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A conquista de Arzila em 1471 constituiu mais do que um episódio militar onde uma vila norte-africana trocou de senhor através da força das armas. Tratou-se, sim, de uma campanha militar meticulosamente planeada, para a qual foram recrutados dezenas de milhares de combatentes, fretados centenas de navios e recolhidos mantimentos e armas, dentro e fora do reino, em quantidade suficiente para garantir o sucesso da ofensiva.

Em 1471, a conjuntura era propícia ao lançamento de uma campanha no Norte de África. Portugal encontrava-se pacificado internamente e mantinha boas relações com a Coroa castelhana. Por outro lado, o reino de Castela encontrava-se envolto numa guerra civil latente, que acabava por envolver também Aragão e Navarra, pelo que não representava perigo para Portugal. Do outro lado do Estreito de Gibraltar, o sultanato de Fez encontrava-se dividido, e vulnerável a ataques externos. Quando os Portugueses caíram sobre Arzila, o seu alcaide encontrava-se a cercar a cidade de Fez, e portanto demasiado longe da acção para poder impedir a queda da sua vila.

O alvo da expedição foi criteriosamente escolhido, tendo-se mesmo recorrido à utilização de espiões que fizeram, in loco, a recolha prévia de informações úteis, como a capacidade defensiva de Arzila ou a facilidade com que nela se poderia desembarcar uma hoste. A escolha daquela vila deveu-se à compreensão de que Tânger constituia uma alvo demasiado bem defendido e portanto mais arriscado de atacar – como fora demonstrado pelas

979 Sobre a atribuição de mercês por serviços prestados durante a conquista de Arzila, veja-se o Quadro nº 2.

130 campanhas de 1437 e 1463-1464 – e não apenas a uma falta de meios materiais, como afirmava Rui de Pina. O rei e os seus conselheiros compreenderam que era melhor isolar Tânger, conquistando praças em seu redor, por forma a facilitar a sua eventual queda. Essa estratégia acabou por dar frutos logo após a conquista de Arzila, uma vez que Tânger foi abandonada pelos seus moradores e prontamente ocupada pelos Portugueses.

Nunca antes tinha sido levantada em Portugal uma hoste tão numerosa. Não terão sido levantados 30.000 homens de combate, como sugere Rui de Pina e como tem sido repetido, ainda que com algumas cautelas, pela historiografia. O número de combatentes seria antes de 23.000, de acordo com o que foi escrito por D. Vasco de Ataíde, prior do Crato, que integrou a expedição e ao que tudo indica a ajudou a organizar. De resto, as memórias deste prior – ao que parece desconhecidas da maior parte dos historiadores – são de grande importância para a compreensão não só do número de homens que combateram em Arzila, mas também para o número de navios que foram fretados, 338 no total, e para o custo da expedição, que ascendeu a 135.000 dobras ou 16.200.000 de reais.

Embora as crónicas de Rui de Pina e Damião de Góis apenas refiram a presença em Arzila do duque de Guimarães e dos condes de Marialva, Monsanto e Valença, a nossa pesquisa exaustiva tendo por base a documentação da chancelaria de D. Afonso V permitiu revelar vários milhares de indivíduos que tomaram parte na conquista de Arzila, muitos dos quais, sobretudo nobres, nunca antes tinham sido associados a esta expedição.

As presenças do rei e do príncipe na expedição foram, sem dúvida, factores de grande importância, pois compeliram a fidalguia a servir a Coroa. Assim sendo, em Arzila apenas não tomaram parte os dois duques do reino, o de Bragança e o de Viseu, ausências que se deveram, respectivamente, à velhice e à juventude dos indivíduos. Ainda assim, foram várias as dezenas de indivíduos pertencentes a estas Casas que estiveram presentes na conquista de Arzila. De resto, participaram na expedição o marechal do reino, os condes de Vila Real e Faro, os futuros condes de Penela, Olivença, Monsanto e Marialva, os senhores de Vila do Rei, das Alcáçovas do Cadaval e do Redondo, de Celorico de Basto e da Maia, o futuro senhor de Sagres e de Beringel etc. Também os grandes eclesiásticos tomaram parte, como os arcebispos de Braga e Lisboa, e os bispos do Porto, Lamego, Coimbra e Tânger. A presença da grande maioria destes indivíduos foi, até ao presente momento, ignorada pela historiografia, apesar de todos terem recebido um qualquer benefício pelos serviços prestados à Coroa naquela ocasião.

