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4. Traços Comuns entre Elegia do Amor, Marânus e “Eleonor”

4.1. Vida / Morte

Pascoaes, a meu ver, reproduz nestes dois poemas a experiência da saudade e faz uma reflexão sobre ele mesmo, do ter ao Ser. O Poeta é a Saudade.

A experiência da dor pelo homem possuidor da saudade tanto universal como individual faz dessa dor saudosa uma ferramenta de percepção, na qual o mundo é entendido como uma eterna recordação. Tudo isso acaba por ser transportado de uma realidade para outra, muito mais real do que aquela, uma realidade suprassensível nascida através da saudade.

Temos a primeira percepção deste facto quando, ao longo do primeiro Canto de Marânus (“Marânus e Eleonor”), somos conduzidos pelos acontecimentos que levam o protagonista a ansiar por uma cisão entre ele próprio e o outro. É através do aparecimento místico e inesperado de uma figura feminina que se dá a cisão que advém do amor, da ausência e da dor, mas que dará forma a uma nova vida. É a constatação de uma separação irremediável entre o “eu” e o “outro” (com esta separação verifica-se o desejo de união). Vejam-se os seguintes versos do mesmo Canto: És da vida e da terra, como eu sou. / Todo o meu ser humano te conhece: / Meu ser que já teu vulto enevoou, / Enquanto foste nuvem ilusória. / Agora, és a verdade, a luz divina. / E a bruma, que meus olhos abafava, / Condensou-se na forma cristalina, / Irradiante e bela do teu corpo. Este é o primeiro nível da história de Marânus e este quando se apercebe que está sozinho sente a ausência daquela por quem anseia. Vejam-se também, tendo em conta este aspecto, os seguintes versos presentes na segunda estrofe do IV Canto de Marânus: Tu, que és meu pobre corpo contingente, / Prolongando-se em íntima ternura, / E,

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noutro espaço, azul e transcendente, / Outra vida vivendo, já liberto; / Seguirei teu caminho, que nos leva / Àquele imenso e trágico deserto….

Estes mesmos sentimentos estão bem patentes em Elegia do Amor, no final da primeira parte e após o relato das lembranças que tem da sua amada, quando o sujeito poético nos faz a descrição do dia em que a sua amada partiu/morreu e da despedida entre ambos. Eis os versos que neste poema nos comprovam também a separação irremediável entre o “eu” e o “outro”: … E a Lua, para nós, / Os braços estendeu. / Uniu-nos num abraço, / Espiritual, profundo; / E levou-nos assim, / Com ela, até ao céu / Mas, aí, tu não voltaste / E eu regressei ao mundo. Pascoaes apresenta-nos assim a Saudade como sendo o casamento entre a lembrança e o desejo, entre o mal e Deus e, por fim, entre a vida e a morte. Esta dicotomia aparece também em ambos os poemas quando o Poeta faz referência ao Outono e à Primavera.

Em Elegia do Amor, logo no início da primeira parte, podemos absorver várias expressões ou palavras ditas “outonais”, característica tão própria da poesia de Teixeira de Pascoaes, como tardes outonais, sol doirado, montes doloridos, crepúsculo terno, vento vagabundo e névoa adormecida. Estas expressões deixam-nos antever a melancolia do sujeito poético; são como um quadro onde podemos observar as cores da nostalgia. Vejam-se os seguintes versos, presentes na segunda parte do poema:

O Outono, que derrama Ideal melancolia

Nas almas sem amor, Nos troncos sem folhagem, Deixa a vibrar, em mim, Saudosa melodia,

Dolorida canção

Que lembra a tua imagem.

São estes os sentimentos do sujeito poético face à ausência da sua amada, no entanto a vida e a figura desta renascem da contemplação e comunhão com a natureza, que fazem cicatrizar as feridas deixadas abertas pelo Outono. Esta cicatrização toma forma com a chegada da Primavera, quando aos olhos do sujeito poético, a amada vive em cada elemento presente na natureza (Vida), em versos como: Quando, em manhãs de Abril, / Acordo,

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de repente, / E vejo, no meu quarto, / O sol entrar, sorrindo, / Julgo ver, ante mim, / Teu corpo resplandecente.

Também em Marânus a referência ao Outono e à Primavera deixa-nos pressentir a alusão à vida e à morte, sendo que a Primavera é irmã da primeira, assim como o Outono se casa com a morte. Em Marânus há como que uma ausência extática de vida e esta torna-se no Outono uma mera recordação. Contudo, a lembrança é o primeiro passo da esperança, sendo a Primavera ou a vida. O Canto XVI, que se intitula “Marânus e a Primavera”, é a continuação do Canto VIII, “Marânus e o Outono”, dois pólos distintos que são a própria Vida e Morte. Morte, quando assistimos à personificação do Outono e Marânus experimenta a sensação de exílio sobre a terra, depois de se enamorar de Eleonor; Vida, quando nasce o novo deus, filho da Saudade, que é o culminar de um ciclo cosmogónico, uma unidade perfeita que integra tanto o “eu” com o “outro”.

Na antologia Poesia de Teixeira de Pascoaes organizada, editada pela primeira vez em 1972 e reeditada em 2002, por Mário Cesariny, deparei-me com um verso que penso ser bastante elucidativo e quase conclusivo para esta questão que tenho vindo a desenvolver sobre a dicotomia vida/morte. Assim, citando o Poeta, “a morte é a figura feminina de Deus”, é a Saudade sendo uma nova vida, renascida da morte, através da lembrança, está ao lado de Deus, é eterna e vive para sempre. Penso ser esta a mensagem transmitida pelo Poeta, a de que a morte, apesar de causar a dor pela ausência, faz também despertar no Ser Humano a lembrança e o desejo de regressar. Numa interpretação muito pessoal, penso que o Ser Humano (em geral) entende a morte como algo que poderá ser mais forte que a própria vida, daí o medo que muitos de nós temos relativamente ao deixarmos a vida um dia. Mas, para mim, Pascoaes transmite-nos a ideia de que a vida, se aliada ao amor, pode vencer a própria morte, pois um amor pode viver para sempre, sendo eterno; o amor verdadeiro em vida vence sempre o estado mortal e pode fazer renascer a pessoa que é amada, mesmo estando esta ausente. A vida vai muito além da existência física, é a força mais abstracta e mais potente à face da terra; não haverá portanto ruptura de laços entre os que se amam de verdade, o infinito do espaço e a eternidade do tempo, assim como a própria morte não

63 conseguirá estabelecer limitações para o amor, para o seu crescimento e para a sua recordação. Nestas obras de Pascoaes, mesmo sendo invisível aos olhos, a pessoa amada (que se foi) não está e nunca estará ausente do íntimo do sujeito poético, assim como nas nossas vidas as pessoas (que partiram) estarão para sempre vivas porque nos nossos corações estas permanecerão em breves lembranças de encontros, de conversas ou momentos.

Como conclusão para este ponto, podemos afirmar que em Pascoaes o Homem saudoso comporta-se frente a pessoas ausentes como se elas estivessem presentes (a ausência é irmã da morte, assim como a presença é irmã da vida). A lembrança concebe e faz conceber; é vida.