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A VIOLÊNCIA COMO LEGITIMAÇÃO SOBERANA

É difícil pensar que uma pessoa esteja na posição de objeto ou de sacer sem haver uma forma de violência envolvida. Definida pela OMS como o “uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha a possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico [...]” (SCHRAIBER et al., p. 114), podemos

perceber que a violência é muito mais do que isto. A violência é um processo onde o sujeito é transformado em coisa, seja pelo abuso físico, pela ameaça de usá-la, abuso sexual, ataque à moral ou ao psicológico. A violência sempre foi utilizada como uma forma de controle social. Do antigo mito grego de Chronos ao moderno mito do Pai da horda primeva, a violência é a forma pela qual se mantém o controle dos grupos e dos corpos. Seja o pai que mata seus filhos, devorando-os, ou que os impede de exercerem sua sexualidade, ou da mãe que faz complô com seu filho para matar seu pai, ceifando justamente aquilo pelo qual este pôde se tornar genitor, o corpo parece ter sempre sido o espaço privilegiado para o acontecer da violência.

Contudo, tais imagens de violência, ou da barbárie, formas de manter ou de tomar o poder, não existem apenas nos mitos. Acontecimentos como o Domingo Sangrento na Rússia ou o Holocausto do Nazismo, tão presentes ainda no imaginário social, talvez um dia sejam pensados apenas como mitos, justamente por parecerem estar tão longe da racionalidade e da simbolização humana. Racionalidade esta que começou a ser tão valorizada no final do século XVII na Europa, principalmente a partir do Iluminismo, e que é marca de orgulho e ostentação durante todo século XVIII. Uma racionalidade que, em tese, deporia reis e colocaria em cheque privilégios e repressões da igreja, balizando mais os indivíduos.

Não é à toa que a Renascença se constituiu a partir da oposição à autoridade e à violência imposta na dita Idade das Trevas. A ideia, se nós podemos dizer assim, é que os próprios homens estabelecessem entre si as posições de poder e prestígio, posições estas que podiam mudar sem ficar atreladas a uma ordem imutável, ao Pater Poder, ou aos representantes do poder de Deus, representantes do próprio poder soberano. De maneira progressiva, vemos o poder soberano em constante declínio ou transformação, inclusive as formas de violência ligadas a ele. Se o poder vem de Deus, a soberania é imposta por seus representantes, e todos os demais são vidas a serem submetidas. Com a morte de Deus, muito bem anunciado por Nietzsche, o poder soberano fica à mercê dos grandes burgueses, comerciantes e futuros donos de fábrica.

Os chefes de família encontram aqui sua importância máxima, mas isto não dura até a contemporaneidade, pois que o pai está morto já observamos no texto de Freud, e o poder soberano mais uma vez se desloca, caindo nas mãos das crianças: “sua majestade, o bebê” (FREUD, 1914/1976, p. 37). E quantas violências não foram

geradas na mulher em nome da criança, como todo o controle “científico” em cima de seu corpo, através do surgimento das novas formas de medicina como a obstetrícia e da ginecologia, bem como através de políticas como a antiabortiva, em que a mulher perde totalmente o controle de seu corpo. Porém, como todo poder soberano está fadado a um fim, isso também ocorre na contemporaneidade com esta visão da criança como futuro, e da mãe como a protetora dela, já que, cada vez mais, a mulher está se emancipando deste papel de ser mãe. “Ser mãe” deixa de ser o principal destino almejado por muitas mulheres, e elas vão aspirar principalmente por outros papeis sociais.

Seja por aspirar novos papéis sociais, seja pelas posições depressivas de algumas mulheres frente à vida, segundo observações clínicas como as de Green, o fato é que o papel de mãe está em xeque na contemporaneidade, e que a derrocada da soberania da criança em detrimento da mãe, gera uma nova maneira de se dar a violência. Assim, na contemporaneidade, Green (1988) afirma uma morte da figura materna, e que tal morte caracteriza uma implicação estrutural para a criança que vivencia tal perda não como destrutividade sangrenta, mas como depressão grave ou simplesmente estado de vazio. É o desinvestimento libidinal que caracteriza os estados de vazio vistos na clínica contemporânea e que têm a ver com o objeto primário, a mãe. Tais desinvestimentos libidinais podem se dar de forma tão massiva e radical no psiquismo que acabam por deixar marcas no inconsciente, “buracos psíquicos”, que podem ser preenchidos das mais diversas formas, dentre estas, a violência.

