• Nenhum resultado encontrado

Vidas sentenciadas: a morte começa no abandono familiar, social e/ou institucional

O fenômeno da escalada da violência envolvendo segmentos juvenis no Brasil tem se convertido em um considerável dispositivo de controle social dessa população e de seus territórios, que são, em sua maioria, áreas estigmatizadas e vítimas da espetacularização da violência34. Barros e Benicio (2017) assegurarão que o processo necropolítico em andamento no país, responsável por produzir “jovens matáveis”, atribui aos mesmos jovens a pecha de “envolvidos”, com a premissa de normatizar seus extermínios.

Acerca disso, o filósofo francês Michel Foucault (1987) desenvolveu o conceito de biopolítica, afirmando tratar-se de modos como a política lida e gerencia a vida, isto é, de como se instrumentaliza a sua regulamentação em sociedade e de como as formas de punição são engendradas nos diferentes modos de produção. Se no contexto imperial competia ao rei aplicar punições livre e variavelmente, mediante sua vontade diante das transgressões dos súditos, com a presença inclusive de pena de morte em praças públicas, na sociedade capitalista contemporânea o povo está à mercê da frieza e rigidez da Lei e do Código Penal.

Em termos gerais, o homem deixa de ser eliminado e passa a ser controlado, vigiado e docilizado para retomar o convívio em sociedade. As prisões se disseminam carregando em seu bojo o ideário de disciplinar e punir, educar e alterar as más condutas e transgressões humanas. Foucault (1987) demonstra que tal percurso é possível através do biopoder, meio pelo qual o

34 Ação oriunda da atividade de programas policiais que atuam por meio da espetacularização da violência, da

estigmatização e criminalização da periferia, contribuindo para uma abordagem superficial da política de segurança pública.

45

poder político impacta sobre o conjunto de vidas. Poder político que, em nome da vida e da sobrevivência, sustentou guerras e genocídios ao longo da história. Nesse sentido, para o citado filósofo francês,

As guerras travam-se em nome da existência de todos. Populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens. O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; [no entanto] o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão (FOUCAULT, 1988, p. 128).

Ao corroborar com essa perspectiva é possível observar que “[...] a ampla vitimização de jovens por homicídio evidencia o modo de funcionamento de uma sociedade pautada por uma biopolítica da eliminação da figura de sujeitos indesejáveis” (BARROS; BENICIO, 2018, p. 3). Em outras palavras, a eliminação de pessoas elencadas como inimigas, fazendo-se crer que seu extermínio é indispensável para a manutenção da ordem social e política. Nessa direção, verifica-se que os jovens no Brasil, especialmente os negros, têm sido vítimas cotidianas do extermínio sumário e da política de encarceramento em massa, em resposta à biopolítica enfatizada por Foucault (1987), que inscreve o modo organizacional e punitivo da vida em coletividade; e também em resposta ao conceito de necropolítica, elaborado por Mbembe (2018), que comprova a existência e aplicação, por meio do Estado, de mecanismos e aparatos técnicos e tecnológicos para sujeitar o outro, tido como inferior, a uma constante situação de coerção, controle, vigilância e extermínio legitimado e naturalizado.

A política de guerra às drogas no Brasil, acirrada e institucionalizada por meio da lei n. 11.343 de 200635, provocou um sério impacto tanto na dinâmica de aprisionamento como no extermínio da juventude negra e pobre do país, o que corrobora com a perspectiva da necropolítica, observando-se que

[...] no decurso do século XX [...] as drogas adquiriram status central de ameaça, perigo e risco de degenerescência para o indivíduo e a população, configurando-se num problema de interesse diplomático e militar. A biopolítica da guerra às drogas requer que o uso de substâncias psicoativas seja atrelado a hábitos reprováveis de determinados grupos populacionais, o que pode ser exemplificado pela circulação de discursos sobre uma suposta epidemia de crack nas grandes cidades (SOUZA, 2017, p. 36).

