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Vicente, Gil Auto da feira (35)

Uma das razões por que se pode gostar de Gil Vicente é que a sua poesia cenografada nunca deixou de nos revelar que “toda a vida dos mortais não passa de uma comédia, na qual todos procedem con‑ forme a máscara que usam, todos representam o seu papel, até que o contra‑regra os mande sair da cena (Erasmo, Elogio da loucura).

Apesar de várias leituras poderem interpretar o Auto à luz da sua inserção histórico‑cultural, remetendo‑o para a crise religiosa que motivou o saque de Roma em 1527, convém não esquecer que nas peças alegóricas de Gil Vicente “a realidade observada é apenas uma parte do universo” (António José Saraiva).

Quando Roma pede ao Anjo “Oh, vendei‑me a paz dos céus/, pois tenho o poder na terra” (vv. 462‑63), não se trata apenas de cri‑ ticar as indulgências e atacar a corte pontifícia e o papa. Pretende‑se mostrar também a total inadequação da linguagem terrena do diá‑ logo com o divino: “Esta feira não se fez/ para as cousas que quereis” (vv. 756‑57). Daí resulta a incapacidade em negociar com o céu, que não é só propícia a Roma, mas se generaliza a todas as restantes per‑ sonagens, tornando a distância intransponível entre o céu e a terra tema central deste auto, determinada pela sua incompatibilidade de interesses.

Se, como diz o Diabo, “Toda a glória de viver/ das gentes é ter dinheiro”, as aspirações terrenas serão totalmente inconciliáveis com os desígnios desta feira do céu, que oferece consciência a quem se interessa por artigos de vestuário e adornos. De facto, aqueles que ali vão para obter a paz a troco de jubileus ou indulgências, e que que‑ rem vender as suas mulheres, devem ter o mercador que merecem: “E mais, vendo muito bem,/ porque sei bem o que entendo;/ e de tudo quanto vendo/ não pago sisa a ninguém/ por tratos que ando fazendo” (vv. 241‑45).

35 Auto da feira, introdução e edição interpretativa de Luís Filipe Lindley

Cintra, Dom Quixote, Lisboa, 1989, 107 pp. Artigo escrito para o jornal O

Ele é a personificação da corrupção social num mundo onde as virtudes “se foram perdendo de dias em dias”, criando uma realidade vazia de todos os valores e profundamente injusta: “Porque quem bondade tem/ nunca o mundo será seu,/ e mil canseiras lhe valem” (vv. 399‑401).

Texto de uma validez e contemporaneidade surpreendentes, o

Auto da feira merece a nossa maior atenção pela sua capacidade em

perscrutar males e enfermidades que parecem ter‑se transmitido por hereditariedade ao nosso tempo que, por muito se ter empenhado no progresso material, sempre se esqueceu de tratar da alma: “Porque neste sigro em fundo/ todos somos negligentes:/ foi ar que deu polas gentes,/ foi ar que deu polo mundo,/ de que as almas são doentes” (vv. 761‑65).

Num mundo assim fácil é perder esperança e a fé. A sua urgência faz terminar o auto com uma cantiga onde o homem aparece recon‑ ciliado com Deus: “Nasceu a rosa do rosal,/ Deus e homem natural:/ Virgem sagrada” (vv. 997‑99). Esta união só será possível se ainda houver quem acredite que no céu existam ladeiras, como na Serra da Estrela. Isto nos ensina Vicente.

VV.AA.

Prelo – Revista da Imprensa Nacional-Casa da Moeda(36)

Se pensa passar as suas férias em viagem, esta é uma revista que lhe convém. Por ela saberá que o contacto com diferentes gentes e costumes implica uma determinada percepção do outro e até uma “fabricação do outro”, estando por isso todo este processo ligado à problemática da alteridade.

Tema central dos vários artigos aqui publicados, a literatura de viagem é por Leonor Buescu estudada do ponto de vista da comuni‑ cação, procurando‑se analisar a questão da transmutação da viagem em fala. Para Tiago de Oliveira, este tipo de literatura tem muito a ver com a geometria, por integrar noções de tempo, velocidade, trajec‑ tória e narração. Um texto de João Empoli é alvo da atenção de Rosa Figueiredo Perez, que nele procura encontrar raízes de pensamento etnológico. Por último, Nuno Júdice dedica‑se ao estudo deste tema na literatura portuguesa, observando, muito a propósito, que não é somente na literatura de viagens que o leitor encontra a evasão à rea‑ lidade, uma vez que toda a literatura implica esta fuga. Este número conta ainda com um excelente artigo de Manuel Canijo sobre o cien‑ tista, artista e filósofo Abel Salazar, aqui definido como “o grande amador em equilíbrio trágico entre a finitude dada e a infinitude con‑ cebida”. Pascal teria gostado de ler isto.

36 Prelo – Revista da Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Artigo escrito para

VV.AA.

Queirosiana - Estudos sobre Eça de Queirós e a sua geração(37) Todos sabemos que as revistas literárias nunca atraíram um vasto público leitor, sendo apenas assinadas por académicos e críticos que se lêem uns aos outros. No entanto, por entre as páginas repletas de questões teóricas, onde a linguagem é demasiado hermética para o comum dos mortais, surgem por vezes informações incomuns e con‑ clusões inesperadas. É o caso desta Queirosiana.

Num artigo de Amina di Munno, lembra‑se que o jornal foi já um grande promotor do livro numa época em que O mistério da estrada

de Sintra era publicado em folhetins, mais precisamente quando o

género policial assumia dignidade artística e Eça se dedicava a escre‑ ver uma detective story que, imagine‑se, até em Itália foi traduzida. E se quer saber como as escolas literárias são discutíveis, leia o estudo de Maria do Rosário Cunha, que se preocupou em descobrir se Eça seguiu fielmente os cânones naturalistas, no primeiro e último epi‑ sódios de O crime do padre Amaro. Por seu lado, Maria Helena Nery Garcez, evocando Camões, situa A ilustre casa de Ramires mais perto do “canto” do que do “feito”, mais sintonizada com o discurso fic‑ cional do que com o discurso histórico. Vê‑se logo que a poesia fica a ganhar à história, porque aqui a explicação é muito clara, usando exemplos e comparações inteligentes.

De notar ainda uma oportuna denúncia de Carlos Reis relativa‑ mente a uma péssima tradução francesa de A relíquia que, pelos vis‑ tos, é uma relíquia de disparates. Queirós assim não queremos nós.

37 Queirosiana - Estudos sobre Eça de Queirós e a sua geração, nº 3, Dezembro,

1992, VV.AA., Associação dos Amigos de Eça de Queirós, Tormes, 1993, 95 pp. Artigo escrito para o jornal O Independente de 3 de Setembro de 1993.

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