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Vida cotidiana e alienação

No documento Das categoria do capital à vida cotidiana (páginas 180-200)

Na primeira parte deste trabalho, vimos que, na análise de Marx, no que se refere à especificidade da produção capitalista, estão presentes os elementos que ainda dominam a reprodução da vida neste início do século XXI, o que significa que tal reprodução continua a se realizar a partir da separação entre produtor e meios de produção, ou seja, de forma alienada. Em 1844, o autor alemão já havia afirmado que sob tais circunstâncias, “o homem (o trabalhador) só se sente como [ser] livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos, etc., e em suas funções humanas só [se sente] como animal. O animal torna-se humano e o humano, animal” (MARX, 2004, p. 83). Exatamente em função da justeza dessas considerações, os marxistas que, no século XX, se propuseram a analisar a vida cotidiana denunciaram a proximidade entre a reprodução da vida particular e a alienação, como vemos no próximo capítulo. De fato, a vida de todos os dias continua a se reproduzir sob a determinação da separação entre meios de produção e produtor, ainda que, atualmente, mudanças efetivas na vida social tornem esse processo muito mais complexo do que na época da redação dos Manuscritos. Marx esclarece, em seu rascunho, o significado da alienação (Entäusserung) do trabalho, ao evidenciar que este, nas condições da economia política, representa um martírio para o trabalhador, uma situação na qual ele se sente infeliz, “longe de casa”, como afirma em algumas passagens adiante.

Nosso objetivo, no presente capítulo, no entanto, não é enfatizar a denúncia da alienação do trabalhador ao colocar o “comer, beber, procriar” como objetivo de sua existência. Esse aspecto foi suficientemente desenvolvido tanto nas análises da alienação do trabalho no capitalismo, quanto naquelas que se voltaram para compreensão da vida cotidiana. Heller (2002), por exemplo, em Sociologia da vida cotidiana, faz uso deste trecho justamente para mostrar que a execução do trabalho “perde toda forma de auto-realização e serve única e exclusivamente para a conservação da existência particular” (HELLER, 2002, p. 212). Lukács, no capítulo final de sua Ontologia, dedicado precisamente ao problema dos estranhamentos, logo após reproduzir o trecho de Marx citado acima, salienta a força da

“metáfora muito drástica – ‘bestial’1 – que nem é usada em termos meramente retóricos, nem é tomada no sentido literal”, mas pretende mostrar o “[...] estado que provoca no homem determinado seus estranhamentos: o seu encontrar-se fora do complexo do ser humano (do ser social, do ser personalidade) que se tornou possível sob o plano do gênero humano” (LUKÁCS, 1981. v. II, p. 575). Certamente é esse o sentido da análise de Marx.

Buscaremos, aqui, outra abordagem possível do mesmo fragmento dos rascunhos de 1844, resgatando igualmente a passagem seguinte – também reproduzida por Lukács – na qual Marx afirma que “comer, beber, procriar, etc. são também, é verdade, funções genuína[mente] humanas. Porém, na abstração que as separa da esfera restante da atividade humana e faz delas finalidades últimas e exclusivas, elas são [funções] animais” (MARX, 2004, p. 83). Marx reforça os argumentos colocados na primeira parte do trecho ao chamar a atenção para o fato de que os atos da nutrição e sexualidade aparecem como esferas independentes da produção da vida, isoladas da atividade social, como bem mostrou Lukács no capítulo dos estranhamentos de Ontologia.

Desse modo, sexualidade e alimentação se apresentam como naturais, como se não se constituíssem socialmente como as demais esferas da vida, em especial o trabalho. São vistas, assim, como naturalmente humanas, enquanto a atividade eminentemente social, o trabalho, é vivenciada como sacrifício. Esta é uma condição socialmente deteriorada e, portanto, não naturalmente constituída. Eis porque não se trata de uma simples identificação do homem (trabalhador) com a natureza. Marx descreve, nos Manuscritos de 1844, situações nas quais o ar puro deixa de ser uma necessidade para o operário, que se vê rebaixado a uma condição inferior à da natureza, pois “[...] o homem retorna à caverna, envenenada agora pela pestilência mefítica da civilização, e ele a habita apenas precariamente, como um poder estranho, que pode escapar dele a cada dia, e da qual pode a cada dia ser expulso, se não pagar” (MARX, 2004, p. 140, grifo do autor). Como é fácil constatar, não há nenhum traço de naturalidade na situação descrita pelo autor.

