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VERSUS R AUL C ORTEZ

No documento O DO MITO POR (páginas 120-124)

“O texto deixa indeterminada uma infinidade de momentos. A grande flexibilidade do teatro vivo permite preencher os vãos e vácuos de mil maneiras, conforme a época, a nação, a concepção e o gesto”.90 Até o momento essas palavras de Anatol Rosenfeld fizeram sentido para o trabalho de direção de Fernando Peixoto, que conseguiu preencher os vãos da obra molieresca de maneiras peculiares, inerentes a sua “época, a nação, a concepção e o gesto”. Aliado ao trabalho de direção, há também o papel fundamental exercido por Flavio Império na cenografia, preenchendo estes vácuos do texto teatral.

Todavia, deixamos em aberto a peculiaridade da interpretação do ator na cena de Dom Juan. Conforme Gianni Ratto “não adianta: do ator não se escapa; sozinho ou múltiplo, ele é o teatro, a cenografia, o figurino, a sonoplastia, a luz, a sombra, a música, o canto, a palavra: o restante é pirotecnia, malabarismo, fogo de artifício”.91 Nesse sentido, as alterações de elenco trouxeram mudanças significativas dentro da encenação de Dom

Juan.92 Entre elas, a que mais chamou a atenção tanto do crítico Sábato Magaldi quanto de

Fernando Peixoto foi a substituição de Guarnieri por Raul Cortez na interpretação do protagonista. Magaldi, na crítica Don Juan, considera que

Gianfrancesco Guarnieri fazia um Dom Juan demoníaco, numa linha de extrema racionalidade, que até certo ponto contrastava com o envolvimento emocional da encenação. Raul Cortez sublinha agora a facêta vital de Don Juan, o que, aliado à sua figura esguia, se coaduna com o espírito buscado pelo diretor.93

Sábato Magaldi, enquanto crítico e espectador do espetáculo, observou que as duas interpretações do mesmo personagem possuem características próprias e específicas que, obviamente, são determinadas pelo perfil do ator que o interpreta. O crítico aponta

90 ROSENFELD, Anatol. Prismas do Teatro. São Paulo/Campinas: Perspectiva/Ed. da Universidade de

São Paulo/Ed. da Universidade de Campinas, 1993, p. 22.

91 RATTO, Gianni. Antitratado de Cenografia: variações sobre o mesmo tema. São Paulo: Editora

SENAC, 1999, p. 41.

92 Após várias encenações tendo Gianfrancesco Guarnieri no papel título, ele e outros atores afastam-se das

encenações e são substituídos. O protagonista é revivido por Raul Cortez, Sganarelle por Flávio São Tiago, D. Luis por Luis Fernando, Elvira por Esther Góes, e O Pobre e Sr. Domingos por Renato Dobal.

outra questão interessante, o fato de Cortez apresentar “o espírito buscado pelo diretor”. Esse espírito é ligado ao enfoque rebelde e hippie que Peixoto buscou imprimir na encenação. O encenador, porém, mantém uma postura neutra em relação a esses dois personagens. Reconhece as diferenças, contudo não afirma qual deles encarnou melhor o espírito que ele buscava. Ao rememorar a encenação, comenta sobre a substituição e, apesar de afirmar que a peça continuou a mesma e seu sentido o mesmo, reconhece que Raul Cortez trouxe para a cena de Dom Juan novas nuanças.

Houve uma mudança significativa, porque substituir o Guarnieri pelo Raul Cortez neste momento tem inclusive uma postura política que muda, não é, porque eu imagino que o Guarnieri, [...] mas eu penso que o olhar do Guarnieri, mesmo trabalhando uma personagem rebelde, ele tinha o horizonte da questão do revolucionário...

[...] é curioso que quando eu penso as discordância que eu tinha com os problemas internos do Oficina eu vejo, e o meu Dom Juan, pelo que eu lembro dele, ele caminhava nessa linha ainda que insistindo numa visão meio que... nesse sentido a leitura, me lembro do trabalho meu e do Guarnieri nesse sentido, havia uma preocupação com enfoque político mesmo, interno. Nós tínhamos, embora trabalhando nesse espaço livre, nesse tipo de relação com a platéia, embora valorizando o ato de um indivíduo sozinho e usando todo aquele recurso de rock, tudo misturado, nós estávamos com uma preocupação com a discussão política, de um enfrentamento com a ditadura, mostrando a história de um grande rebelde, de uma figura que mergulha fundo contestando tudo. Nós tínhamos isso. Agora, depois com Raul, mudou a personalidade, das coisas assim, mas o espetáculo ficou o mesmo, o espetáculo não mudou nem como idéia, nem como intenção, nem nada. Estou dizendo que a personalidade, o trabalho era muito pessoal também, a personalidade do Raul, [...] houve algumas alterações, eu me lembro que mudamos até no início, [...] é umas falas do Sganarelo sobre o negócio do fumo. Por exemplo, quando o Raul entrou passamos para ele aquelas falas. Não era mais o criado que falava o negócio do fumo, era o próprio Dom Juan, [...], quer dizer, nós passamos ao próprio Dom Juan esse elemento, entende, não era o criado que poderia ser um maconheiro, era o próprio, porque a figura dele também, embora valorizando todo esse lado, havia o lado crítico, também da figura desse rebelde [...].94

