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A verdade é que a poesia não lida quase sempre não passará disto Condenada a juntar-se

No documento Seis quilômetros entre nós dois (páginas 54-57)

ao rio vasto e invisível de refugo que aflui dos lugares distantes.

Contos de Lugares Distantes | Shaun Tan

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Cheguei ao destino, o mercado vermelho defronte à BR-116. De tão desproporcional em tamanho e arquitetura em relação às estruturas que o cercam fica claro que, mesmo em estado de abandono, o local é o centro diante do qual os vizinhos orbitam.

À sua direita, em uma pequena viela, enfileiram-se uma borracharia, uma barbearia e uma loja que reúne serviços de cabeleireiro e bar na esquina, o Toinho Cabeleireiro. Ao lado, uma série de depósitos antigos a portas fechadas, que costumavam ser ligadas ao comércio de automóveis. Com a inauguração da Raul Barbosa em 1988, esse tipo de venda popularizou-se. Surgiram no bairro lojas de peças de automóveis e caminhões, revendedoras, oficinas mecânicas.

Do outro lado, na Rua Tenente Roma, entre o mercado e a quadra, está o Bar da Loura, uma casinha de cimento recoberta por calhas de metal laminado. Do balcão é possível ver as bebidas, salgadinhos, uma geladeira e a Lôra preparando o almoço do dia na cozinha ao fundo. Na parede lateral, estão grafados anúncios e avisos: “Chaveiro Zezinho”; “É proibido som de carro”. Perto das mesas, a televisão sobre duas caixas de cerveja, altura ideal para os fregueses acompanharem o jogo de futebol ou o noticiário.

Durante as tardes, as cadeiras de plástico do bar são os locais mais tranquilos da região. Sob as copas de árvores imensas, que cobrem o letreiro do local, sou abraçada pela sombra generosa. A brisa é fresca, fazendo as folhas chiarem em certos momentos. O som dos pneus no asfalto próximo lembra-me o das conchas ocas da praia – o zumbido abafado, que dizem ser das cidades submersas habitadas por netunos, sereias, cavalos-do-mar e outras criaturas fantásticas.

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Sob os trovões da superfície, nas profundezas do mar abissal, o kraken dorme sempiterno e sossegado sonos sem sonhos. (...) Jaz por ali há séculos e ali continuará adormecido, cevando-se de imensos vermes marinhos até que o fogo do Juízo Final aqueça o abismo. Então, para ser visto uma só vez por homens e por anjos, rugindo surgirá e morrerá na superfície.

O Livro dos Seres Imaginários | Jorge Luis Borges

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Dali vejo a quadra, estendendo-se por trás do mercado. Duas traves brancas de metal erguem-se do chão cimentado, com as áreas demarcadas em vermelho e azul. É cercada pelo muro com combongós cor-de-tijolo, parcialmente deteriorado.

Sou um zero à esquerda em matéria de futebol. Já perdi as contas de quantas vezes tentaram me explicar o que é um impedimento. Sei que tem alguma coisa a ver com pelo menos um jogador do mesmo time antes do goleiro, ao mesmo tempo em que um jogador do outro time vem no ataque... é isso?

Era por volta de 20h, o jogo acontecia na quadra iluminada. Os times, um de uniforme azul, o outro de verde, contavam cada um com cinco jogadores. Eram garotos entre 12 e 15 anos, um deles, do time verde, um pouco mais velho. Todos de tênis. Só o que eu conseguia ver eram aqueles cambitos brigando entre si. Os movimentos rápidos, alguns sinuosos (recebe, gira com o pé e toca), a luta para roubar a bola do outro no escanteio, os chutes na trave. Em um passe, um dos rapazes deixou a bola passar entre as pernas. A cara de decepção dele foi impagável. Ri internamente, mas com certeza eu faria muito pior.

Os jogos e rachas acontecem ali praticamente durante toda a semana, à noite. No sábado de manhã, funciona uma espécie de escolinha de futsal, organizada por Hozannan Simplício, a PSV Futsal. Há 26 anos, ele faz um trabalho voluntário na quadra, treinando “mais de 130 atletas” de todas as idades, especialmente garotos entre 8 e 13 anos. “Aqui ninguém paga nada”, comenta Hozannan. Ele conta que sempre conversa com os pais dos alunos para assegurá-los de que os jogos não tem nada a ver com drogas. “Aqui é uma área de lazer”, comenta. A quadra, construída em 1982, é mantida com a ajuda de pequenas empresas do bairro, como a Cris Piscinas e a Aerofrutas.

Ninguém apita o jogo, nem mesmo sei o placar direito. Dois jogadores reservas, um de cada time, estão com um grupo mais afastado, sentados no banco de cimento que circunda a quadra. Poucas pessoas assistem à partida. Um garotinho de uns oito anos, pés descalços, sem camisa e de boné preto virado para trás, brinca sozinho na lateral do campo. Executa jogadas imaginárias, passes mirabolantes, bolas no peito. Vibra sozinho.

Ali perto, as estruturas armadas da feira das quintas já ocupam o entorno do mercado. O ritual de montagem ocorre há, aproximadamente, dez anos. Estacas de madeira presas a cavaletes, embaixo de lençóis de lona negra. De manhã o cenário modifica-se por completo, torna-se vivo em cores, texturas e materiais.

Perto da pista, um odor forte de esgoto impregna o ar. Imagino que venha das poças acumuladas em buracos na terra batida, em toda a extensão das primeiras bancas. A feira se divide basicamente em duas metades: no antigo estacionamento do mercado, ficam os produtos frescos. Na Tenente Roma, dezenas de barracas de roupas e quinquilharias. À medida que ando, o cheiro diminui, tornando-se mais agradável permanecer ali. Compro algumas blusas bonitas a cinco reais cada.

Surpreendi-me com a figura de uma galinha aberta, manipulada pelas mãos nuas de um vendedor. Desviei a vista, um reflexo aversivo àquela intimidade exposta. Pedro, o vigia do mercado, me contou que a fiscalização sanitária pouco aparece na feira. Dona Mirian foi tachativa. “Tenho nojo!”.

São nas quintas pela manhã que o mercado se apruma. De portões abertos e mercadorias organizadas de forma vistosa, para atrair eventuais clientes. É o único dia em que, seguramente, encontrarei dona Alda, mais enfeitada que de costume, com vestido de chiffon, brincos brilhantes verdes-jade.

Maria, que nunca quis conversar de fato comigo, me recebe com um sorriso atencioso. “Bom dia, dona Maria!”. Seu box está lotado, postos no balcão produtos

normalmente empilhados na parte de baixo de sua prateleira ou aglomerados em cantos escondidos. São bacias, panos de prato, rodos, vassouras, caixas de ovo, galões de água, rolos de papel higiênico, pás, peneiras, colheres de plástico, esmaltes, pilões, capas para cerveja, garrafas com café, desodorantes, escovas de dentes, isqueiros.

No documento Seis quilômetros entre nós dois (páginas 54-57)