3) Tendências de uma Época: um romance na Revolução
3.5. Viagem Inacabada e Inconclusões Finais
Toda a trajetória de Wilhelm Meister foi desenvolvida no sentido de afirmar a
liberdade e a autonomia do indivíduo de determinar o próprio destino por si mesmo. No
entanto, do rito iniciático ao desfecho no arranjo matrimonial, lemos uma série de
projetos inacabados de uma Bildung inconsciente e incompleta. Veredas de uma viagem
que se bifurcam entre livre vocação artística ou pragmatismo burguês; autoformação ou
educação teleológica e orientada; autonomia ou heteronomia; acaso ou destino.
O projeto de aprendizado de Wilhelm Meister deveria ser a formação livre e
humana do Gelehrte. Desta experiência pedagógica, que representaria o
amadurecimento, o processo progressivo de autoconsciência, de tomada de decisão, do
indivíduo face à realidade que se apresentava como alteridade. Nas palavras de
Schlegel, o homem, certo de reencontrar-se, “sai de si mesmo para se buscar e encontrar
o complemento de seu ser no mais íntimo de profundidade do outro. O jogo da
comunicação e da aproximação é sentido e força de vida”
616. Porém se pensarmos no
Bildungsroman gotheano apenas como um exemplar de romance educativo, retomamos
todo o problema de uma tradição crítica que lê este gênero sob esta perspectiva. Citati
traz uma significativa contribuição a respeito do tema:
Wilhelm não é um exemplum de texto de pedagogia burguesa: não é o protagonista ideal de um Bildungsroman [romance de formação]. Não cresce com a insuportável regularidade de um carvalho ou de uma flor, não sobe degrau por degrau as escadas da própria vida tal como um educado turista [...] Wilhelm é fraco, inseguro, desejoso de orientação: precisa dos outros e procura refletir, em seu espírito volúvel, a natureza e as experiências alheias. Lê as tragédias de Shakespeare para conhecer a realidade; viaja durante anos com uma companhia de atores, vive nos castelos aristocráticos, deixa-se acompanhar pelos mensageiros do destino. Quando devemos tirar as conclusões de cada uma dessas experiências, a conclusão é sempre a mesma: Wilhelm não consegue aprender quase nada do que a vida lhe oferece, como se uma espécie de debilidade patológica o impedisse de se apropriar das coisas que sua inteligência compreende perfeitamente e de colocá-las em prática. [...] No final de Anos de aprendizado, Wilhelm contempla o espetáculo de sua vida e os olhos dele se detêm assombrados numa selva de erros e desvios, semelhantes aos de uma criança incapaz de crescer. Todas as suas experiências lhe parecem
involuntárias, ocultando no coração a tristeza da infinita separação [...] suas viagens se multiplicam, os anos somam-se aos anos, enquanto o rosto de Natalie desaparece ao longe”. CITATI. Op. cit. p. 136-137.
616 SCHLEGEL apud. SUAREZ Nota sobre o Conceito de Bildung (Formação Cultural). Revista
Kriterion, Belo Horizonte, nº 112, Dez/2005, p.195. Já Antoine Berman diz que enquanto romance, “Bildung é experiência da aparente estranheza do mundo e, também, da aparente estranheza do mesmo para si próprio. [...] Daí as suas polaridades definidoras, em Goethe e nos românticos: cotidiano e maravilhoso, próximo e longínquo, presente e passado, conhecido e desconhecido, finito e infinito. BERMAN, Bildung et Bildungsroman. Le temps de la réflexion, v. 4, Paris, 1984, p. 148.
inútil emaranhado de gestos, palavras, ações, passos. Toda a sua existência lhe parece um só erro imperdoável: algo para ser renegado e jogado fora com um gesto617.
O propositadamente inacabado, o não revelado, permite investigações,
questionamentos, provocações. O romance de formação dá uma forma ao seu
protagonista, não necessariamente a melhor forma, talvez o inacabamento. A pergunta
que podemos fazer para própria obra de Goethe é se seu protagonista completou seus
anos de aprendizado e o que ele de fato aprendeu nestes anos, se havia uma teleologia
que o conduziu da menoridade heterônoma para uma maioridade autônoma, se o papel
de seus “invisíveis” e “ocasionais” preceptores da Sociedade da Torre era emancipador
ou opressor. A Sociedade da Torre configurada em uma força interventiva, em grupo
interventor de guias condutores, sugeria uma nova viagem pela Alemanha em direção à
Itália ou um “exílio” na América do Norte. A proposta de casamento era apenas uma
transcendente contingência ou uma transitiva possibilidade futura a vir a ser confirmada.
A viagem iniciática de Wilhelm Meister deveria ser realizada para descoberta de
si mesmo e do mundo do exterior para o interior, para abrir-se à revelação em busca da
luz, para o conhecimento da verdade e dos mistérios, para vivência do outro e a
objetivação da experiência, para o aprendizado da palavra do mestre. Para Schlegel, a
suprema tarefa da formação “é apoderar-se de seu si mesmo transcendental, ser ao
mesmo tempo o Eu de seu Eu”
618.
