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Vida cotidiana e a questão da personalidade

No documento WILLIAM RIBEIRO PINTO (páginas 95-98)

As contendas conceituais travadas pelos membros das duas escolas vistas até aqui, não por casualidade, tiveram a arte como temática central. Devemos, por isso, comentar essas tensões aclarando o aspecto freudiano do debate e o alcance de sua introdução como referencial.

Souza (2010, p. 67) escreveu a respeito das justas entre Adorno e Lukcás. Segundo ele“[...] a discussão pôs em jogo, a partir de um núcleo de preocupações convergentes, as antinomias de dois pensadores radicalmente opostos. ” Antagônicos, mas talvez nem tanto por

96 que fundou, cada qual, uma perspectiva de leitura das reflexões freudianas. Cada uma, a seu modo, tiveram implicações importantes no campo da historiografia.

Se por um lado a noção de vida cotidiana presente nas discussões de Agnes Heller pode ser vinculada a Lukács e à Escola de Budapeste, por outro, não se pode ligar, a não ser por Freud, a noção certoniana de cotidiano à Escola de Frankfurt ou a seus idealizadores.

Carone (2012, s/p) parte da já conhecida problemática que levou os sociólogos pertencentes a estas duas escolas a mergulharem em profundas reflexões e grandes investigações em meados do século XX.

[...] a população alemã estava bem vacinada pelos partidos de esquerda e pelos movimentos políticos da época para reconhecer de modo imediato os seus próprios interesses e para exercer a práxis transformadora.

Adorno concluiu, a partir de suas pesquisas, que

[...] A adesão à extrema direita não aconteceu por causa da despolitização do povo, mas sim por causa da atração exercida pelo discurso fascista sobre algo que se poderia chamar de estrutura psicológica ou caráter determinado societariamente pela cultura alemã (CARONE, 2012, s/p).

A estrutura psicológica, ou seja, a determinação psíquica, foi a explicação dada por este membro da Escola de Frankfurt ao comportamento do operariado germânico. Ele propôs a existência da dupla determinação das atitudes: a econômica e a psicológica. Estas seriam as instâncias que atuariam sobre o comportamento das massas.

Theodor Adorno nasceu em 1903 e tornou-se um dos expoentes dessa Escola juntamente com Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, entre outros. Partiu dos estudos de Wilhelm Reich, do princípio de que a forma da consciência está duplamente determinada: pela estrutura psíquica e pela estrutura econômica62. Segundo essa

perspectiva, a estrutura psíquica é uma ação negadora das instituições sociais (igreja, escola, família, etc.…) que são, pelo menos em relação à classe média, reguladores da vida instintual de seus membros (CARONE, 2012, s/p).

Devemos considerar, no entanto, que as teses de Reich não foram adotadas integralmente, mas influenciaram a ampla pesquisa intitulada como Autoridade e família

62 Reich referia-se ao povo alemão do período entre guerras e propôs pensar a estrutura psíquica dos aderentes ao fascismo sob a forma de uma economia sexual. A fixação e a dominação dos impulsos pré-genitais e agressivos na vida sexual, para Reich, se expressariam na hostilidade sadomasoquista e na perversão que se pode detectar no âmbito da vida social. A ideologia política seria um canal, um mecanismo a permitir e legitimar descargas parciais de energia libidinal que foi represada e fixada nas fases iniciais da vida (CARONE, 2012, s/p).

97 realizada no ano de 1936, por Adorno, Horkheimer e outros componentes da Escola de Frankfurt. Segundo Carone (2012, s/p) a leitura freudiana feita por Adorno implica que a ideologia, antes considerada como mascaramento do real, converteu-se em transparência nos objetivos. Frente à aderência dos trabalhadores alemães ao fascismo, Adorno postulou a insuficiência da análise marxista. Ao invés de acusar as massas como ignorantes, defendeu a ideia de que o marxismo não seguiu as transformações históricas do fenômeno ideológico.