Assim como Lukács, em Para uma Ontologia do Ser Social, nosso objetivo é valorizar o aspecto “genuinamente humano” – e, portanto, não natural – da nutrição e da sexualidade. Não é por acaso que Lukács se debruça justamente sobre essas duas esferas da vida humana nos capítulos da reprodução e dos estranhamentos - neste último, ainda mais detalhadamente. É preciso salientar que ele reforça, na análise empreendida em ambos os capítulos, um

1 Na tradução anexa à dissertação de mestrado (COSTA, 1999), realizada a partir da edição francesa da Editions

Sociales (1972), mantivemos o termo ‘bestial’, mas com a publicação dos Manuscritos, no Brasil, pela editora Boitempo (2004), optamos por seguir a tradução brasileira. A edição portuguesa da editora Avante (1994) também utiliza o termo ‘animal’. A palavra ‘Tier’, utilizada por Marx, pode ser traduzida por ambos os termos.

problema anterior, que já aparece na apresentação dos Princípios ontológicos fundamentais

em Marx, no capítulo dedicado à Marx da Ontologia, e reaparecerá com grande insistência

ainda nos Prolegômenos (1990). Trata-se da questão da dupla base: social e natural da vida humana2. Tal problema tornou-se evidente para nós3, na conclusão da dissertação de mestrado (COSTA, 1999), ocasião em que foi pesquisada a questão da alienação em Marx, apoiada nas formulações de Lukács. O autor húngaro, conforme mencionado na introdução, desenvolve, no capítulo da Ontologia, Momento ideal e ideologia, uma interpretação peculiar para a alienação, compreendendo-a como momento subjetivo de toda ação humana e, portanto, inerente à atividade dos homens, independente da forma social em que ela se realiza. Como essa compreensão não foi reafirmada nos escritos de Marx, questionamo-nos acerca dos motivos que teriam levado Lukács a desenvolver aquela interpretação. A principal hipótese formulada para justificar a sua compreensão – da unidade entre alienação e objetivação como momentos da atividade humana distintos dos estranhamentos – foi justamente a questão da dupla base. Se há uma dupla constituição – natural e social – em todo ato humano, o homem precisa continuamente se distanciar (se alienar) da base natural para se desenvolver socialmente. A alienação apareceria, assim, como o necessário afastamento da reprodução circular da natureza que coloca a possibilidade de a produção humana se afastar progressivamente das barreiras naturais.

Como vemos neste quarto capítulo, ao reafirmar o caráter genuinamente humano da nutrição e da sexualidade, Lukács ao mesmo tempo reforça, em seus argumentos, a preocupação em não se distanciar da ‘base’ natural. A primeira parte deste capítulo, portanto, está voltada para a apresentação desses momentos. Em seguida, são retomados os textos anteriores à Ontologia, em que a aproximação entre alienação e objetivação aparece e, finalmente, são apresentados os questionamentos levantados por Chasin para o problema da dupla base e as consequências tanto da interpretação lukacsiana quanto dos indicativos de Chasin para a análise da produção humana. Os indicativos de Chasin, ainda que não tenham sido inteiramente formulados, podem se constituir em direção para futuros empreendimentos nesse campo.

2 O problema da dupla base aparece em outros capítulos da Ontologia. Como nosso objetivo é tratar

especificamente dos aspectos relacionados à vida cotidiana, concentramo-nos na análise empreendida nos capítulos da reprodução e dos estranhamentos. Ronaldo Fortes (2001), analisando o capítulo do trabalho em sua dissertação de mestrado, dedica um item específico para o que ele chamou de “teoria da dupla base”, destacando essa discussão presente também no capítulo analisado por ele.

3 O plural aqui não é mera figura de linguagem, pois o problema da dupla base tornou-se uma questão para o

grupo coordenado pelo professor Chasin e, por isso, este autor se dedicou ao tema em reflexões desenvolvidas em sala de aula que são reproduzidas no final deste capítulo.

