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Variáveis de julgamento: performance do desvio no percurso de Scott Favor

Sequência I: Mike no prólogo de My Own Private Idaho

4.1 Variáveis de julgamento: performance do desvio no percurso de Scott Favor

My Own Private Idaho, é, dos três filmes vistos em conjunto, o que encara o desvio como “ação coletiva”. Os garotos convivem com grupos de outsiders que possuem um estilo de vida peculiar e organizado se observado dentro da ótima interna seguida por eles. Bob, adaptação direta de Falstaff de Henrique IV, está em posição de líder de um grupo de moradores de um prédio abandonado. Ele se coloca como responsável por um grupo de garotos que se prostitui pelas ruas de Portland e que organizam pequenos roubos e falcatruas para conseguir manter o vício em drogas.

Mike e Scott pertencem a esse grupo. Mas este último carrega em sua figura um elemento de contraposição constante aos universos que frequenta. O personagem de Keanu Reeves tem uma definição clara sobre o que entende por outsider. Por ter escolhido um estilo de vida diferente do que foi criado e socialmente menos aceito, principalmente, ele transita pelos dois grupos sociais e exterioriza características que julga definirem as duas posições.

Filho do prefeito de Portland, Scott se porta como os rapazes de seu grupo de rua quando está na presença do pai e desafia amigos e autoridades que o relembram constantemente da vida que ele abandonou para estar ali em situação marginal. Contudo, com os garotos de rua, ele replica diálogos shakespearianos e se comporta, com ênfase em sua vestimenta, como integrante da sociabilidade que a posição do seu pai lhe proporciona.

Sequência K: Scott de terno junto com o grupo de moradores de rua (47). (48): Scott no gabinete de seu pai, o prefeito.

K (47)(48)

Fonte: DVD de Garotos de Programa.

Scott representa uma consciência da concepção complexa do drama das situações de desvio, da posição outsider diante de um ideal de sociedade que prevalece pela força de uma maioria. E, sobretudo, funciona como vetor de reação. Quando ele vai encontrar o pai ele sabe a reação que irá provocar ao aparecer vestido agregando um estereótipo de exposição do

corpo atrelado à prostituição. O enquadramento corrobora com sua intenção. Em plano médio, Scott aparece parcialmente iluminado por uma luz artificial que cria sombras em seu rosto e corpo, seguindo uma lógica de exposição que preservaria espaços não totalmente visíveis (a sua roupa, por exemplo, a jaqueta com o peito desnudo, partes à mostra). A câmera se posiciona em uma parcial câmera baixa, elevando a figura do personagem que se apresenta em posição de desafio ao pai, K(48). O choque no rosto de seu pai, sentado à mesa, olhando o filho de baixo, com uma câmera alta que centraliza o seu rosto, completam a sensação de choque e desafio de ambientes distintos.

Howard Becker, em revisão à sua teoria sobre o desvio, lembra que antes de qualquer definição fechada, é preciso compreender que não existe uma resposta simples para o que é visto como desvio na sociedade e, incluso em nosso processo de análise, na cultura cinematográfica. Por esta observação, ele desloca o foco de análise aos indivíduos, todos eles, que participam do processo de rotulação e consequente exclusão de indivíduos. Ele ressalta as complexas relações sociais que garantem a imposição de regras por grupos de maior influência, a flexibilidade da aplicação dessas regras e, especialmente, características específicas de grupos sociais que escolhem viver com regras que não são predominantes a toda a sociedade.

Ele apresenta como solução a esta impossibilidade de definição, reafirmando sua posição contrária a estudos de caráter teleológico, a necessidade de analisar o desvio enquanto ação coletiva:

Quando encaramos o desvio como ação coletiva, vemos imediatamente que as pessoas agem atentas às reações de outros envolvidos nessa ação. Elas levam em conta o modo como seus companheiros avaliarão o que faze, e como essa avaliação afetará seu prestígio e sua posição (BECKER, 2008, p.184).

Por esta perspectiva, as reações das pessoas aos atos que podem ou não ser considerados desviantes, são a essência da rotulação e da exclusão de indivíduos. No caso de Scott, ele adotou o estilo de vida e as regras de convívio de um grupo de garotos de rua e está sempre atento às reações das pessoas dos seus ciclos de convívio que garantem o seu pertencimento a uma ou outra dessas esferas de sociabilidade.

Ainda que ele enfrente o líder de seu grupo, Bob (William Richert), o qual considera como um “pai das ruas”, ele invade espaços frequentados pelo pai biológico com seus amigos em uma tentativa de corroborar sua posição de inadequação. Na presença do pai, mantém um

comportamento caricatural e desafiador. Ele escolheu viver como garoto de programa e dá ênfase a sua posição desviante atentando-se às reações que seu comportamento desencadeia.