Com base em Carone (2012, s/p.), podemos dizer que o projeto de Adorno consistiu em estudar as configurações psicológicas historicamente constituídas. Seria mais ou menos pensar que os faxinalenses aderem à mecanização da agricultura por conta da história da constituição de sua estrutura psíquica. Numa terra onde todos usam máquinas, usar máquinas será a norma para todos. Por este caminho, Adorno aproximou-se do campo da história. Isso é marcante para nosso estudo por tratar-se de um sociólogo, que partido de Marx e Freud, aproximou-se do campo da história. Lukács e Heller partem da mesma junção teórica marxista freudiana e desenvolvem a teoria da vida cotidiana, mas sem se espraiar na área da história. Michel de Certeau, desde a mesma vertente teórica, será um historiador aproximando-se da geografia, ou seja, da história da espacialidade, do espaço praticado.

É importante notar que em Personalidade autoritária, Adorno remete a ideologia para o campo do individual e do privado, mas conforme Carone (2012, s/p) o fez sem psicologizar o fenômeno ideológico. Esse dado nos interessa porque pode-se acusar a perspectiva da invenção do cotidiano certoniana de olhar subjetivista ou de prática psicologista. Adorno aparece como resposta a esta questão. Para ele, as ideologias independem de cada indivíduo em particular e estão profundamente vinculadas a cada momento histórico. Assim sendo, exercem atração sobre diferentes indivíduos, em diversos graus, dependendo de suas necessidades. As invenções e as práticas do cotidiano, da mesma forma, não nos interessam individualmente, mas porque estão em um lugar praticado. O vínculo ao lugar elimina o caráter subjetivo, porque é espaço praticado objetivado, fora da psique e da vontade, não na interioridade.

Adorno teorizou a respeito das ideologias, dos discursos enganadores, da cultura de massa. Esclareceu que as opiniões, as atitudes, os desejos e os valores dos indivíduos e dos grupos dependem da organização de certas atividades (tendências, desejos e impulsos emocionais). O fenômeno responsável por esta disposição organizativa é a personalidade - conceito básico nesta teoria, que significa uma estrutura interior que arranja as preferências e as escolhas. Ela, então, seria uma causa determinante das preferências ideológicas dos sujeitos e dos grupos, conforme o contexto social. O recurso à personalidade, nestes moldes, poderia

98 explicar a preferência da maioria dos jovens faxinalenses pela vida urbana ao invés de permanecerem na roça. Para adorno, trata-se de sistemas ideológicos. Tais sistemas (opiniões, atitudes e valores) são organizados por motivações irracionais, estruturas psíquicas, mais ou menos estáveis.

Com base ainda em Carone (2012, s/p.) podemos dizer que, para Adorno, a mesma asserção pode ser falsa ou verdadeira, dependendo do ponto de vista social ou individual. Isto significa que o social seria o critério de verdade, pelo menos em determinados aspectos. Poderíamos dizer que a adoção de máquinas agrícolas pelos faxinalenses, num contexto regional e geral de mecanização da agricultura, seria também adequação à norma. A relação estabelecida com o contexto social e econômico elimina o caráter subjetivista da análise feita por Adorno, e esta é sua contribuição para esta pesquisa sobre cotidiano. Pode-se dizer que Michel de Certeau seguiu o exemplo relacionando as práticas ao lugar em que acontecem.

Adorno fez uma leitura da sociedade que vai da estrutura psíquica até o movimento da coletividade. Então, o domínio do psicológico não é concebido como um fenômeno do mundo interior, nem como aspecto autônomo e fechado em si mesmo o que seria conceber o sujeito como uma equação de energia libidinal (CARONE, 2012, s/p.). A dificuldade foi contornada por Adorno pelo recurso ao contexto histórico, econômico e social.

Vinculando-as à vida cotidiana e ao não-cotidiano, Adorno refere-se à personalidade, vinculando-a à temporalidade, ao contexto econômico e social. Por sua vez, Michel de Certeau, partindo igualmente de Freud, o faz por meio de categorias da espacialidade e do tempo tais como paisagem, lugar, relato, percurso, consumo e outras. As práticas cotidianas, agora, classificam-se como ações comuns e articuladas em determinados sítios. São experiências particulares, frequentações, solidariedades e lutas que organizam o espaço frente ao conjunto normas e atitudes impositivas (CERTEAU, 1998, p.35).

No documento WILLIAM RIBEIRO PINTO (páginas 95-98)