O problema da dupla base

Ainda na primeira parte da Ontologia, Lukács afirma que no “momento em que Marx faz da produção e da reprodução da vida humana o problema central, surge – tanto no próprio homem como em todos os seus objetos, relações, vínculos, etc. – a dupla determinação de uma insuperável base natural e de uma ininterrupta transformação social dessa base” (LUKÁCS, 1979, p. 15-6, grifo nosso). Certamente, o objetivo do autor é se distanciar de sua própria posição na juventude, desenvolvida em História e consciência de classe, e não cair na armadilha idealista de separar absolutamente natureza e sociedade, desconsiderando os problemas relativos ao metabolismo entre essas duas esferas do ser na constituição da sociabilidade. Ao colocar a questão nesses termos, Lukács aponta para uma formação dúplice da sociabilidade humana que tende, ironicamente, a recolocar a discussão idealista (retomamos esta ironia mais adiante).

No capítulo sobre Marx da Ontologia, Lukács afirma que “a orientação de fundo no aperfeiçoamento do ser social consiste precisamente em substituir determinações naturais puras por formas ontológicas mistas, pertencentes à naturalidade e à sociabilidade [...], explicitando ulteriormente - a partir dessa base – as determinações puramente sociais” (LUKÁCS, 1979, p.19, grifo nosso). A indagação que pode ser colocada nesse preciso momento diz respeito à validade em utilizar a expressão determinações naturais puras – que justificaria a identificação de formas ontológicas mistas ou orientação exclusiva da natureza – quando, de fato, o que está em questão é o metabolismo entre sociedade e natureza. Mas avancemos um pouco mais na apresentação do problema em Lukács antes de desenvolver qualquer tipo de consideração crítica a esse respeito.

No capítulo da reprodução, a abordagem da dupla base reaparece com grande ênfase, mas, ao mesmo tempo, é perceptível também certa tensão nas tentativas exaustivas de explicar o problema sob nova perspectiva. Lukács afirma logo no início do capítulo que:

A divisão de trabalho é baseada originalmente nas diferenças biológicas entre as pessoas que formam o grupo humano. O recuo da barreira natural como conseqüência do ser social se fazer cada vez mais nítida e puramente social se revela, antes de tudo, no fato de que este princípio de diferenciação, originalmente biológico, assume em si momentos de sociabilidade cada vez mais numerosos, que terminam por adquirir um papel de primeiro plano na divisão do trabalho, rebaixando a fatos secundários os momentos biológicos (LUKÁCS, 1981. v. II, p. 138).

A dubiedade é superada na afirmação que coloca em primeiro plano os momentos de sociabilidade e em segundo, os momentos biológicos. A constatação do predomínio do momento social é reforçada no tratamento da sexualidade sobre a qual Lukács afirma que

mesmo as formas dessa “relação biológica tão elementar são, em última análise, determinadas pela estrutura social que se tem no respectivo estágio da reprodução” (LUKÁCS, 1981. v. II, p. 138). Lukács utiliza a abordagem presente no livro Origem da família, do estado e da

propriedade privada (1980) para exemplificar sua afirmação. Engels, neste trabalho,

empreende uma pesquisa histórica que permite uma aproximação aos dados empíricos demonstrando que “o lugar da mulher na vida social depende do fato de que o aumento da riqueza atribua às funções econômicas do homem um peso maior em relação àquelas da mulher” (LUKÁCS, 1981. v. II, p. 138). Nesse sentido, mesmo tratando a questão sob a forma da dupla base, Lukács demonstra, a todo momento, a efetiva preponderância da esfera social.

O problema da relação entre os sexos pode ser visualizado também recorrendo à Marx, nos

Manuscritos de 1844, quando trata da relação homem-mulher como medida da humanidade

do homem. Segundo Marx, nessa relação "[...] se mostra até que ponto o comportamento

natural do ser humano se tornou humano, ou até que ponto a essência humana tornou-se para

ele essência natural, em que medida a sua natureza humana tornou-se para o homem

natureza" (MARX, 2004, p. 105). O filósofo afirma ainda que "a partir desta relação pode-se

julgar [...] o nível de formação (die ganze Bildungsstufe) do homem em sua totalidade" (MARX, 2004, p. 104-5). Vale dizer, como relação mais natural do homem consigo mesmo, a relação homem-mulher aponta em que medida “o outro ser humano como ser humano se tornou uma carência para ele, até que ponto ele, em sua existência mais individual, é ao mesmo tempo coletividade (Gemeinwesen)" (MARX, 2004, p. 105), pois, somente para o ser social, a vida individual é ao mesmo tempo vida genérica. Por isso, para Marx, segue-se do caráter desta relação “até que ponto o ser humano veio a ser e se apreendeu como ser

genérico, como ser humano” (MARX, 2004, p. 105).