35 Lei que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para

prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.

46

A respeito dessa questão, Borges (2018) afirmará que se estabelece uma narrativa de epidemia e amedrontamento da população, o que endossa e requer a militarização dos territórios periféricos sob a justificativa de enfrentamento a tal problema social, a fim de alcançar a paz e a ordem. Destarte, é nessa ótica que se mantém a engrenagem da punição e da vigilância ostensiva desses territórios em movimento, bem como o extermínio, que se justifica tendo sustentação social na personificação de jovens supostamente envolvidos no pequeno tráfico.

Para fortalecer tal evidência, análises reunidas na publicação de 2015 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), intitulada “Porque somos contrários à redução da maioridade

penal?”, demonstram que a política de guerra às drogas nada mais é que um processo articulado

de vigilância e controle territorial da população pobre e negra, eleita o inimigo público principal da nação. Haja vista, foi a partir dos anos 1970, período de transição da ditadura no Brasil, que o “mito da droga” se estabeleceu, indicando: “[...] uma determinação estrutural regulada por leis de oferta e de demanda concomitante a uma carga ideológica e emocional disseminada pela mídia e acolhida pelo imaginário social a partir de uma estratégia global (CFP, 2015, p. 24).

Destarte, a assertiva é reforçada na afirmação que consta da publicação já referendada do Conselho Federal de Psicologia, ao alegar que:

A disseminação do uso de cocaína trouxe como contrapartida o recrutamento da mão-de-obra jovem para a sua venda ilegal e constituiu núcleos de força nas favelas e bairros pobres do continente. Aos jovens de classe média, que a consumiam, aplicou-se sempre o estereótipo médico e aos jovens pobres, que a comercializavam, o estereótipo criminal. Este quadro propiciou um colossal processo de criminalização de jovens pobres que hoje superlotam os sistemas de atendimento aos adolescentes infratores [e o cárcere para adultos] (CFP, 2015, p. 24).

O cenário observado permite afirmar que o problema não é a droga em si, mas a vigilância e o controle da juventude, tida pelo conjunto da sociedade como perigosa. Com efeito, o extermínio da juventude negra brasileira assegura que a guerra às drogas se volta, majoritariamente, para grupos específicos. Guerra essa que é “[...] operacionalizada por uma polícia militarizada que, mais do que no combate a crimes, centra-se na aniquilação da figura do “criminoso-inimigo” (BARROS; BENICIO, 2018, p. 37).

De acordo com o Atlas da Violência 2019 (IPEA, 2019), no Brasil, 59,1% dos homicídios têm como vítimas homens entre 15 e 19 anos. Tal índice pode ser obtido através da base de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde,

47

com destaque para o cenário geral no ano de 2017, quando foram registrados 65.602 homicídios ao todo.

No que se refere à faixa etária dos óbitos causados por homicídios, como se pode ver no gráfico que se segue, chama atenção o maior percentual de homicídios praticados contra jovens com idades entre 15 e 24 anos, com prevalência do sexo masculino em relação ao feminino – tendência que está presente em todas as faixas etárias.

GRÁFICO 6 – Proporção de óbitos causados por homicídios, por faixa etária – Brasil (2017)

Fonte: Atlas da Violência 2019. Elaborado pelo autor.

Corroborando com o pensamento de Barros e Benicio (2018), pode-se acrescentar que o que se ilustra em diversos pontos desta pesquisa é a criação de um perfil amplamente descartável de ser humano, sob a justificativa da criação de consensos e o fortalecimento do combate às drogas. Trata-se, no entanto, do racismo estrutural sendo historicamente autorizado pelo Estado, de modo que

Tal operação de poder pode ser exemplificada quando os autointitulados “cidadãos de bem” partem do princípio de que, em defesa da sociedade, torna- se necessário expor à morte ou até mesmo suprimir a vida de indivíduos considerados perigosos, como o “menor”, o “bandido”, o “vagabundo” e o “drogado”, desumanizando-os (BARROS; BENICIO, 2018, p. 37).

