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3 A FINITUDE DA VIDA E A CONCEPÇÃO DE UMA MORTE DIGNA

3.1 A vida e sua proteção

O termo vida é polissêmico, vez que admite diversas definições. Mesmo a biologia, ciência que estuda a vida, não consegue estabelecer com perfeição o que é vida, de modo que existem muitas discussões e teorias relacionadas ao conceito de vida, inclusive ligadas a debates filosóficos, religiosos e morais sobre o assunto.

Entende-se que o conceito de vida é constituído por três zonas, representando três níveis de compreensão: o “internalismo”, referente a concepções em que a vida é entendida como processo, propriedade ou objeto inerente à pessoa. É importante para as concepções dadas em disciplinas tais como genética, bioquímica e biologia molecular; o “externalismo”, no qual a compreensão da vida é entendida como algo exterior e, portanto, separado da pessoa, partindo do ambiente que a circunda e com finalidade além dos limites do próprio ser vivo. As concepções religiosas e filosóficas enquadrar-se-iam nesta zona e a “relacional”, no qual a vida consistiria no resultado de relações estabelecidas entre entidades e/ou sistemas. Sustenta que a vida não e um propriedade intrínseca dos organismos vivos, mas resultante das interações dos organismos entre si e seu meio ambiente. A concepção biosemiótica se enquadra nessa zona (COUTINHO, MARTINS, & MENEZES, 2011).

Vários filósofos já tentaram conceituar vida. Para Aristóteles vida é “aquilo pelo qual um se nutre, cresce e perece por si mesmo”. A tradição cristã conceituava a vida como aquilo que nos salva da morte e da aniquilação, conceito que permaneceu durante a Idade Média (XAVIER, MIZIARA, & MIZIARA, 2015).

No âmbito jurídico, a vida humana constitui bem inalienável, protegida em todos os ordenamentos do mundo ocidental, entretanto “não há conceito ou definição de vida em nenhum diploma normativo no Brasil (tradução nossa)” (COUTINHO, MARTINS, & MENEZES, 2011).

As disciplinas de cunho público e privado brasileiras delineiam instrumentos de proteção da vida, ora seguindo uma perspectiva internalista, ora adotando uma compreensão de nível relacional. No tocante a vida humana é possível identificar uma visão externalista, de

fundamentação essencialista, ao qualificar a vida com um em inviolável e indisponível (COUTINHO, MARTINS, & MENEZES, 2011).

O direito à vida está previsto no caput do artigo 5º da Constituição da República de198818, o qual expressa que todos são iguais perante a lei, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, bem como em seu inciso X19. A vida, portanto, é um bem jurídico essencial, inerente a pessoa humana. Cumpre citar o ensinamento de Gonet Branco, em conjunto com Mendes e Coelho, ressalta:

A existência humana é o pressuposto elementar de todos os demais direitos e liberdades dispostos na Constituição. Esses direitos têm nos marcos da vida de cada indivíduo os limites máximos de sua extensão concreta. O direito à vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar outro se, antes, não fosse assegurado o próprio direito de estar vivo para usufruí-lo. O seu peso abstrato, inerente à sua capital relevância, é superior a outro interesse (MENDES, MÁRTIRES COELHO, & GONET BRANCO, 2012, p. 412).

Portanto, sem vida não há existência humana, e se o direito à vida não fosse garantido constitucionalmente, o indivíduo não poderia usufruir de outros direitos assegurados pela Carta Magna, tendo em vista que o direito de estar vivo está conectado a todos os demais direitos e liberdades individuais, exemplo dos direitos à liberdade, à igualdade, à dignidade, à saúde, à propriedade etc.

Para compreender a complexidade dos conceitos referentes à vida, observa-se a definição trazida por Silva:

Vida, no contexto constitucional (art. 5º, caput), não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza de significados é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então de ser vida para ser morte (SILVA, 2006, p. 197).

No plano infraconstitucional, o Código Civil brasileiro, de 2002, em seu art. 2º expõe que “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”

Entretanto “nem só da vida em si se ocupa o legislador pátrio, mas também da sua qualidade, em especial a saúde, nos âmbitos privado e público” (SERTÃ, 2005, p. 12).

18Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

19X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a

As normas referentes à saúde integram os direitos fundamentais, nos termos dos artigos 6º e 196 da Constituição Federal de 1988.

O direito à vida abrange não apenas a existência física, mas designando, além disso, um direito a uma vida digna. Nesse passo, a autonomia do paciente terminal deve ser preservada, garantindo ao paciente o direito manifestar previamente sua opinião sobre quais tratamentos médicos deseja, ou não, ser submetido.

Ademais, o direito à vida não é um direito absoluto, pois não existe no texto constitucional o dever de vida atribuível ao próprio indivíduo. A ação de matar-se escapa à consideração do Direito Penal, não merecendo tipificação específica pelo Código Penal brasileiro. Constitui crime induzir, instigar ou auxiliar o suicídio, conforme previsto no artigo 122 do Código Penal Brasileiro20.

Nesse sentido, quando o paciente é submetido a tratamentos considerados extraordinários, que se tornam desumanos e degradantes a ele já não se pode dizer que existe o respeito à vida, pois o ser humano possui outras dimensões além da biológica, de modo que se deve aceitar o critério da qualidade de vida, e qualidade de vida infere em bem estar físico, psicológico, social, espiritual, cultural e econômico. De Sá, sobre o assunto, ensina da seguinte forma:

Tem-se que não se pode privilegiar apenas a dimensão biológica da vida humana, negligenciando a qualidade de vida do indivíduo. A obstinação em prolongar o mais possível o funcionamento do organismo humano de pacientes terminais não deve encontrar guarita no Estado Democrático de Direito, simplesmente, porque o preço dessa obstinação é uma gama indizível d sofrimentos gratuitos, seja para o enfermo, seja para os familiares deste. O ser humano tem outras dimensões que não somente a biológica, de forma que aceitar o critério da qualidade de vida significa estar a serviço não só da vida, mas também da pessoa. O prolongamento da vida somente pode ser justificado se oferecer às pessoas algum benefício, ainda assim, se esse benefício não ferir a dignidade do viver e do morrer (DE SÁ, 2001, p. 32).

Portanto, há de ser garantido ao paciente terminal o direito de morrer dignamente, tendo em vista que o prolongamento sacrificado da vida contra a sua vontade atenta contra as condições físicas e emocionais vivenciadas pelo enfermo, ademais de ferir sua dignidade, dignidade essa que acompanha o indivíduo em todas as fases da sua vida, inclusive durante o inexorável processo de morrer.

20 Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio.

Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave (BRASIL, 1940).

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