Nas citações acima, os grifos do autor salientam a pretensão de caracterizar a natureza

humana como uma relação que não é natural. A relação mais humana entre homem e mulher é

aquela na qual a personalidade de cada um pode se afirmar porque não significa a negação de um indivíduo pelo outro. É possível fazer essa constatação porque Marx está, nesse momento do texto, em debate com o comunismo grosseiro que contrapõe ao casamento burguês, a comunidade das mulheres, na qual “a mulher vem a ser uma propriedade comunitária e comum” (MARX, 2004, p. 104). Para o autor “esta ideia da comunidade das mulheres é o segredo expresso deste comunismo ainda totalmente rude e irrefletido [...] que por toda a parte nega a personalidade do homem” (MARX, 2004, p. 104). A crítica de Marx ao comunismo grosseiro não se refere à maior ou menor proximidade com a natureza, mas volta-se para compreensão da relação entre indivíduo e comunidade do ser humano que “veio a ser e se

apreendeu como ser genérico” (MARX, 2004, p. 105). Logo, o que está em questão é a relação do indivíduo com o gênero, de cada um consigo mesmo e com os outros homens. A natureza se encontra já reconfigurada na situação criticada por Marx, mas ali em um baixo nível de socialização. Este baixo nível não significa maior proximidade com a natureza, porque esta não conhece crueldade, nem busca o prazer por meio da opressão e negação do outro. O homem é, portanto, o metro do homem e não a proximidade ou distanciamento em relação à natureza coloca-se para ele como medida.

Lukács entende a citação de Marx, nos Manuscritos de 1844, acerca da relação homem- mulher, sob a perspectiva da sociabilidade. Diz ele após reproduzi-la:

Não é preciso explicar que, neste trecho de Marx, com o termo natureza não se entende o mero ser biológico. O termo natureza é aqui um conceito de valor que se desenvolve do ser social. Ele designa a intenção espontâneo-voluntária do homem realizar em si mesmo os caracteres do gênero humano. Ao mesmo tempo este gênero contém, obviamente, o reenvio à insuprimível base biológica da existência humana. (LUKÁCS, 1981. v. II, p. 152).

A presença da dimensão biológica, na existência humana, pode, sem dúvida, ser reconhecida como evidente, mas compreendê-la como base dessa existência, ao lado da própria esfera social, é um problema que ainda continuaremos a analisar. Não poderíamos encontrar melhor parceiro e guia nessa tarefa do que o próprio Lukács, quando volta a tratar da relação homem/mulher, segundo os termos expressos por Marx nos Manuscritos de 1844, reproduzidos no capítulo sobre os estranhamentos da Ontologia. Neste momento, Lukács refere-se imediatamente à transformação “[...] da relação natural – insuprimível – entre os sexos na relação entre personalidades humanas e, portanto, simultaneamente, em uma conduta de vida humano-genérica, nas realizações do gênero não mais ‘mudo’ mediante o real tornar- se homem do homem.” (LUKÁCS, 1981. v. II, p. 576). Ele vê, assim, uma transformação a partir da permanência da insuprimível relação natural. Mas, o que há de ‘natural’, perguntamos, em uma relação na qual os seres objetivamente envolvidos já não são natureza?

Lukács continua a análise priorizando o tornar-se homem enquanto pessoa que pode ocorrer somente “quando as suas relações com o próximo assumem e realizam praticamente de forma sempre mais humana, enquanto de seres humanos com seres humanos” (LUKÁCS, 1981.v. II, p. 576). Contrapõe-se, assim, ao idealismo subjetivista que compreende esse processo “somente a partir de si, do seu interior” (LUKÁCS, 1981. v. II, p. 576). Para o filósofo, diferentemente, a formação da personalidade é fruto, em primeiro lugar, do fato de o homem fazer-se homem pelo trabalho “[...] e no desenvolvimento subjetivo da capacidade disso provocada”, uma vez que no trabalho o ser humano “reage ao mundo circundante não mais animalescamente, isto é, somente adaptando-se aos dados do mundo externo, mas ao

contrário participa de maneira ativa e prática a formá-lo como ambiente sempre mais social criado por ele” (LUKÁCS, 1981. v. II, p. 576).