Tal realidade nos enche de indignação e nos impulsiona a indagar onde, de fato, começa o consentimento à decretação de morte de crianças, adolescentes e jovens, especialmente pobres e negros? Não encontramos essa prerrogativa em nenhuma das legislações brasileiras. Em

48

contrapartida, está preconizado no Artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida [grifo nosso], à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão [?] (BRASIL, 1988, p. 132).

Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), seguindo a mesma perspectiva, reforça:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1990, p. 10, grifo nosso).

Por sua vez, o Artigo 2º do Estatuto da Juventude corroborando com os itens assinalados expressará os seguintes princípios:

I - promoção da autonomia e emancipação dos jovens; II - valorização e promoção da participação social e política, de forma direta e por meio de suas representações; III - promoção da criatividade e da participação no desenvolvimento do País; IV - reconhecimento do jovem como sujeito de direitos universais, geracionais e singulares; V - promoção do bem-estar, da experimentação e do desenvolvimento integral do jovem; VI - respeito à identidade e à diversidade individual e coletiva da juventude; VII - promoção da vida segura, da cultura da paz, da solidariedade e da não discriminação; e VIII - valorização do diálogo e convívio do jovem com as demais gerações (BRASIL, 2013, p. 10-11, grifo nosso).

A realidade ora revelada demonstra que, apesar de toda legislação de proteção à infância, adolescência e juventude no Brasil – com atribuições para as três esferas de poder, bem como determinação de deveres e responsabilidades para a família e sociedade civil –, verifica-se a incapacidade de avançar na execução de tais medidas, frente aos limites impostos pelo capital e um de seus pilares: o racismo. Há, portanto, um processo que vigia, controla, coage, pune, encarcera e extermina parcela da sociedade que compõe a classe trabalhadora, convertendo vidas em vidas matáveis em nome da ordem, sob a perspectiva da sociabilidade burguesa. Essas vidas, especialmente de jovens pobres, negros, do sexo masculino, moradores

49

das periferias dos centros urbanos – cujo processo de precarização da vida é também vivenciado por seus familiares e comunidade –, enfrentam desde muito cedo o caminho do insucesso, tendo em seu percurso políticas sociais focalistas, difícil acesso a deficitários serviços de educação, saúde, saneamento básico, dispositivos de criação e desenvolvimento de expressões artísticas, culturais, esportivas, entre outros (CEARÁ, 2016). Nesse sentido constata-se que a morte inicia com o abandono institucional pelo Estado; pela sociedade civil, por meio da personificação do criminoso-inimigo e da não indignação frente ao extermínio; e, por vezes, da condição da família que, comumente, já se encontra abandonada pelo poder público.

A morte social e política precede a morte física desses adolescentes e jovens, concretizando-se a partir de inúmeras ausências.

As ausências se manifestam quando a família não cuida do adolescente [ou jovem] ou não conta com o suporte das políticas públicas, quando os projetos sociais nos quais ele estava inserido são interrompidos, quando a escola não garante a permanência dele em sala de aula, quando a sociedade ou os governos deixam de oferecer as oportunidades para o desenvolvimento pleno... A fragilidade dos vínculos familiares ou afetivos, a deficiência ou insuficiência de serviços e equipamentos públicos, o abandono ou evasão escolar são recorrentes nas histórias de adolescentes [e jovens] envolvidos com a violência letal (CEARÁ, 2016, 75).

