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IV. AS RESPOSTAS DO ESTADO DE DIREITO NO PLANO PROCESSUAL PENAL

4.2. Os“meios ocultos” de investigação e a compressão dos direitos e garantias

4.2.1. Vigilância e controlo eletrónico

4.2.1.1. O potencial tecnológico e a tentação escópica

A tecnologia, que tem um papel fulcral no desenvolvimento das relações sociais e económicas, introduz, simultaneamente, profundas vulnerabilidades no exercício dos direitos de cidadania e assustadoras possibilidades de controlo social.

Qualquer cidadão que utilize um simples cartão de débito ou de crédito e um telemóvel constitui-se um alvo potencial, suscetível de ter a sua vida devassada 24 horas por dia, em tempo real ou diferido, através da recolha da pégada eletrónica das suas ações e movimentos.

As relações sociais processam-se, já, maioritariamente, através de redes digitalizadas que permitem, a todo o momento, não só identificar os seus utilizadores, como definir categorias de perfis e padrões comportamentais, culturais e ideológicos.

O uso do big data e dos metadados nas redes sociotécnicas (telecomunicações, energia, água, transportes, homebanking, pagamento eletrónico de portagens e estacionamento, venda eletrónica de serviços e bens, terminais multiserviços, etc.) são fontes inesgotáveis de informação e de potencial localização e controlo das atividades dos cidadãos.

Na sociedade escópica e de controlo262, onde as denominadas técnicas NBIC (nanotecnologia, biotecnologia, inteligência artificial, ciências cognitivas e mecatrónica), entre outras tecnologias emergentes, adquirem um peso e um protagonismo cada vez mais abrangente e sufocante em todos os campos da vida social, germinam certas categorias de soluções que põem em causa os valores humanistas (ainda) dominantes263, cuja aceitabilidade se discute no plano dos princípios264.

Como procuraremos demonstrar no final deste capítulo, o potencial tecnológico disponível neste tipo de sociedade, estimula e potencia os riscos de securitarização da

262 DELEUZE, G. - Pourparlers. Paris: Ed.Minuit,1990. Do mesmo Autor - Post-Scriptum sobre as

Sociedades de Controle in L'Autre Journal. 1990. n° 1/maio.

Disponível:http://historiacultural.mpbnet.com.br/posmodernismo/PostScriptum_sobre_as_Sociedades_de_C ontrole.pdf.Consultado em 17/4/17.

263 Sobre este tema v.g. COUTURIER, Jousset- Béatrice - Le transhumanisme - Faut-il avoir peur

de l"avenir?. Paris. Ed. Eyrolles, 2016.

264 Sobre a suposta falência da cultura humanista nas sociedades contemporâneas e o papel das

biotecnologias no futuro da Humanidade, v.g. a polémica conferência de Elmau, na Baviera, em 1999 com a apresentação de: SLOTERDIJK, Peter - Regras para o Parque Humano - Uma Resposta à “Carta sobre o Humanismo”. Coimbra: Ed. Angelus Novus, 2008 e ainda: HABERMAS, Jurgen - O Futuro da Natureza Humana - A Caminho de uma Eugenia Liberal?. Coimbra: Almedina, 2006.

95 investigação criminal, libertando-a, indiretamente, na prática policial, da observância de garantias e limites que lhe são inerentes no Estado de Direito.

4.2.1.2.Prova documental tecnológica e eletrónica

Como já vimos (2.1.5.4.), no plano cronológico, o primeiro “meio oculto” de investigação, introduzido, no longínquo ano de 1929, no ordenamento interno, foi as escutas ou interceções telefónicas que constituem, hoje, no Código de 1987, no plano doutrinário e jurisprudencial, o ponto focal de referência para a fixação do regime jurídico de outros meios tecnológicos equiparados, bem como para a localização celular265 e pedidos de tráfego de comunicações (faturações) telefónicas (Lei 48/2007 de 29 de Agosto).

Consciente do elevado potencial intrusivo deste meio de obtenção de prova, o legislador concebeu-o, como ultima ratio probatória266, dotando-o de mecanismo de controlo e de escrutínio reforçados, assentando o seu regime jurídico de admissibilidade em 3 pressupostos fundamentais:

-A natureza subsidiária da escuta telefónica (nº 1 do art.187.º), exigindo-se a prévia demonstração da sua indispensabilidade para a descoberta da verdade, ou da impossibilidade ou extrema dificuldade de obter a prova através de outros meios;

-A utilização deste meio, restringida ou confinada a um catálogo pré-definido de tipos criminais supostamente mais graves, complexos, cometidos de forma organizada ou em que a utilização do meio tecnológico integra o próprio tipo (ameaça pelo telefone);

-A interdição da sua utilização para fins preventivos. O recurso a este meio apenas pode ter lugar no processo penal (art.34.º n.º 4 da CRP), em fases do iter criminis que sejam puníveis.

O catálogo de crimes inicialmente introduzido pelo DL n.º 78/87 de 17 de fevereiro, e posteriormente alargado pelo DL 317/95 de 28 de setembro e pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto267, é suficientemente vago e abrangente para nele caberem não só tipos de crime

265 O nº 2 do artigo 252.º-A do CPP, com as alterações introduzidas pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto,

equipara a localização celular ao regime da interceção telefónica bem como os pedidos de tráfego de comunicações e faturações telefónicas, exigindo que tais pedidos, apenas possam ser solicitados relativamente aos crimes e às pessoas previstos no art.187º nº1, 2 e 4 do CPP e, sempre, por despacho judicial. Este regime de admissibilidade restritivo resulta do facto de não se pretender apenas proteger o bem jurídico privacidade, mas também a expressão mais genuína do direito à liberdade, o jus ambulandi.

266 Seguindo o entendimento de Carlos Adérito Teixeira, quando afirma: “Não se trata, porém de ser o

último meio a lançar-se mão, num sentido cronológico, mas sim o «último» no plano lógico ou lógico- funcional. De outro modo, se o critério fosse cronológico, só no fim do inquérito é que haveria lugar a escutas; nessa altura, já não se justificaria porque a prova estaria coligida ou já não se poderia obter porque a oportunidade efectiva ter-se-ia gorado. (…) a escuta será o último meio a usar no quadro de um juízo a estabelecer entre as vias disponíveis ou na escala de possibilidades dos meios de prova, tendo em vista um certo resultado que se não alcança por essas outras vias”. TEIXEIRA, Carlos Adérito - Escutas Telefónicas: a mudança de paradigma e os velhos e novos problemas in Revista do CEJ. Lisboa: 2008.nº 9, 1.º Sem. p. 245.

267

Este diploma, reagindo a críticas da doutrina e da prática forense, veio introduzir algumas alterações restritivas no regime de escutas, designadamente: limitando o recurso a este meio apenas à fase de inquérito; fixando a competência exclusiva do JIC para a sua autorização; limitando temporalmente a sua

96 organizado, grave e complexo, mas também um alargado espetro de tipos de criminalidade comum