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3. RAP – A CANÇÃO DAS PERIFERIFERIAS EXISTENCIAIS

3.1 NADA COMO UM DIA APÓS OUTRO DIA: NO LIMIAR ENTRE A REVOLTA E A ESPERANÇA.

3.1.2 A VERDADE DE VOZES PERIFÉRICAS

Entre as 20 faixas que compõe o álbum Nada como um dia após outro dia, 5 são compostas somente por falas (locução, narração ou diálogo): Sou + você, Vida Loka (Intro), 12 de Outubro, Fone (Intro) e Trutas e Quebradas; 9 apresentam falas que introduzem ou que aparecem em meio às canções: Vivão e Vivendo, Vida Loka, Pt.1, Negro Drama, A Vítima, A vida é desafio, De Volta à Cena, Crime Vai e Vem, Vida Loka, Pt.2 e Da Ponte pra Cá; por fim, outras 6 faixas não apresentam registro de fala: Na Fé

Firmão, Eu sou 157, 1 por Amor, 2 por Dinheiro, Otus 500, Jesus Chorou e Estilo Cachorro.

Título (CD1) Presença ou

predomínio da fala

Natureza da fala

1) Sou + você Sim Locução*

2) Vivão e Vivendo Sim Locução

3) Vida Loka (Intro) Sim Diálogo*

4) Vida Loka, Pt.1 Sim Diálogo

5) Negro Drama Sim Narração (desabafo)

6) A Vítima Sim Diálogo

7) Na Fé Firmão Não /

8) 12 de Outubro Sim Narração (desabafo)*

9) Eu Sou 157 Não /

10) A vida é desafio Sim Narração (desabafo)

11) 1 por Amor, 2 por dinheiro Não /

12) De volta à cena Sim Narração

13) Otus 500 Não /

14) Crime Vai e Vem Sim Diálogo

15) Jesus Chorou Não /

16) Fone (Intro) Sim Diálogo – conversa ao telefone*

17) Estilo cachorro Não /

18) Vida Loka, Pt. 2 Sim Diálogo

19) Trutas e Quebradas Sim Agradecimentos*

20) Da ponte pra cá Sim Locução

* somente fala

Como se observa, ainda que apenas de modo meramente quantitativo, o grupo de rap fez questão de revelar seu compromisso com a fala, marca fundamental do gênero

que aqui estudamos. Fica exposta uma necessidade de expressão da fala muito maior do que dos arranjos melódicos que configuram o canto. Embora essa não seja a preocupação que fundamenta este trabalho, tal observação faz-se necessária, uma vez que essa predominância da fala sobre o canto se converte nos contundentes recursos de oralidade presentes não só nos textos do álbum, mas reconhecidos como traço distintivo do rap.

Para analisar a oralidade como recurso enunciativo que persegue o efeito de sentido de realidade, recorremos à primeira e à ultima faixa de Nada como um dia após outro dia: Sou + você e Da ponte pra cá, respectivamente. Em ambas as faixas são percebidos simulacros de uma transmissão de rádio, que no caso da primeira funciona como uma espécie de mensagem motivacional para o sujeito da periferia e na segunda situa o enunciador em um final de noite / início de um novo dia: “São 23 minutos de um novo dia”.

Sou + você

Estamos iniciando nossas transmissões Essa é a sua rádio Êxodos

Hei! Hei!

Vamo acordar, vamo acordar, porque o sol não espera, demorou, vamo acordar

O tempo não cansa

Ontem a noite você pediu, você pediu... Uma oportunidade

Mais uma chance, como Deus é bom, né não nego? Olha aí, mais um dia todo seu

Que céu azul louco hein?

Vamo acordar, vamo acordar, agora vem com a sua cara, sou mais você nessa guerra

A preguiça é inimiga da vitória, o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar

Não vou te enganar, o bagulho tá doido e eu não confio em ninguém Nem em você, os inimigos vêm de graça

É a selva de pedra, ela esmaga os humildes demais Você é do tamanho do seu sonho, faz o certo, faz a sua

Vamo acordar, vamo acordar, cabeça erguida, olhar sincero, tá com medo de quê?

Nunca foi fácil, junta os seus pedaço e desce pra arena

Mas lembre-se: Aconteça o que aconteça, nada como um dia após outro dia.

(RACIONAIS MC’s. Sou + você In: Nada como um dia após outro dia. São Paulo: Cosa Nostra. 2002.)

A estrutura narrativa do texto apresenta um destinador que tenta persuadir seu destinatário: “Vamo acordar, vamo acordar, porque o sol não espera, demorou, vamo acordar”. Por se tratar do simulacro de uma transmissão de rádio, pode-se considerar o “locutor” como sendo destinador-manipulador e o ouvinte como destinatário-julgador. Assim, o que é observado no texto é a tentativa do destinador-manipulador em fazer com que o destinatário mude de estado.