Para o Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CEARÁ, 2016), modelo participativo de elaboração e monitoramento de políticas públicas, instituído pela Assembleia Legislativa do Ceará, tal fenômeno requer estudos, esforço coletivo, considerável incidência política, econômica, social, cultural e pedagógica para a garantia da vida e do bem-estar dessa parcela da população. Faz-se necessário, portanto, frear tal construção social, arraigada de senso comum, de que existem vidas matáveis. Em relatório final divulgado pelo Comitê Cada Vida Importa, destaca-se que

Os indivíduos de classe média ou de classe alta não são matáveis”, corrobora o sociólogo Julio Jacobo. Segundo o coordenador da série Mapa da Violência, a inexistência de um sistema nacional de estatísticas criminais é reveladora da indiferença social e política com as mortes dos matáveis. “Não temos ainda hoje esse sistema porque não há o mínimo interesse de que haja estatísticas de qualidade nessa área. Quando morre um matável, não tem notícia no jornal. Ninguém se preocupa muito, ninguém vai sentir sua falta, nem a estrutura social nem a estrutura política”, constata Jacobo (CEARÁ, 2016, p. 76).

Tais assertivas contribuem para a compreensão do processo de banalização da vida e da morte de corpos historicamente marcados e exterminados por agentes de segurança pública ou

50

pelas mãos de outros jovens, isto é, de seus pares, em situações de desentendimentos, dívidas oriundas do tráfico ou não, conflitos entre facções, dentre outras (CEARÁ, 2016).

Para o sociólogo Thiago de Holanda, responsável por coordenar a pesquisa do referido Comitê, viver ou morrer tem demonstrado o mesmo nível de importância, como se um motivo torpe justificasse a violência extremada. De acordo com análise por ele desenvolvida, “Às vezes, até existe a dívida, mas não é com o tráfico, é por 15 reais, um valor ínfimo, e a pessoa bota na cabeça que tem de matar o outro. Ou, então, a pessoa foi morta porque passou na área onde não era permitido entrar. A morte acontece de forma muito rápida e banal” (CEARÁ, 2016, p. 80).

Ressalta-se que as vidas e trajetórias interrompidas não atingem apenas os sujeitos assassinados, mas provocam danos e impactam diretamente o cotidiano de pessoas e famílias sem proximidade com as circunstâncias e repertórios de violência. Tal dinâmica sinaliza abrupta interrupção no pacto civilizatório de proteção à infância, adolescência e juventude, baseado no movimento histórico em que a geração mais velha assegura a vida, a reprodução da mais nova. Essa interrupção geracional passa a ocorrer quando pais, avós e corresponsáveis enterram seus entes mais novos.

A civilidade envolve um pacto social de convivência harmônica e respeito mútuo. Os assassinatos de tantos adolescentes [e jovens] expõem uma dificuldade extrema de relacionamento entre os cidadãos e convívio social, portanto um impedimento da cidadania e um fracasso de sociedade. Quando o comportamento civilizado é substituído pela força bruta, quando a vida perde a importância e a morte se torna banal, nos aproximamos da barbárie, ou seja, da selvageria, da desumanidade (CEARÁ, 2016, p. 95).

Os indicadores até aqui reunidos evidenciam que mais do que algozes, adolescentes e jovens são as maiores vítimas da violência, no entanto, setores da sociedade, tendo como móvel difusor a mídia dominante, internalizam e propagam o oposto. Faz-se necessário o enfrentamento da naturalização dessas mortes de modo a intervir na narrativa de criminalização e racista que, ao longo da história, tem reforçado falsos estereótipos e estigmas. Ao fugir dessa retórica, torna-se compreensível que ninguém deve ser ou estar marcado para morrer, ninguém nasce fadado a cometer um ilícito ou já vem com rótulo de marginal. No transcurso de suas vivências, tais sujeitos seguem por esse caminho. Há necessidade de estudos que aprofundem estes aspectos e proponham alternativas de enfrentamento.

Comumente, o que se presencia no cotidiano é a dinâmica da responsabilização da vítima pela violência sofrida, sendo constatado que:

51

Muitas vezes, a vítima passa a ser culpabilizada pelo crime que sofreu, tendo ou não envolvimento com a violência, o que só amplia a injustiça. Enquanto o julgamento baseado no preconceito ou na reação emocional tira o foco das questões centrais e reforça injustiças contra os segmentos da população mais vulneráveis, também contribui para manter os delitos sem responsabilização, pois o interesse em elucidar os crimes que tiraram a vida de um “bandido” é menor do que quando a morte é de um “cidadão de bem”. Há uma tendência da sociedade em reconhecer o mínimo ou nenhum direito ao agressor (CEARÁ, 2016, p. 105).

