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Em meus nervos, a arder, a alma é volúpia... Sinto Que o Amor embriaga a Íon e a pele de ouro. Estua, Deita-se Íon: enrodilha a cauda o meu Instinto Aos seus rosados pés... Nyx se arrasta, na rua... Canta a lâmpada brônzea? O ouvido aos sons extinto Acorda e ouço a voz ou da lâmpada ou sua.

O silêncio anda à escuta. Abre um luar de Corinto Aqui dentro a lamber Hélada nua, nua.

Íon treme, estremece. Adora o ritmo louro

Da áurea chama, a estorcer os gestos com que crava Finas flechas de luz na cúpula aquecida...

Querem cantar a Íon os dois seios, em coro...

Mas sua alma – por Zeus! – na água azul doutra Vida Lava os meus sonhos, treme em seus olhos, escrava.199

“Ad Veneris Lacrimas” nos apresenta um jogo inusitado: “Aos seus rosados pés... Nyx se arrasta, na rua...”. “Rosados” espelha a cor violeta (Íon - violeta em grego). “Pés...” integra o espelhamento do signo “Íon”, como analógico à flor, numa aproximação das cores rosa e violeta. Em “Nyx se arrasta, na rua...”, os fonemas-espelho montam a sensação de permanente fricção. Espelham-se entre si e espelham o atrito, a noite-lixa fica, no espelho, uma imagem invertida de “rosados pés...”. “Nyx” (do grego nux - noite) nos faz suspeitarmos de

199

KILKERRY, Pedro. Ad Veneris Lacrimas. In: CAMPOS, Augusto de. Revisão de Kilkerry. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 94.

121 espelhamento com “nuit” de Mallarmé, acusado pelo autor de seu som aberto não propiciar o escurecimento do verso,200 Kilkerry, de sua parte, vale-se, em seu senso de pesquisa, da noite grega para enegrecer e ao mesmo tempo friccionar o soneto. “Se” é espelho distorcido de “yx” de “Nyx”. “Na rua” reflete “arrasta”. Nas reticências, o continnum de “rua...” é espelho do continnum dos “pés...”. Em “nervos, a arder”, um espelhamento semântico-musical; por último, “a lamber Hélada nua, nua” os fonemas línguo-palatais são espelhos de imagens auditivas da sensualidade das lambidas da lua de “Corinto” em “Hélada”, (nome de mulher, derivação de Hélade, denominação primitiva da Grécia). Cada léxico recebe ao menos um toque de língua, “Hélada” espelho sonoro de “a lamber”; “nua”, de “nua”.

Agora, um rio, água esparsa... Nas águas claras de um rio, Lavem-se as penas à garça Do riso branco e sadio!201

Nesta estrofe de “Evoé”, em meio ao tom místico do fragmento, “rio” espelha “rio”, espelhados em distorção pelas propriedades sonoras e semânticas de “riso” (semânticas, uma vez que seu adjetivo branco se entrelaça com o claro das “águas”). “Águas claras” espelham “água esparsa...”. “Garça” espelha sonoro-semanticamente “esparsa...”; “branco”, “claras”. A assonância em “água esparsa...” sugere, assim como em “Nas águas claras”, em paranomásia, o movimento no rio (consideremos as reticências) pelo fluxo de /a/ na estrutura. Podemos ainda jogar de modo mais especulativo com o menos contundente: água-agora, agora-garça, riso-rio-sadio, os sentidos se interpenetram a ponto de os objetos perderem a lógica das superfícies.

200

JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 154. 201

KILKERRY, Pedro. Evoé. In: CAMPOS, Augusto de. Revisão de Kilkerry. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 105.

122 RITMO ETERNO

Abro as asas da Vida à Vida que há lá fora.

Olha... Um sorriso da alma! — Um sorriso da aurora! E Deus — ou Bem! ou Mal — é Deus cantando em mim, Que Deus és tu, sou eu — a Natureza assim.

Árvore! boa ou má, os frutos que darás

Sinto-os sabendo em nós, em mim, árvore, estás. E o Sol, de cujo olhar meu pensamento inundo, Casa multiplicando as asas deste mundo... Oh, braços para a Vida! Oh, vida para amar!