Fernando Peixoto e Sábato Magaldi, em última instância, ressaltam que há modificações, inclusive, de sentidos com a saída de G. Guarnieiri e a entrada de Raul Cortez. As modificações são estabelecidas no âmbito da criação do personagem pelo ator, que imprime aspectos de sua própria personalidade e de suas experiências vividas na figura representada. O que justifica a criação de dois Dom Juans diferentes, um mais revolucionário e preocupado com as questões sociopolíticas, em especial o enfrentamento

94 Entrevista concedida aos professores doutores Rosangela Patriota Ramos e Alcides Freire Ramos por

com a ditadura militar, encarnado por Guarnieri. E Cortez, por outro lado, apresenta um protagonista com características rebeldes, cujas críticas ultrapassam os limites da realidade social e política brasileira, dialogando com elementos de contestação mundial, vistos na contracultura.

Anatol Roselfeld dedica o capítulo Da Criação do Ator, na obra Prismas do

Teatro, à reflexão de como um ator monta o seu personagem. Com isto, o intelectual

afirma que o ator participa, juntamente com o diretor, da criação da figura dramática. Por isso, vários e diferentes atores interpretando um mesmo personagem literário criarão personagens diversos, específicos e singulares. Para Rosenfeld, isso é possível porque a escrita possui brechas que podem e são preenchidas pelo ator com “dados sensíveis” porque ele dá visibilidade à palavra escrita. Uma vez que essa tarefa de preenchimento depende da inventividade do ator, as palavras do texto teatral funcionam como guia para a criação do personagem:

O jogo fisionômico, a melodia sonora, o timbre da voz, o crescendo e diminuendo, accelerando e ritardando da fala e dos gestos, a vitalidade e tensão, os silêncios – tudo quando distingue a pessoa existente não pode ser definido pela palavra. O texto dramático somente projeta, através da seqüência unidimensional dos significados, o sistema de coordenadas psicofísico, cuja conversão para a tridimensionalidade cabe à cena e ao ator. 95

Nesse sentido, mesmo que o texto-roteiro criado por Fernando Peixoto seja o mesmo para os dois atores – Gianfrancesco Guarnieri e Raul Cortez –, a prática de representação de um será diferente da do outro. Isso acontece, em especial, pela própria formação, bagagem intelectual e artística que cada um deles possui, portanto se torna fundamental para compreender os sentidos atribuídos ao protagonista em cena. Peixoto insiste em que a sua criação dialoga com o tema da rebeldia e que seu Dom Juan é um rebelde e não um revolucionário. Entretanto, com Guarnieri essa particularidade é ampliada e Dom Juan ganha ares de revolucionário.

Para refletir sobre esses elementos, a tese de Marcos Alexandre Capellari O

Discurso da Contracultura no Brasil: o underground através de Luiz Carlos Maciel (c. 1970) traz contribuições significativas para esta dissertação. Capellari é cuidadoso ao

definir e distanciar os conceitos de rebeldia e revolução. Citando a conceituação de

95 ROSENFELD, Anatol. Prismas do Teatro. São Paulo: Editora da Unicamp/Edusp/Perspectiva, 1993, p.

Gianfranco Pasquino, presente no Dicionário de Política de Norberto Bobbio, o historiador acredita que rebeldia e revolta dizem respeito a contestações isentas de motivações ideológicas, cujo escopo é a satisfação instantânea das reivindicações. A revolução, ao contrário, possui um feixe de ideias e possibilidades, objetivando substituir a ordem vigente e transformar a realidade, seja por etapas, seja por fases.

Capellari enxerga na contracultura esses dois movimentos, o revolucionário e o rebelde e contesta a postura de Carlos Alberto Messeder, na obra O que é Contracultura, quando este define a contracultura como um conjunto de movimentos de rebelião da juventude. A isso replica dizendo: “é preciso frisar que se trataram de manifestações mais ou menos espontâneas, ainda que, em muito casos, inspiradas em discursos carregados de teor político”.96 Segundo o estudioso, a contracultura é chamada de rebelde por ser comparada a movimentos revolucionários clássicos, mesmo assim, inerentes a ela, coexistem várias revoluções, dentre elas a Revolução Sexual e a Revolução Cultural. Assim, o conceito de

Revolução, para o underground, tem esse caráter de rompimento com o emaranhado cultural dominante, com a visão uniforme de mundo, com os valores constritores da liberdade, com o adiamento elevado à condição de virtude.Mas como romper com a teia cultural, na qual todos se encontram aprisionados se, ao mesmo tempo, cada um exerce o papel de sentinela na sua conservação? [...] cada indivíduo, uma vez integrado a ela pela educação, se transforma em paladino de sua conservação e de sua reprodução.97

O protagonista recriado por Fernando Peixoto incide nessa postura. É alguém que se desvencilha da educação tradicional para infringir todas as regras sociais. Se levado às últimas consequências tudo aquilo que manifesta acreditar, teremos, com certeza, uma nova cultura. É justamente essa proposta estética que Peixoto recria no palco e o resultado é um espetáculo que se materializa no palco com elementos irremediavelmente ligados à contracultura norte-americana.

96 CAPELLARI, Marcos Alexandre. O Discurso da Contracultura no Brasil: o underground através de

Luiz Carlos Maciel (c. 1970). São Paulo, 2007. 248 f. (Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social), f. 5.

No documento O DO MITO POR (páginas 120-124)

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