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“Dizem ou insinuam alguns que a filosofia já valiosa ou susceptível de valorizar-se é universal e que, portanto, não é legítimo falar de filosofia portuguesa. Admitem, segundo parece, que se fale de poesia portuguesa, de pintura ou de música portuguesa; que se fale de filosofia portuguesa isso não aceitam. A universalidade para este tipo de pensar e julgar exclui a singularidade e a particularidade.” José Marinho, 2007:280. Leonardo Coimbra afirma na Tribuna, em 1920, o que entende por “liberdade de pensamento” não significando esta a acção desencadeada por caprichos ou associações

de ocasião, sem continuidade, nem sequência, nem ajustamento às formas e exigências da realidade (2007-a:61). Para ele, não era na obra realizada, mas na realização da obra,

que deveríamos procurar a liberdade, aliás, algo que vem confirmar a sua filosofia criacionista que marcará profundamente o contexto cultural da época.

“Qualquer corpo de doutrinas já feito é decomponível, real ou artificialmente, em elementos; qualquer síntese, é desdobrável em parcelas analíticas. Mas a actividade que organiza a síntese, o seu crescimento pela assimilação de novos elementos, é que é irredutível a qualquer dos elementos.

Essa a liberdade” (Id., ibid.:63).

Não é arbitrariamente que, na nossa proposta de integração da problemática da “filosofia em Portugal” no PFES, sugerimos uma abordagem didáctica que se inicie a partir do texto emblemático de Agostinho da Silva, As sete cartas a um jovem filósofo.

Perante os seus textos, perante a sua originalidade e a sua criatividade mobilizadoras, somos testemunhas da impossibilidade de afirmarmos a inexistência de filósofos portugueses, pois basta a existência de apenas um para invalidar a premissa inicial. Felizmente, para nós, existem mais. Persistir nessa afirmação inexplicável era negar a cada português a qualidade de pensar filosoficamente, ou mais grave, retirar à língua portuguesa a capacidade de elevação (também de mergulho, para não ficarmos preso às metáforas aéreas tão caras à filosofia) da expressão filosófica. Agostinho da Silva, neste contexto, é um flagrante contra-exemplo desta ideia difundida.

A este propósito, Maria José Cantista afirma que durante muitos anos foi tido como ponto assente a nossa inabilidade congénita, enquanto portugueses, para a filosofia (Cf. 1992:73); pela nossa parte, não sabemos se esta inabilidade é ou não é defendida de uma forma directa no programa curricular da disciplina de filosofia do Ensino Secundário, mas, pelo menos, a desconsideração pelo pensamento português é ponto assente no mesmo. Não consistirá a inexistência da referência à “filosofia em Portugal” uma clara aceitação da ideia de incapacidade congénita do povo português para a filosofia? Que consequências pode implicar para a filosofia e para o seu ensino esta concepção tão linear do pensamento filosófico ?

Com esta nossa proposta não pretendemos alterar estrutural e radicalmente o currículo desta disciplina, neste nível de ensino, até porque a abordagem desta problemática junto dos jovens seria de carácter opcional, como acontece no caso dos restantes “temas/problemas” previstos na sub-unidade 4 da 2.ª unidade do PFES “Temas/problemas do mundo científico contemporâneo”. Prezaríamos que ficasse bem clara a ideia de que, para além de reconhecermos a nossa condição de aprendizes, de sacrílegos estagiários, compreendemos, também, as restrições de diversa índole deste estudo, aliás, realizado em simultâneo com o nosso trabalho na Escola Secundária/3 Aurélia de Sousa.

A nossa proposta consiste, assim, na integração da problemática da existência ou da inexistência de uma “filosofia em Portugal” como tema/problema do nosso mundo

contemporâneo; sugerimos que tal problemática deva ser acompanhada, didacticamente,

pela análise do texto Sete cartas a um jovem filósofo de Agostinho da Silva. Tendo-se em conta o nível de ensino a que se destina, a integração desta problemática não pretende exaurir os domínios do pensamento filosófico português, ainda que se proponha partir do exemplo de vida e obra de um filósofo peculiar para problematizar a questão da especificidade do pensamento filosófico português e da sua presença nem

sempre reconhecida (aliás, factor sintomático) na nossa cultura. Com a integração desta problemática, para além de motivarmos os alunos para problemas inerentes à nossa cultura, fomentamos uma abordagem crítica do seu próprio contexto mais imediato, abrindo-se, deste modo, horizontes de futuras transformações estruturais da sociedade.

Foi também tendo em conta a especificidade dos alunos que decidimos escolher o citado texto de Agostinho da Silva, porquanto personifica uma introdução exemplar a uma concepção mais problemática da própria definição de filosofia, propiciando-se um encontro entre o aluno e uma discursividade aparentemente simples, mas que recolhe nessa simplicidade a força e o desafio de um pensar criativo. Propomos, para além disso, como complemento, o visionamento do documentário em DVD Agostinho da

Silva: um pensamento vivo, para que esse encontro possa ser imagético ou melhor,

audio-visual. Os alunos, a partir desta experiência, poderão visualizar e considerar a profunda indissociação que existe, no caso de Agostinho da Silva, entre o seu pensamento e a sua vida, inscritos na vitalidade de uma sabedoria não conformada, rebelde e interventiva, em contraposição às concepções meramente formalistas, no sentido pejorativo do termo, de filosofia.

Sublinharemos, ainda, que a escolha deste autor não é a única possível para cumprir a integração da problemática em causa no PFES; outros pensadores poderiam ser eleitos, certamente entre muitos nomes, estariam: Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, José Marinho e Eduardo Lourenço. A nossa escolha deve-se ao facto de Agostinho da Silva possuir peculiarmente o dom da palavra oral (até mesmos os seus textos são revestidos por esta oralidade); a interpelação mobilizadora dos seus textos e entrevistas constitui-se num forte potencial didáctico para o professor de filosofia explorar com os alunos no Ensino Secundário. A sua atitude pessoal ao longo da vida foi fundamentalmente uma atitude problematizadora, nunca defendendo uma filosofia de respostas acabadas, preferindo muito mais a inquietação e a dinâmica da incerteza do que a visão calmante, unívoca e centrífuga de (uma) qualquer verdade. Mostrou-se intimamente grato a todos aqueles que o criticavam e receou os que o seguiam como mestre; foi um exemplo de quem cultivou a filosofia com amor e com esforço, envolvendo várias faculdades humanas nessa insigne tarefa37. Foi um crítico tenaz do