizinhas, como, “por exemplo, entre os dahomeanos, o vampiro era conhecido como o asiman” (MELTON, 2008, p. 3). Abayifo sintoniza-se como uma caracterização do bruxo, sob o olhar ocidental, capaz de viver incógnito em uma comunidade, passar despercebido e agir sem que os outros indivíduos de uma comunidade o descobrisse. Esse ser possui, portanto, características errantes, conforme as suas conveniências, e a aquisição dos conhecimentos “mágicos” e espirituais era uma tendência conquistada com o tempo, com a experiência. Somente com o decorrer da vida, ele podia adquirir os saberes necessários, sem ter qualquer ligação ou obrigatoriedade com traços genéticos ou hereditários para se tornar um bruxo. De acordo com Gordon Melton,

[...] não havia meios para se determinar quem seria um bruxo. Secretamente, o bruxo era capaz de deixar seu corpo e viajar à noite como uma bola de luz. Os bruxos atacavam as pessoas – especialmente as crianças – e sugavam seu sangue. Tinham também a habilidade de sugar o suco de frutas e legumes

(MELTON, 2008, p. 4).

Dentro das culturas africanas, o que Gordon Melton chama de bruxo pode ser caracterizado como um xamã ou um feiticeiro, capaz de se equilibrar entre as dimensões da vida e da morte, e ter a capacidade de trabalhar as energias emanadas dos seres vivos e dos espíritos dos mortos. Nesta concepção, o vampirismo é, na essência, um ato homólogo à feitiçaria. De acordo com Pimentel Teixeira (2003, p. 97), a relação entre feitiçaria e culto aos antepassados caracteriza-se como limítrofe, enraizada nas tradições africanas ancestrais, daí a sua tese de que o vampirismo constitui um dos conhecimentos antigos acerca dessas tradições.

O sangue, símbolo comum ao vampiro tradicional das artes europeias, corresponde a uma simbologia múltipla, de significados plurais, podendo ser, dentro dessa multiplicidade de interpretações simbólicas, o “espírito” de um animal, a própria vida animada da criatura viva. Para o homem, este significado transfigurou sua própria imagem para um universo místico, ilustrado por ritos e crenças das mais variadas naturezas. O que se depreende dentro do universo africano é a vampirização não como um processo necessariamente atado ao sangue, o símbolo vital da representação da vida, mas como uma gama de saberes, relacionados às energias vitais presentes nas crenças ancestrais africanas.

J. Gordon Melton (2008, p. 4) menciona o trabalho de campo do pesquisador Arthur Glyn Leonard, que constatou que os bruxos saíam de suas casas à noite para se reunir com demônios, a fim de tramar a morte de vizinhos. A morte consistia em sugar gradativamente o sangue das vítimas por meio de uma ação sobrenatural, invisível, cujo efeito era imperceptível às vítimas das ações vampirescas destes bruxos africanos. Havia relatos, nessas crenças, segundo Melton, de que o “processo de sugar o sangue era feito de maneira tão habilidosa que a vítima sentia dor, mas era incapaz de perceber sua causa física, mesmo sabendo que no final o resultado seria fatal” (2008, p. 4). Gordon Melton sugere, baseado nos estudos de Leonard, de que, na realidade, a bruxaria em si era um sofisticado sistema de envenenamento, também encontrado de forma muito recorrente na Europa medieval, por exemplo.

No tocante às culturas africanas, em alguns povos da Nigéria, havia a crença nos bruxos desencarnados, em forma de espíritos, que atacavam as pessoas enquanto estas

dormiam à noite, tendo nas úlceras, os sinais de ataques. Na descrição de Melton, a ação decorria da seguinte maneira

Uma pessoa assassinada pela bruxaria deve morrer dos efeitos de um veneno administrado secretamente ou pela infusão desse veneno no seu sistema pela bruxa; ou, então, esta última deve assumir uma forma de algum animal, como um gato ou um rato, o qual, durante a noite, suga o sangue por uma ferida pequena e imperceptível, através da qual uma doença prolongada e a morte são produzidas. (MELTON, 2008, p. 4) Interessante observar que, em algumas histórias tradicionais, há descrições similares de bruxas que voam a noite, em um corpo espiritual, em forma de alguma energia reluzente, para colher sangue de crianças, a ser usado em atos de bruxaria. Ora, com o intuito de colher o sangue como fonte de vitalidade tirada da vítima, este ritual não deixa de ser uma forma de vampirismo antigo, presente nos povos primitivos da história da humanidade (LECOUTEUX, 2005; MELTON, 2008).