O projeto filosófico do livro se apresentou como o devir do artista, no vir-a-ser
nobre, como um ser-no-mundo cujo projeto artístico, afetivo e nacional, se constituiu
em uma série experiências malogradas; exemplares do herói moderno que personificou
os valores subjetivos e individuais em confronto com o mundo cindido; tão distinto do
herói antigo solidário, personificação e representação de um mundo único, coeso e
compacto, ciente de seus próprios deveres em harmonia com as próprias certezas, apesar
das consenquências trágicas. A necessidade formativa mais íntima do protagonista que
engendrava e nutria “o desejo de desenvolver e ampliar sempre mais as disposições que
para o bom e o belo”
619se diluíram em intrigas de mésalliance. A ascensão e a queda do
herói moderno deixam de ser mero capricho da roda-da-fortuna para tornarem-se
contingências da objetividade mundana. “Pode-se afirmar que, em Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, o conceito de Bildung como formação universal é o
617 CITATI. Op. cit. p. 55.
618 BENJAMIN. Ensaios Reunidos: Escritos sobre Goethe. p. 99. 619 GOETHE. Op. cit. Livro IV, capítulo 19, p. 272.
que regula e dirige a trajetória do protagonista, embora o processo de aquisição dessa
mesma formação permaneça inconclusivo”
620.
As últimas páginas do romance relatam um personagem ainda perdido, indeciso
e inseguro. Ao longo do último livro, o protagonista vai abandonando cada vez mais o
protagonismo, cada vez mais deixa de ser um homem para se transformar em uma idéia.
O homem cujas ilusões e esperanças nutridas, guardadas em seu coração, conquistou a
condição de ator e declinou; conquistou o domínio sobre as paixões às custas do
enfraquecimento e do desenraizamento, correndo “o risco de não existir como pessoa:
de não encontrar um centro em torno do qual se fixar, de não descobrir, em nenhum
lugar do mundo, sua verdadeira pátria”
621. Wilhelm poderia cantar: “Minha pátria é
minha língua” — caso fosse ainda um artista, mas a arte era algo do passado, a terceira
vocação ficara na terceira margem.
O erro [Fehler] e o autoengano [Selbstbetrug] sempre acompanharam a trajetória
de Wilhelm Meister. Muitas vezes o protagonista errou, se enganou e se deixou enganar,
a tudo isso convenciou-se chamar de aprendizado ou formação. O desconhecimento do
mundo [Unbekanntschaft mit der Welt] e a busca de sua descoberta foi motivo condutor
das ações do protagonista, seja no palco ou na sociedade. A valorização do erro
permeou as páginas do livro como préstimo ao aprendizado de quem precisa se perder
para poder se encontrar por um caminho indefinido, por veredas que se bifurcam entre a
realização e a resignação. Apesar da proposta de casamento, o destino de Wilhelm
Meister seguia em aporia e toda sua existência ainda vivia uma mise-en-scène. As
últimas palavras de Wilhelm Meister indicam que ainda haveria muito por viver, que
aquele final era apenas um início. Lemos um caminho que não foi feito, não foi perfeito,
não foi completo. Seu protagonista nunca satisfeito, nunca contente, apesar de suas
últimas palavras que, apesar de falar em felicidade, encerram o romance com
melancolia.
A viagem e a errância em Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister
poderiam sugerir que há um destino aonde chegar, este destino não existe, muito menos
a possibilidade de voltar ao ponto de partida. O pai do filho pródigo está morto, assim
620 MAAS. Op. cit. p. 38. Segundo Radbruch, Wilhelm Meister “renuncia à aspiração de se tornar ele
mesmo um todo abrangente e autosuficiente, almejando então apenas ser um membro útil no organismo constituído pelo todo social. Em Os anos de aprendizado ele queria formar-se ator, uma profissão que é um símbolo da capacidade universal de transformação e de sensibilidade. Em Os anos de peregrinação ele torna-se ‘cirurgião’, ou seja, literalmente, um artífice, que desempenha uma tarefa a serviço do bem comum”. RADBRUCH, apud MAAS. p.186.
como Mariane e as encantadoras e românticas criaturas italianas, o harpista e Mignon;
Werner havia envelhecido e vendido a casa dos Meisters, portanto, não haveria um lar
após “tantos anos de vagares, após ter vivido como peregrino ou viajante ‘sob tendas e
cabanas’”
622. Não haveria para onde regressar. A excentricidade, a extravagância e o
ameneiramento de um personagem estranho e errático já haviam sido esgotados; a
desmedida e o excesso, próprios da figura do herói, foram domesticados e docilizados.
Porém o protagonista permanecia como um amador que “busca apenas um prazer geral
e indeterminado”
623na arte e na vida.