As populações concelhias prestaram serviço em Arzila, sobretudo através dos aquantiados e dos besteiros do conto e de cavalo, e por isso centenas de indivíduos foram

131 privilegiados, como se pode ver nos quadros que elaborámos e que se encontram presentes nos anexos. Também participaram membros das Ordens Militares, desde logo o já referido prior do Crato, bem como vários comendadores das restantes ordens, e por isso foram agraciados com importantes recompensas. Na conquista de Arzila e na ocupação de Tânger tomaram parte, de acordo com a nossa pesquisa, pelo menos 1162 homiziados. Trata-se de o maior número de criminosos que até então se integrou numa hoste portuguesa. Todos seriam perdoados dos respectivos crimes pelos serviços prestados na expedição. Por fim, refira-se a presença de pelo menos um mercenário castelhano na conquista de Arzila, facto que até ao presente não fora revelado.

Em termos de preparativos materiais, o reino encontrava-se, em 1471, bem guarnecido de armas e artilharia. Boa parte desse armamento é, de resto, claramente reproduzido pelas Tapeçarias de Pastrana. Ainda assim tiveram lugar algumas encomendas de armamento, bem como de mantimentos variados, por forma a abastecer as tropas recrutadas.

A historiografia portuguesa tem defendido, apoiando-se na crónica de D. Afonso V escrita por Rui de Pina, que a conquista de Arzila foi relativamente fácil e simples. Porém, ao comparar os relatos de Pina e de Jean de Wavrin, é possível perceber as lacunas e omissões do cronista português no que ao decorrer dos acontecimentos diz respeito, bem como nos dados relativos ao número de baixas do lado português. Seguindo a versão, a nosso ver, mais fiável de Wavrin, fomos capazes de construir uma narrativa acerca da conquista de Arzila que, até ao momento, é inédita. Não só colocámos completamente de lado a tese de que um rumor tinha provocado um ataque súbito a Arzila, e que tinha culminado na conquista da vila, como revelámos as dificuldades reais do cerco. Ao longo dos quatro dias de cerco, foram vários os avanços e recuos por parte das forças portuguesas, contrariando a tese defendida por Rui de Pina – e pela historiografia que se apoiou no seu relato – de que Arzila tinha sido conquistada de uma só assentada. O elevado número de baixas portuguesas – 1.700 mortos de acordo com Wavrin, dos quais Rui de Pina refere apenas 200 – é por demais revelador das dificuldades enfrentadas. O número de baixas inimigas seria ainda maior, com 1.770 mortos e cerca de 5.000 prisioneiros, mas não podia ocultar – como tentou fazer Rui de Pina, por ser um funcionário régio preocupado com a imagem da Coroa – o sangrento peso da vitória.

A conquista de Arzila foi levada a cabo fazendo uso de métodos antigos e comprovados, como a utilização de escadas de cerco e aríetes, aliados às novas tecnologias bélicas, como as armas de fogo ligeiras. A artilharia pesada, em particular, desempenhou um papel preponderante durante o cerco, dado que as brechas que abriu nos muros de Arzila

132 precipitaram a conquista da vila. Em simultâneo, combateram lado a lado, e desempenharam importantes papéis, corpos de tropas armados com armas seculares – como as bestas –, bem como com armas que incorporavam a mais recente tecnologia – caso das espingardas. No cerco de Arzila, os espingardeiros demonstraram – em ambos os lados da barricada – a mesma eficácia que futuramente os levaria a substituírem por completo os besteiros.

Para o rei, a conquista de Arzila sagrou-se como um novo feito digno de celebração não apenas no reino, mas um pouco por toda a Cristandade. D. Afonso V obteve assim renovado prestígio enquanto cavaleiro conquistador e defensor da fé cristã. Os seus feitos foram espalhados pela Europa, e comemorados, por exemplo, com a criação do já referido relato de Jean de Wavrin. Com a queda de Arzila veio a célere e inesperada ocupação de Tânger que, em conjunção com a troca da família do alcaide de Arzila pelas ossadas do infante D. Fernando, significou o fim de um trauma que, no seio da família real, durava desde 1437.

Por fim, a queda de Arzila propiciou a assinatura de um tratado de tréguas com o reino de Fez, o primeiro que reconhecia oficialmente a presença portuguesa na região, e que veio consolidar até finais do século XV a presença portuguesa no Norte de África. Este tratado, que até ao presente momento mereceu pouca atenção, veio permitir a D. Afonso V, conforme defendemos, uma pacificação do cenário norte-africano, permitindo-lhe assim regressar a Portugal e concentrar-se nas ambições castelhanas que mantinha há vários anos. De resto, julgamos ter conseguido demonstrar, fazendo uso de documentação avulsa, como a ocupação de Tânger ocorreu antes da assinatura do tratado, e não depois conforme afirmava Rui de Pina .

Por todas estas razões, a conquista de Arzila constituiu mais do que um acontecimento temporalmente limitado, cingido apenas a Agosto de 1471. Os reflexos da conquista foram significativos para o rei, para o reino e para todos aqueles que participaram na conquista e que desse serviço recolheram as benesses devidas.

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