Sendo uma onda do mar, dou-me ilusões de um mar... Alvor, turquesa, ondula a matéria... É veludo,

É minh'alma, é teu seio, e um firmamento mudo. Mas, aos ritmos da Terra, és um ritmo do Amor? Homem! ouve a teus pés a Natureza em flor!202

No soneto “Ritmo Eterno”, novamente se verifica um teor místico: “Que Deus és tu, sou eu - a Natureza assim”. Numa abertura ao encanto natural, numa eternidade supratemporal, o sujeito se dilui na “Terra”, “cantando” no “ritmo do Amor”. “Árvore! boa ou má, os frutos que darás / Sinto-os sabendo em nós, em mim, árvore, estás” ratifica a integridade, numa implosão das superfícies: “E o Sol, de cujo olhar meu pensamento inundo, / Casa multiplicando as asas deste mundo...”. O Sol-olho leva as imagens para a consciência do sujeito. A transcendência de si é causada pela unificação espírito-mundo, o que justifica o espelhamento de “asas” (índice de vôo, de ascensão, simbolizando também a multiplicidade de alegrias) em “Casa”, representação superação do afastamento com a natureza: “Sendo uma onda do mar, dou-me ilusões de um mar... / Alvor, turquesa, ondula a matéria... É veludo, / É minh’alma [...]” (observe-se como “ondula a matéria...”, em que a vibração da alma se torna idêntica à da matéria, é semelhante à estrutura sugestiva de oscilação do soneto “Cetáceo”: “ironia ondulosa”). Aqui, não há a abstinência do objeto, não há melancolia, é um soneto feliz.

202

KILKERRY, Pedro. Ritmo Eterno. In: CAMPOS, Augusto de. Revisão de Kilkerry. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 89.

123 O MURO

Movendo os pés doirados, lentamente, Horas brancas lá vão, de amor e rosas As impalpáveis formas no ar, cheirosas... Sombras, sombras que são da alma doente!

E eu, magro, espio... e um muro, magro, em frente, Abrindo à tarde as óbitas musgosas.

- Vazias? Menos do que misteriosas – Pestaneja, estremece... O muro sente! E que cheiro sai dos nervos dele, Embora o caio roído, cor de brasa. E lhe doa talvez aquela pele! Mas um prazer ao sofrimento casa...

Pois o ramo em que o vento à dor lhe impele É onde a volúpia está de uma asa e outra asa...203

“O Muro”, por sua vez, em seu interessante jogo de correspondências e de projeções encena as angústias das limitações do sujeito. De início, o título do soneto simboliza divisão, barreira, privação, assim, afasta-se do que depuramos em “Ritmo Eterno”. Em “E eu, magro, espio... e um muro, magro, em frente”, considerando a finura do olhar, a magreza, percebe-se um espelhamento entre o sujeito e o “muro”, uma projeção em sua “pele” doída, em seu “caio ruído”. Não obstante, essa espécie de emoção emparedada (“O muro sente!”) guarda em si uma contrapartida: “Abrindo à tarde as órbitas musgosas” (espelhamento semanticamente invertido, “órbitas musgosas”, e sonoramente afim). A abertura improvável desses musgos (num embate de obstrução e passagem) amantes das sombras, “que são da alma doente”, desse sujeito-muro, ratificando o contraditório (como a mobilidade calma dos “pés doirados” contraposta ao pétreo estático), aponta para tentativa de superação do tédio e da dor. Aliás, é a partir do choque do vento com o paredão que o sujeito pode experimentar uma agonia

203

KILKERRY, Pedro. O Muro. In: CAMPOS, Augusto de. Revisão de Kilkerry. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 90.

124 fecunda, onde “um prazer ao sofrimento casa”. As irritantes perturbações são os dispositivos do prazer. Registre-se que o sentido impalpável das formas aparece após o movimento dos “pés”. Como o cheiro fascinante que “sai” dos “nervos”, as asas nascem do Baixo. Notemos a constante perturbação de Kilkerry para com o metafísico. Augusto de Campos elege como a palavra-chave, como o termo mais recorrente na lírica de Pedro Kilkerry a palavra “asa”.204 Chama a atenção a diversidade de posições que o autor assume com relação ao tema.

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