Oscilando entre a provocação e a sedução, o destinador procura fazer com que o destinatário saia de uma situação de fraqueza (ou preguiça) e assuma uma postura de força (coragem) diante do dia que está começando: “A preguiça é inimiga da vitória, o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar” (provocação), “Você é do tamanho do seu sonho...” (sedução). Dessa forma, a configuração sêmio-narrativa do texto acima

prescrito, chama a atenção para a oposição força versus fraqueza, que configura seu nível fundamental, pois é preciso ser forte para enfrenar a “selva de pedra”, uma vez que “ela esmaga os humildes demais”, ou seja os fracos.

O destaque no percurso do destinador-manipulador, fica por conta do fato de que a narração se encerra na própria fala do “locutor”, não há registro de uma resposta por parte do “ouvinte”. Desse modo, o conteúdo narrado limita-se à própria ação do narrador como atitude persuasiva que não dá espaço para outra voz, conferindo-lhe, inclusive, dentro de seu universo textual, autoridade judicativa que lhe permite dizer que não confia em seu narratário: “Não vou te enganar, o bagulho tá doido e eu não confio em ninguém / Nem em você...”. Assim, retornando à oposição fundamental que nos é apresentada pela letra (força versus fraqueza), o nível narrativo deixa evidente a força do narrador diante da “fraqueza silenciosa” de seu narratário.

Antes, porém, da instituição do ouvinte como destinatário, o locutor se reporta a um primeiro destinatário que cumpre no texto uma função de sancionador, a mãe do próprio destinador. Ao dizer “Benção, mãe”, o destinatário pede para que sua mãe sancione positivamente as ações de seu novo dia. Ao mesmo tempo, marca o texto com um traço importante do éthos desse destinador, seu caráter de proximidade com a figura materna e seu consequente respeito por ela. O que leva a crer que essa seria uma das fontes da força daquele que fala, além de levar a uma ambivalência do próprio título da canção: Sou + você, uma vez que o enunciador poderia estar a um só tempo se referindo ao ouvinte, em uma mensagem de motivação e incentivo ou à sua mãe em uma clara demonstração de carinho, admiração e reconhecimento de um modelo de força e inspiração.

O estatuto da univocalidade presente no texto intensifica seu ímpeto discursivo, incorporado em figuras de força como o sol (“o sol não espera”), o tempo incansável (“o tempo não cansa”) e a guerra (“sou mais você nessa guerra”). Dessa forma, constrói-se um discurso marcado pela altivez e pela força, não restando espaço para a fraqueza, representada no texto pela figura da humildade: “É a selva de pedra, ela esmaga os humildes demais / Você é do tamanho do seu sonho, faz o certo, faz a sua”.

Note-se que a presentificação do texto que marca a concomitância entre o momento da ação e o da enunciação provoca um efeito de sentido de realidade, sobretudo, se for tomado o aspecto durativo da ação do narrador já no inicio do texto: “Estamos iniciando nossas transmissões”. Tal “ilusão” de realidade provocada pelo simulacro de uma transmissão de rádio recobre toda a superfície textual do álbum dos Racionais MC’s. Como já foi dito anteriormente, cada canção representa um capítulo de Nada como um dia após outro dia e a letra da primeira faixa que aqui é analisada situa o enunciatário no tempo presente e o convida a fazer uma experiência do que é o universo do enunciador.

Para isso, entretanto, faz-se necessário, desde a primeira canção, ter coragem e força para suportar as investidas de uma difícil realidade figurativizada pela “selva de pedra”, espaço de selvageria onde somente os mais “fortes” sobrevivem: “Vamo acordar, vamo acordar, cabeça erguida, olhar sincero, tá com medo de quê? / Nunca foi fácil, junta os seus pedaço e desce pra arena / Mas lembre-se: Aconteça o que aconteça, nada como um dia após outro dia”.

Ainda perseguindo os efeitos de realidade trazido pela letra de Sou + você, há de se observar o registro informal do texto assinalado pela oralidade presente na forma verbal “vamo” ao invés de “vamos”: “a Vamo acordar, vamo acordar...” ou ainda na concordância nominal irregular de número: “...junta seus pedaço e desce pra arena”. Além disso, a construção do texto parece ser uma sequência de frases que têm na isotopia temática da coragem e da força seu único elo coesivo. Trata-se, assim de uma simulação de fala cotidiana instanciada pela ideia de motivação, desconsiderando a necessidade de dispositivos gramaticais para a realização de coesão textual de acordo com os padrões da gramatica normativa, o que promove no texto um efeito de espontaneidade.