Tanto no capítulo da reprodução quanto no do estranhamento de sua Ontologia, Lukács desenvolve a pesquisa sobre as transformações históricas ligadas à sexualidade chegando a afirmar que “estas mudanças, transformando radicalmente o comportamento típico na vida social, incidiram da mesma forma radical sobre a relação sexual” (LUKÁCS, 1981. v. II, p. 149), pois

Quem esteja em posição de domínio, ou de subalternidade, etc., não é questão social “externa” a esta relação, que modifica só “externamente”, na superfície, a relação sexual. Ao contrário, mudanças similares de posição fizeram nascer nas pessoas comportamentos espontâneos, tipicamente aprovados ou repelidos, que incidem a fundo sobre aquilo que para um sexo é sexualmente atraente ou repulsivo no outro. Bastará recordar como hoje, − considerando a enorme superioridade dos homens – a atração sexual, por exemplo, entre irmãos e irmãs pode ser considerada extinta (LUKÁCS, 1981. v. II, p. 149).

Com essa caracterização, Lukács chama a atenção para os aspectos sociais e históricos determinantes da própria atração sexual. No entanto, imediatamente, retoma a questão relativa ao conteúdo biológico ao dizer que “[...] a recíproca atração sexual não perde jamais seu caráter essencialmente físico, biológico”. Há nessa afirmação uma identidade entre físico e

biológico que talvez seja um aspecto a ser retomado para buscar possíveis hipóteses para

compreender o tratamento do que Lukács chamou de dupla base da existência social. A identificação entre físico e biológico – em contraposição ao social – é reafirmada na sequência da mesma frase, ao acrescentar que com a intensificação das categorias sociais, “a relação sexual acolhe em si um número crescente de conteúdos que, mesmo se sintetizando mais ou menos organicamente com a atração física, têm todavia um caráter – direta ou indiretamente – humano social que é heterogêneo em relação a ela”. (LUKÁCS, 1981. v. II, p. 150). Veja bem: atração física não pode ser considerada biológica simplesmente porque é física. Os conteúdos físicos são socialmente transformados e remodelados na existência social4.

Entretanto, a reafirmação da base natural é, de certa forma, negada por Lukács ao considerar que a própria atração física (que, parece, está sendo identificada com biológica)

4 Em outra passagem, Lukács reafirma a identificação entre físico e biológico. Diz ele: “para entender em termos

ontológicos corretos a reprodução do ser social, de um lado é preciso ter em conta que seu fundamento ineliminável é o homem com a sua constituição física, com a sua reprodução biológica; e, de outro, não perder jamais de vista que a reprodução se desenvolve num ambiente cuja base é certamente a natureza, a qual, não obstante, é sempre e cada vez mais modificado pelo trabalho, pela atividade dos homens, da mesma forma como a sociedade, onde se verifica realmente o processo reprodutivo do homem, encontra cada vez menos já ‘prontas’ na natureza as condições da própria reprodução, as quais, ao invés, ela cria mediante a práxis social dos homens” (LUKÁCS, 1981. v. II, p 146).

recebe conteúdos novos distintos dela própria. Nota-se uma busca para comprovar seus argumentos nas figuras históricas concretas assumidas em relação à sexualidade, como o lugar da homossexualidade entre os cidadãos da pólis, “[...] o erotismo na espiritualidade ascética do medievo” que levou à “moderna interioridade erótica burguesa”. Os exemplos concretos mais uma vez só fazem confirmar o caráter social do movimento que modifica sentimentos, atrações, prazeres, repulsas, chegando hoje à “desmedida e espiritualmente vazia ideologia e prática do sexo” (LUKÁCS, 1981. v. II, p. 150). A avaliação de Lukács sobre a banalização do sexo, atualmente, não se constrói a partir de uma perspectiva moralista. Ao contrário, como apresentamos adiante, ele a compreende como resposta social às condutas hipócritas que caracterizam a sociedade burguesa.

No capítulo dos estranhamentos, tratando da relação homem/mulher, o escritor evidencia a necessidade de “[...] tomar em exame também o momento subjetivo, a consciência do estranhante e do estranhado”, visto que para ele “agir por estranhar um outro ser humano comporta necessariamente mesmo o próprio estranhamento”. Lukács entende que as tentativas de superar os estranhamentos “mudam fortemente sua fisionomia” se “o estado de

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