A viagem iniciática no Bildungsroman vai além da narrativa de viagem por
conta da presença de lições de moral as quais exercem papel determinante na formação
do herói goetheano. Através da viagem, Wilhelm Meister adquiriu o sentido da vivência
de processos que poderiam contribuir para sua formação, além do contato imediato com
o mundo em ação e transformação. Werner dizia para Wilhelm Meister correr “o mundo
segundo tua vontade, porque um homem sensato adquire melhor instrução nas
viagens”
624. Este conselho lançava o protagonista para o movimento de entrega e
abertura ao conhecimento do mundo e ao autoconhecimento através de novas paisagens
e personagens, novos enigmas e experiências. A Bildung se caracteriza como uma
viagem cuja essência é lançar o “mesmo” em um movimento que o torna “outro”. A
“grande viagem” de Bildung é a experiência da alteridade. Para tornar-se o que é o
viajante experimenta aquilo que ele não é, pelo menos, aparentemente. Pois está
subentendido que, no final desse processo, ele reencontra a si mesmo
625.
A vida, a mais urgente vida se apresentava diante dos olhos do viajante, este
poderia estar perdido no mundo, longe de casa, em toda a parte ou em lugar nenhum
além de si mesmo. Sentimento que permitiria ao viajante, em determinado momento, ser
apenas um desconhecido, um errante a reorganizar seu universo sentimental e particular
em uma vida pretensa sem maiores compromissos, sem preocupações burguesas, sem
passado afetivo e sem um futuro pré-determinado, sem compromisso social ou de
classe, sem motivação externa, o viajante poderia ser um simples anônimo, figura que
passava despercebida e apagada, um antagonista ao invés de protagonista, em conflito
com a novidade de uma nova cultura formativa que encontrou em meio ao caminho.
Entretanto, esta viagem iniciática e de aprendizado se fez como um movimento
622 CITATI. Goethe. Trad. Rosa F. d’Aguiar. São Paulo: Cia. das Letras, 1996, p. 20. 623 GOETHE. Op. cit. Livro VIII, capítulo 7, p.542-543 (Ed. bras. - grifo nosso). 624 Id. Ibidem. Livro V, capítulo 1, p. 283 (Ed. bras. - grifo nosso).
vorticoso que parecia “empurrar o homem para frente, para o futuro, na verdade o sorve
e o rejeita para trás (verfallen), ao nível das outras coisas, à sua inelutável facticidade,
revelando o nada sobre que é fundamentada cada escolha”
626. Borges, em um conto,
comenta que cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por
eliminar as outras, contudo podemos pensar, no caso do quase inextricável Wilhelm
Meister, que este “opta simultaneamente por todas”
627.
O caminho da viagem, da ordem iniciática e dos anos de aprendizado seria a via
que deveria fornecer os fundamentos, os conhecimentos e as ferramentas para que o
protagonista encontrasse a grande verdade por si só, ou seja, um projeto pedagógico de
aprendizagem pela experiência que implica o erro como passagem para o
aperfeiçoamento se manteve inconcluso. Talvez isso explique o fato do nosso
protagonista não ter aprendido muito ao final de uma viagem pretensamente educativa.
Os votos para que o caminho fosse longo e que o tornasse, ao final, um sábio, um
homem de experiência, não cumpriram nada mais que lhe dar o próprio caminho e
torná-lo caminhante. Seu destino continuava incerto, ao jogo do acaso à revelia da
escolha. “O maior mérito do homem consiste, isto sim, em determinar, tanto quanto
possível, as circunstâncias, deixando-se determinar por elas o menos possível” [Des
Menschen größtes Verdienst bleibt wohl, wenn er die Umstände soviel als möglich
bestimmt und sich sowenig als möglich von ihnen bestimmen läßt.]
628. Mérito que
Wilhelm Meister em seus anos de aprendizado jamais alcançou.
A viagem iniciática o desenraizou do mundo burguês paterno, o fracasso teatral
o fez sentir-se jogado como fruto apodrecido para longe do mundo dos palcos, de tal
modo que o protagonista se sentia inominável para chamar-se de Meister. As veredas
desta viagem que bifurcaram em arte ou mercado, burguesia ou nobreza, inglês ou
francês, picaresco ou dramático, aprendiz ou mestre, resignação ou realização,
formaram a imagem incompleta e episódica do universo germânico tal como Goethe
concebia naquele final de século de uma Alemanha que não era mais feudal e ainda não
era burguesa. A representação de um homem cujas ilusões e esperanças nutridas e
guardadas em seu coração que, ao conquistar a condição de ator, declinou; da mesma
forma que negligenciou a condição de negociante. Tampouco a viagem iniciática de
626 VINCI, Maria Gloria. As Raízes Filosóficas de um Desconforto Existencial: Nostalgia para as Estrelas e Formas de Inquietude na Cultura Européia entre o Século XIX e XX. Revista Litteris. Março 2011. N. 7, p. 6.
627 BORGES. Jardim de Caminhos que se Bifurcam. IN: Obras Completas. Vários tradutores. São. Paulo:
Globo, 1999.