Mas encara sua situação como momentânea. Pretende retornar aos ciclos de uma alta classe de Portland assumindo o lugar do seu pai após a sua morte. E, quando este momento chega, ele encena um comportamento que garante sua separação definitiva do grupo de outsiders ao qual pertencia.

Outro elemento se sobressai dessa intricada rede de representação desviante: a variável dos julgamentos e das relações de poder em jogo na construção das imagens do desvio e a necessidade de adequação que perde força na narrativa de Gus Van Sant. O foco deixa de ser o ato desviante, em sua concepção negativa, e o discurso, portanto, não segue uma linha pedagógica de ação: ser garoto de programa, ser um viciado e morador de rua, visto em perspectiva coletiva, se relaciona mais às imagens perpetuadas sobre esses indivíduos do que a uma tentativa de identificação dos erros de tais posturas e da busca por medidas de correção. Scott assume a cruzada em busca pela mãe do amigo. Mas a viagem para ele possui outro sentido. Se o deslocamento no road movie por muitas vezes está relacionado à uma busca de sentido alternativo à uma situação anterior ao qual o personagem procura fugir, o binômio da rebeldia e da conformidade são mais claros no percurso deste personagem. O seu retorno é à conformidade que ele havia escolhido combater, provisoriamente.

O filho do prefeito não esconde suas intenções. A viagem com Mike por Idaho até Roma funciona como uma despedida de um aspecto de sua subjetividade. Em trabalho anterior68 explorei a relação que a narcolepsia do personagem Mike, a escolha pelo gênero de

estrada e a personalidade dúbia de Scott, em conjunto, ressaltando um aspecto fragmentado de identidades em uma perspectiva pós-moderna. Para uma discussão estritamente sobre identidade, a abordagem pareceu adequada. Entretanto, estamos lidando com uma categoria distinta, a do indivíduo outsider, e reconhecer a construção subjetiva das personagens implica perceber que as identidades na contemporâneas não se estabelecem mais enquanto singulares, linear e estáveis; e, no que tange às discussões sobre o desvio, precisam ser relacionadas à performatividade social, à flexibilização do sujeito que ainda que aja de maneira combativa, destoante, responde à uma lógica social e às redes de força que a constitui.

Até o momento, em nossa análise, enfatizamos uma construção discursiva que evita, entre outros aspectos, a criação de uma imagem do desvio que corrobore para uma classificação binária definitiva e imutável de outsider/não outsider. Os filmes trabalham em

68 Cf. GOMES, Daniela de Paula. Identidades fragmentadas em Garotos de Programa de Gus Van Sant.

uma chave de contestação de uma visão hegemônica que corrobore com a redução dos indivíduos e sua subjetividade a aspectos corretivos. Um situação ideal, em oposição a uma que a contradiga, não se sobressai como único percurso individual a ser percorrido. Jhonny permanece um foragido que se recusa a ceder à um romance que poderia significar segurança e estabilidade a sua situação. Bob despreza cada minuto da normalidade que a desintoxicação implica e, de fato, o seu discurso é o de retorno à um estilo de vida que é negado por um ideal de estabilidade social.

Mas a trajetória de Scott, colocada em paralelo à de Mike, evidencia talvez um processo de ressignificação de representações estabelecidas colocando em perspectivas aquelas que invadem, que concorrem, que existem e ocupam espaços na memória social, e notadamente cinematográfica. Se as identidades se constituem em oposição a um “outro” ao qual elas não correspondem, existe então um processo que sustenta determinadas categorias de diferenciação. Nesse sentido, é interessante observar uma dimensão pública das identidades, enquanto “codificação, institucionalização, simbolização e monumentalização dos acontecimentos que marcam as comunidades” (MENDES, 2001, p. 195)69. No cinema, a

criação de ícones que representam aspectos gerais de certas subjetividades, o ícone da rebeldia atrelado à jaquetas de couro, núcleo familiar desconstruído e a fúria personificada na velocidade dos automóveis, prevaleceu por anos na cultura cinematográfica e solapou a percepção mais abrangente do problema da rebeldia social. Criavam-se moldes, padrões de comportamento. Pontos de oposição que ajudavam a construir as identidades.

Scott é o rebelde sem causa. Membro de uma família abastada, detentor de privilégios que sua posição carrega, ele representa um mito de rebeldia que na cultura cinematográfica se relaciona à falência da figura do pai, incapaz de fixar um bom exemplo e que resulta no afastamento progressivo do filho. Construção discursiva presente em Rebel Without a Cause (Juventude Transviada, Nicholas Ray), por exemplo, na indignação de Jim Stark com a submissão do pai à mãe.

