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Velhos Guardiões: da memória às mãos, os saberes tradicionais Apinaje

Esteira teórica

CAPITULO 4 PRODUÇÃO E TRANSMISSÃO DE SABERES ENTRE GERAÇÕES

4.1 Velhos Guardiões: da memória às mãos, os saberes tradicionais Apinaje

Ser velho, entre os Apinaje, é uma dádiva e grande privilégio. Entre os pares desta sociedade, sabe-se que os velhos carregam consigo subsídios salutares sobre o modo de ser e permanecer Apinaje. Para Maricota Apinaje, “velho é todo mundo que já viveu foi muito e têm é coisa pa ensinar, ora, num é mais menino que tem perna forte pa correr mundo” (LIMA, 2016).

Os velhos conhecem sobre os tempos das águas, sobre a terra e o que ela oferece. Sabem todo o enredo emaranhado da mitologia e cosmologia que reveste a cultura. Tornam-se guardiões da tradição, no sentido das observações de Maria da Conceição Almeida (2010), segundo qual toda sociedade elege os seus guardiões:

“Esses criadores e lapidadores de representações recebem denominações distintas nas diversas sociedades e tempos históricos: xamãs, pajés, curandeiras, conselho de anciãos, sacerdotes, cientistas. Em algumas culturas eles estão mais próximos do conjunto da sociedade; em outras, mais distantes do cotidiano da população” (ALMEIDA, 2010, p. 49).

Tudo que é adquirido em uma existência, quando o tempo ainda era de brincar, o tempo corrido, na juventude, alcançar responsabilidade de adultos e por fim, o grande acumulo de saberes na velhice, transforma este indivíduo em um baluarte de saberes que não podem nem devem ter fim com a finitude do corpo, a morte.

O acumulo de saber vai acontecendo despretensiosamente, desde que começam a viver em sociedade. Tudo a seu tempo, Eclea Bosi (1994, p. 63), adverte que:

“Há um momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade, deixa de ser um propulsor da vida presente do seu grupo: neste momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de lembrar. A de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade.”

Na visão dos velhos Apinaje, transmitir esse corpo de saberes é questão de honra, e de sobrevivência do corpo “cosmo e mitos”. Cabe aos velhos responder questionamentos de ordem material ou simbólica.

Nesta sociedade aqui apresentada, onde tudo está interligado, também assim os tempos do aprender se faz, nas tarefas simples e práticas como o tecer de uma esteira de dormir, no moquém de uma carne para conservar por mais tempo, no que está proibido do consumo em um tempo de resguardo.

Compreender a dinâmica dos Apinayé, e ver que tudo está conectado em cosmologias e saberes é ler a interrelação do manuseio do material (a feitura do chocalho, a composição dos colares, pulseiras, no fiar das contas e sementes, a harmonia da plumagem nos cocares, a extração da tinta do jenipapo e do urucum para a pintura), com a organização social (quem ensina, quem aprende, quem representa, quem faz o colar, quem faz as pinturas), a linguagem (verbal – é o Apinayé a língua da tradição; não verbal: olhares, gestos, vestuários) e o simbólico (ter uma pintura horizontal é fazer parte do grupo do Sol (Kooti, já a marca do grupo da Lua (Koore) é a pintura vertical, quem pode pegar no chocalho do cantador, além da sua energia, quais outras emanam naquele instrumento?). Na cultura dos Apinayé essas dimensões estão imbricadas na tradição e revelam a complexidade da natureza humana (LIMA; PACHECO, 2014, p. 19 apud ZAPAROLI, 2016, p. 109).

É o habito, o cotidiano, construindo conhecimento mítico e cósmico todo tempo, que se vive. Não se aprende algo pelo simples fato de saber fazer, não se ensina nada sem sentido para quem faz e quem aprende. O tempo é desapressado, e existe o tempo para cada coisa, e o aprender de cada coisa. De certo que o tempo do ensinar também chegará.

Figura 32 - Avó observando pacientemente a peça que o neto elabora

Durante nossa estadia entre os Apinaje, dos velhos, nunca ouvimos evocando os mais jovens ou crianças para o aprendizado. Contudo, das vezes que os vimos sendo interpelados sobre o como fazer, repetiam a ação quantas vezes o outro quisesse permanecer observando. Nestes fragmentos de tempos, foi possível observar os velhos incentivando ao experimento munidos de uma pedagogia paciente. Cabe ressaltar que os mais velhos advertem que é preciso dominar o processo da tessitura das palhas, pois precisam mostrar para seus netos que na juventude se dedicaram a aprender. Contam que ficariam envergonhados se nada tivessem para ensinar aos jovens:

“Aprendi com minha mãe e com minha tia, e agora ensino para meus netos, e os netos de minhas irmãs, se eles quiserem aprender eu tô aqui e mostro” (Joanita Apinaje, março de 2018, Oficina de trançados, Aldeia Abacaxi). Entre os velhos Apinaje, alguns artesãos se destacam na elaboração dos objetos tecidos nas palhas. Na pequena aldeia Aldeinha, é possível encontrar o velho

Candido, a se ocupar de tecer cofos de “quatro palhas”33, que segundo ele, “só existe

na nossa cultura” em um processo que demanda bastante tempo.

Candido tecendo o cofo Candido com o cofo finalizado

Figura 33 – O velho Candido, tecendo cofo

Candido aprendeu com os mais velhos, e está sempre disponível para explicar, mostrando, como se arranja um daqueles objetos. Segundo o próprio artesão, esses “cofinhos” (os tamanhos vão de acordo com a necessidade do uso da peça) podem alegrar bastante quem é presenteado com a peça.

Na aldeia Areia Branca, avizinhada da aldeia São Jose, mora Joanita Apinaje, que responde pelo cacicado há bastante tempo. Reside igualmente, sua parentela, e seu companheiro, o velho Claudio, considerado entre os seus por portar na mente e nas mãos um acumulo de fragmentos da cultura Apinaje. Dos saberes que Claudio domina, a arte de tecer palhas para a confecção de cofos, balaios e esteiras, se entrelaçam a arte de tecer narrativas do passado de seu povo.

33 Os mais comuns possuem somente duas talas, com aparência dos confeccionados entre os não- indígenas.