Ao se impor ao sujeito vítima de violência letal – esse que é majoritariamente jovem, negro e morador da periferia – a pecha de suspeito e/ou envolvido, automaticamente este é levado a ocupar o espaço do não-lugar, de indigno e não humano. Ao passo que se trata de um não humano, não se faz necessário investigar, dar respostas imediatas, promover comoção social, lembrar o nome, sendo essa uma das etapas fundamentais para a execução da necropolítica ilustrada por Mbembe (2018).

No Brasil, tal discussão deve considerar os aspectos racial e geracional. Dados da Anistia Internacional36 revelam que a cada duas horas 7 jovens negros são assassinados no país. Para além da divisão em classes sociais, existe um modo de ser que também organiza a sociedade em castas raciais. Esse fenômeno, evidenciado pelo Relatório Final do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência de 2016, explica o abismo existente entre pessoas brancas e negras no que concerne às chances de se tornarem vítimas de violência letal.

Enquanto o número de homicídios de jovens brancos no Brasil caiu 32,3% entre 2002 e 2012, os assassinatos de jovens negros ao longo dos dez anos aumentaram 32,4%. Nesse período e nessa faixa etária, as mortes de homens correspondem a 93% do total e os assassinatos de negros a 80,7%. É o que revela o Mapa da Violência, série de estudos elaborada pela Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso), em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no país” (CEARÁ, 2016, p. 117).

O cenário apresentado conduz as autoridades públicas brasileiras a afirmar que o genocídio dessa população existe no país. É o que aponta o parecer final da Deputada Federal Rosângela Gomes, relatora da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, que investigou a violência contra jovens negros em todo o país no ano de 2015 (BRASIL, 2018).

36 ANISTIA INTERNACIONAL. Jovem Negro Vivo. Disponível em:

52

“Os homicídios dolosos, quando há a intenção de matar, são a principal causa de morte na juventude brasileira. Os números do Ministério da Saúde para o período de 2008 a 2011 apontam que 53,3% dos assassinatos foram contra jovens [...] negros” (CEARÁ, 2016, p. 118). Os estudos de Borges (2018) nos induzem à compreensão de que a condição de violência contra a população jovem e negra está associada ao histórico sistema de casta racial que vai desde a colônia aos tempos atuais. Para oferecer subsídios que conceituem o sistema de castas raciais no Brasil, a autora em tela defende a existência de um complexo aparato sistêmico que objetiva garantir e reproduzir a manutenção de desigualdades sustentadas em hierarquias raciais. Significa que o sequestro de povos inteiros do continente africano para atender exigências da expansão originária do capitalismo, e que pôde converter a população negra em objeto, mercadoria, animal, indivíduos sem alma, entre outros, para além de dividir a sociedade em classes sociais, a dividiu também em raças. A intelectual afirma ainda a necessidade de pautar nos debates e estudos sobre classe social no Brasil o contexto racial e colonial, pois quando esse movimento não é realizado invalida-se o fato que

[...] negros são 76% entre os mais pobres no país, que 3 em cada 4 negros estão presentes entre os 10% com a menor renda do país ou que, em 2015, negros recebiam, em média, 59,2% do rendimento dos brancos, mesmo com políticas afirmativas e de incentivo implementadas nos últimos anos. Aliás, este é um importante elemento que precisa ser debatido e enfrentado no âmbito das políticas públicas. Como que, mesmo com políticas de geração de emprego e renda que atingiam prioritariamente a população negra, a pirâmide racial do país pouco mudou? (BORGES, 2018, p. 47).

Esse fenômeno é explicável a partir da constituição e reprodução de castas raciais no Brasil, isto é, o domínio político, econômico e ideológico da população branca, historicamente