O retorno a Portland, para Scott, é portanto, um retorno à situação anterior ao seu percurso na marginalidade. O percurso subversivo é expurgado quando ele assume a vida do pai, abandona a prostituição e as relações homoafetivas e se casa, seguindo o ideal familiar redentor. Mas o contraponto, se ele existe, para Van Sant, não é reduzido em simplificações da subjetividade do seu personagem.

69 Mendes trabalha na perspectiva da reafirmação da memória social através de festividades que celebram

aspectos da identidade de comunidades e produzem estabilização. O que é interessante de sua posição em encarar as identidades em sua dimensão pública, quando falamos na cultura cinematográfica, é o poder monumental que as imagens adquirem quando circulam.

Na cena do velório de Bob, que morre com o choque do abandono de Scott, que o humilha e renega na frente dos amigos do pai, agora seu novo grupo, a separação entre essas duas categorias de identidade, é volatizada. Acontece que no mesmo dia, e mesmo local, acontecia o velório do prefeito de Portland, pai de Scott. O artifício parece o de economia narrativa. Mas a intenção se revela como uma comunhão entre projetos sociais constantemente observados em declarada oposição.

Sequência L: Cena do velório do prefeito de Portland e de Bob.

L(49)(50)

(51)(52)

(55)(56)

(57)

Fonte: DVD Garotos de Programa.

Conformação e transgressão são colocados em perspectiva. A cena possui dois ritmos distintos. Ela começa com a câmera chegando pelas costas de Scott, sentado em cadeiras cobertas por manta negra, de frente a um padre que profere os procedimentos funerários. A câmera parece caminhar por um trilho, estável. A música dita o movimento da montagem nos dois núcleos mostrados. A melodia fúnebre é seguida de movimentos de câmera que prolongam os enquadramentos no velório do prefeito. Em seguida um corte brusco, que se segue após um ruído de fora de campo, enquadra Scott e sua esposa, pela lateral. O rosto do rapaz levemente inclinado, L (49), guia a câmera para a ação que acontece em paralelo. A câmera se eleva do solo, lentamente alterando a profundidade de campo e tornando visível um grupo de pessoas reunidas um pouco adiante da cena anterior, em L (50).

O que se segue é uma montagem que alterna do olhar de Scott a planos que aproximam o grupo ao lado em detalhe. Em L (53), Mike parece retribui o olhar para Scott, que agora possui o corpo ainda mais direcionado, L (54) (55), ao grupo de marginais que velam Bob ao lado. O olhar da sua esposa, parece captar o que Scott não revela. E então a cena muda de ritmo. Em L (57) a montagem paralela termina com um grito que derruba Mike de sua cadeira. A câmera então gira em torno do grupo em movimentos bruscos. Câmera na mão, a agitação das pessoas ali encontra correspondente nas imagens que saem de foco, sem

uma preocupação com certa perfeição estética que inicia a cena dos dois velórios. Finalmente o processo se conclui. Scott permanece sentado. Rosto impassível. Mantendo a postura que esperam dele naquele novo papel.

Encarar a posição outsider de Scott como parte de um processo de construção de sua subjetividade não coloca a distinção que o seu comportamento persegue como definição mesma de sua identidade. Diferente de encarar a identidade como o resultado da definição daquilo que ela não é, o comportamento de Scott sugere uma insistência em fazer ser visto ora como um marginal, ora como membro íntegro e moralmente aceito. A jornada de Scott é a da performance, não do ponto simples de oposição. Sua subjetividade existe na repetição de atos, na performance de aspectos que ele entende como definidores das identidades que ele transita.70

Sequência M: Final da cena dos dois velórios.

M(58)(59)

Fonte: DVD Garotos de Programa.

O passado de morador de rua e de prostituição, apesar de negado, não se dissocia da sua tentativa em estabelecer um novo aspecto de sua personalidade que agora ele assume como dominante. Scott se despede. Desvia o olhar [M (59)]. Encerra o seu percurso na narrativa e cede lugar à uma dimensão possível e que no filme prevalece, essencialmente: a da não conformidade da figura de Mike.

70 A performatividade, como chave para as discussões de gênero em Judith Butler, aparece como saída para

compreender uma noção de desvio, que intentamos verificar, volatizada. A condição coletiva de análise proposta por Becker ressalta a repetição de um comportamento como modo de pertencimento à comunidades e a aceitação de suas regras. Em Butler, sobre a percepção de gênero, ela coloca que ele só é “real apenas na medida que é performado” (2003). O gênero é uma repetição, ou imitação, de padrões dominantes de gênero. A identidade desviante, é o resultado de uma rotulação por grupos majoritários, que replicam regras que consideram adequadas, ou seguem leis pré-estabelecidas; ou, na dimensão de sua performance, é o resultado de um comportamento que é repetido, segundo parâmetros da comunidade de desviantes.