Tais pesquisas acerca do vampirismo na África associam-se diretamente aos estudos envolvendo práticas de bruxaria no contexto europeu. De acordo com J. Gordon Melton, parecia haver uma necessidade de comparação e correlação destas práticas africanas com certos procedimentos ocidentais

Associados ainda de maneira mais próxima às práticas da bruxaria europeia eram os esforços para verificar se a pessoa morta era uma bruxa. O corpo da bruxa acusada era levantado do chão e examinado, procurando-se sinais de sangue no local da cova, integridade ou inchação anormal do corpo. A cova de uma bruxa verdadeira teria um buraco no chão, que ia do corpo até a superfície, para que ela pudesse usar de saída na forma de morcego, rato ou outro pequeno animal. Acreditava-se que a bruxa poderia continuar a operar após sua morte e que o corpo permaneceria como no dia da morte. Ao se destruir o corpo, o espírito não poderia continuar sua atividade de bruxaria. (MELTON, 2008, p. 5)

Esses personagens “xamanicos” ou capazes de atos de bruxaria poderiam manipular os espíritos dos mortos, além de capturá-los enquanto saiam do corpo de um morto. Ainda segundo Melton (2008, p. 5), eles seriam capazes de ressuscitar mortos. Neste sentido, Melton explica que

[...] os africanos compartilhavam a crença com os europeus sobre a existência de uma classe de pessoas que podiam desafiar a morte e exercer uma influência maligna a partir do túmulo. Como os vampiros europeus, os vampiros africanos eram muitas vezes pessoas que morreram desafiando as

normas da comunidade ou pelo suicídio. Ao contrário dos vampiros literários, os vampiros africanos eram tão somente pessoas comuns, como os vampiros da Europa Oriental. (MELTON, 2008, p. 5)

É compreensível a posição de J. Gordon Melton em concomitar dois eixos culturais tão distintos (as europeias e aa africanas), e procurar relativizá-los, convergindo suas características acerca da compreensão do vampirismo. Entretanto, dificilmente se explicaria, de forma coesa, questões de mitos e ritos culturais, como os das sociedades africanas, tão complexas e ricas, exatamente por manterem as suas manifestações sob o signo da pluralidade. Tentar compreender o vampiro africano, a partir de puramente sob a ótica e os aspectos culturais ocidentais, tais como os da religião judaico-cristã, por exemplo, corre-se o risco de desfigurar, culturalmente, todo o legado imaterial das tradições africanas.

Por isso, na análise do conto de Ana Paula Tavares, poder-se-á perceber que o “vampiro africano”, em suas ancestralidades culturais não será “demonizado” ou tratado como um agente maligno ou satânico, pois isto seria um erro, posto que elidiria a própria dimensão cultural africana, em detrimento da concepção europeia, ao tentar reconhecer traços puramente fechados de qualquer forma vampiresca na África.

É bom lembrar, aqui, que a relação do vampirismo no continente com o ato de bruxaria e seus pactos com os demônios ou outras formas de monstros já havia ocorrido na cultura europeia, conforme destacam Martha Argel e Humberto M. Neto (2008, p. 18-19), sempre com uma perspectiva hierarquizante, tentando sublinhar as ênfases do legado cultural europeu sobre o africano. Por isso, não é incomum pesquisadores do universo vampiresco adentrar em culturas, que não a europeia, e relacionar os mitos locais, como os africanos, ao arcabouço cultural ocidental, sempre com uma preocupação de destacar a superior relevância deste sobre aquele.

Por fim, o que pretendemos mostrar, a partir da análise dos contos, iniciando com o de Ana Paula Tavares (“O mistério da rua da missão”), é o gesto, bem ao gosto daquela condição pós-colonial (MATA, 2003), de repaginação dos ritos ancestrais, de recuperação destes fragmentos das tradições africanas, desatando-os da sombra da cultura hegemônica europeia, e propiciando, assim, a possibilidade de se pensar uma identidade autônoma, relacionada à própria natureza cultural local.