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Um viés luminoso em Capitu

3. Capítulo 2: Dom Casmurro em Capitu: a ficção lida, vista e ouvida

3.7. Um viés luminoso em Capitu

No livro Dom Casmurro, após as “explicações” dos capítulos iniciais, sobretudo dos sete primeiros, há uma mudança na tonalidade emocional da narrativa, que domina aproximadamente os cem capítulos seguintes, passando a narrativa a focalizar quase exclusivamente a aura de encantamento de Bento por Capitu, construído pelo narrador. Esse encantamento é o que intitulei “viés luminoso”, como um paradoxo frente à lugubricidade expressionista, caracterizado, no livro, pela descrição de um tempo de vívidos idílios amorosos de Bento com Capitu. Há uma explosão afetiva no livro, e que é figurada por uma explosão de luz e claridade na microssérie.

Em seu início, o livro começa por explicar o título que tem, “Dom Casmurro”. A microssérie, por sua vez, apesar de ter o título de “Capitu”, não abre mão desse trecho do texto, trazendo o narrador do livro no papel de um personagem explicando o título de

um livro que está escrevendo. Assim como em Dom Casmurro, no programa de TV, apesar de o suporte textual não ser um livro, também vemos um capítulo chamado “Um livro” e a frase “antes de escrever meu livro, digamos os motivos que me põem a pena na mão”. A microssérie deixa, assim, ainda mais fixa a ideia de que a narrativa é uma história relatada por escrito. Após os capítulos de apresentação dos personagens José Dias, Tio Cosme e Dona Glória, o livro inicia a sequência que chamo de o lado “luminoso”, precisamente no capítulo VIII – É tempo!, que se inicia com a frase: “Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca (...)”. Daí até quase o final do livro, desaparecerão as referências às sombras, à ilusão e à vida assombrada a que se refere nos sete primeiros capítulos, sendo a luminosidade poucas vezes estorvada, como acontece, por exemplo, nos capítulos de menor luminosidade ou obscuros como IX – A ópera, em que o narrador defende a presença ostensiva do mal no mundo e nas pessoas; no XVI – o administrador interino, em que a luminosidade da paixão juvenil é esmaecida para a apresentação do personagem Pádua; no XVII – Os vermes e no XL – Uma égua, capítulos em que lança ironia sobre a busca e o poder de criação de sentidos do texto a partir das fábulas dos vermes que devoram as páginas sem saber nada do que comem e da égua que concebe “pelo vento”.

Na microssérie, a luminosidade é inaugurada no capítulo Do livro, a partir do momento em que Dom Casmurro adverte: “Comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que eu nunca esqueci. Tive muitas outras, melhores e piores, mas aquela nunca se apagou no espírito. É o que vais entender lendo”. Esse capítulo marca a entrada de outros elementos, que combinam e reforçam a luminosidade da época em que Bento viveu sua paixão por Capitu. É nesse momento que Capitu aparece pela primeira vez, bem como salas iluminadas, floridas, ruidosas e repletas, vitrais resplandecentes, e é ouvida a música tema (Elephant gun, do grupo Beirut), que toca nos momentos mais sublimes da relação, como no primeiro beijo.

Tal viés luminoso, que também é ruidoso e agitado, é construído com um misto de P&B, fotografia e colorido, silêncio e música contemporânea, ruína e esplendor, delicadeza e brutalidade, um casal de jovens felizes, esperançosos e apaixonados, cuja relação vai se degradando pelas vicissitudes da vida. A luminosidade predomina até o capítulo Juramento do poço.

Depois disso há um degradê na relação, no otimismo, na esperança. O jardim parece murcho. No plano da montagem, esse momento de sutil transição é notado no final dessa cena quando Bentinho e Capitu fazem os juramentos de fidelidade e se

beijam. A câmera então se desloca para cima, mostrando os canhões de luz que os iluminam e eles se apagam, ouve-se o barulho da chave de energia mudando para a posição “desligar”. Desse momento em diante, percebe-se uma alteração radical no uso da fotografia, da paleta de cores e da iluminação, acompanhando a instalação da ruína interior do narrador/personagem. O amarelo sem vida da paisagem, os espaços escuros dos cenários, o figurino negro e o assombro interior de Dom Casmurro conferem um tom acentuadamente expressionista a Capitu.

No livro, da entrada de Bentinho no seminário em diante, passando pela fase do ciúme exacerbado de Bento, apesar de predominar um tom de obscuridade na narrativa, há espaço ainda para trechos de intervalos de mágica luminosidade e empolgação. São os que se encontram nos capítulos que falam da descoberta da “grande e fecunda” amizade de Escobar; na esperança de “felicidade e glória” que o diploma e o casamento trariam; o “céu” que foi o casamento e a lua-de-mel, quando “tudo corria bem e a vida era plácida” até o nascimento e a primeira infância de Ezequiel, quando Bento estava no auge da carreira, e a vida foi “outra vez doce e plácida”. O passado auspicioso vai se convertendo num presente tenebroso.

Na medida em que a narrativa sofre variações no andamento, correndo “a grandes pernadas”, a atmosfera é reestruturada em função de um ponto de vista, vai se tornando autônoma, interior, maleável e densa, abrindo as portas para os domínios psicológicos de grande riqueza e prestígio (MARTIN, 2003). A narração passa a filtrar o mundo de outra maneira, legitimando as afirmações de Dal Farra (1978),’ de que a narrativa nada mais é do que uma postura visual manipuladora de valores nascida do confronto entre luz e sombra e de João Batista de Brito (2006), ao postular que o ponto de vista desencadeia diversas arregimentações para a história, que podem suplantar óticas estabelecidas e instaurar outras. O lugar-comum da discussão sobre contar/mostrar (FRIEDMAN, 2002) ganha roupagem nova, pois, apesar de a “contação” permanecer estável, a “mostra” é inteiramente volatilizada.

A microssérie acompanha essas intermitências do pesado convívio de Bento com Capitu sem que, no entanto, a placidez de espírito dele consiga reverberar na tradução do sentimento em imagem. O que Bento sente é traduzido, na microssérie, exclusivamente como uma sensação de “placidez”, não necessariamente chegando a tocar a alegria. Isso explica a não recorrência da luminosidade nesse segundo momento. O aparecimento de Escobar não basta para iluminar a vida tenebrosa do seminário; a lua-de-mel e os dias de paz na Tijuca não são suficientes para fazer Dom Casmurro se

descontrair e rir com as lembranças, como faz Capitu. As cenas da lua-de-mel, como as do convívio com o pequeno Ezequiel, têm a opacidade de um retrato velho e a luminosidade, por ironia, só vai aparecer novamente na cena do enterro de Escobar.

Certamente essa mescla de elementos corroborou com o fascínio que a microssérie exerceu sobre o público, inclusive de jovens, conhecedores de vários elementos e recursos narrativos presentes ali.