Para Costa (2010) a violência mostra-se efetiva em nível narcísico desde que um objeto, considerado bom em determinada época, passa a ser representado como mau ao negar prazer, ao desencadear dor, ou por ser “ausente e destrutivo” (COSTA, 2010, p. 176). Isto tem consequências fundamentais no narcisismo da criança:

O narcisismo moderno, dissemos, é um narcisismo defensivo, voltado para o investimento do corpo, que se tornou foco de sofrimento e ameaça de morte pela ação da violência. Esta hipótese choca-se aparentemente com as teses sobre o hedonismo da sociedade contemporânea. Porém, ao nosso ver, esta faceta vendável da ideologia do bem-estar é divulgada para dissimular o medo do sofrimento e da morte, que apavoram o indivíduo moderno. (COSTA, 2010, p. 178).

Narcisismo e violência se embrincam nestas novas modalidades do mal-estar na contemporaneidade, que podem ter seu início remetido à década de 70, mas que expressa claramente seus signos mais representativos a partir da década de 90. Este mal-estar está vinculado no campo do corpo e da ação social. Não é à toa que a própria violência apresentasse de forma gratuita, de tal forma que a descarga psicossomática não tem potencial de simbolização (BIRMAN, 2009).

Como Birman afirma (2009), tais mal-estares são sinais da incapacidade contemporânea de transformar dor, que é da ordem do registro da quantidade na qual a experiência subjetiva se fecha sobre si mesma, em sofrimento, que é da ordem da qualidade, experiência subjetiva capaz de fazer pontes com outras experiências subjetivas. É a condição solipsista da subjetividade (BIRMAN, p. 2009), pois a contemporaneidade é marcada justamente pelo utilitarismo das massas, simples quantitativo de corpos humanos, e desqualificado a capacidade de produção de sentido e das vinculações que só o agir grupal propicia.

Dizer que a mãe está morta significa falar da incapacidade contemporânea de suportar a frustração ou as mudanças sociais devido a um déficit narcísico que, não raramente, se escamoteia de um exibicionismo e enaltecimento narcísico. É objetivando controlar estas mudanças, que o Eu recorre à violência. A expressão máxima desta lógica, e talvez à lógica da própria violência, é que "o Eu rompe, mas não se dobra" (GREEN, 1988, p. 169). A violência é a última saída ao Eu para não se modificar.

Assim, a imagem de si mesmo, é também uma forma de autocontrole determinante nas relações sociais. Galinkin (2006) considera que a noção de pessoa, bem como tudo que se refere à realidade social, é constituída nas relações sociais. Tal afirmação se apoia nos estudos de Marcel Mauss que afirma não ser inata ao espírito humano na ideia de pessoa, mas sim que ela é uma produção social, tendo uma história própria e diferenciações de uma sociedade para outra. Assim, a noção de pessoa varia dependendo do sistema de organização e relações sociais e de seus significados construídos. Esta posição difere daquela tradicionalista, onde cristaliza a noção de pessoa, ou até mesmo a noção de caráter ou personalidade, a sendo algo com o qual o homem já nasce. Também difere em relação com algumas crenças religiosas, onde a noção de pessoa é transcendental, vinculada com a alma ou com o espírito. Ao situar como constituída nas relações sociais, Galinkin (2006) coloca um

ethos na noção de pessoa justamente por este aspecto do homem, e nenhuma

entidade metafísica ou natural, em ser aquele que atribui sentido a si mesmo.

Galinkin (2006) aponta que o período histórico da Revolução Francesa é marco fundamental para a mudança social e política de um mundo com uma visão teocêntrica, para um com visão antropocêntrica, onde o homem é senhor de seu destino. Este foi um período de constantes mudanças nas relações sociais no trabalho, na família, na estrutura de poder político, bem como em toda organização comunitária medieval. O indivíduo passa a ser um fim em si mesmo e o papel do Estado é garantir a liberdade e as oportunidades individuais.

Esta mudança estrutural desencadeada pela mudança do lugar estabelecido para o eu no mundo, dá indícios para entender que todas as formas de relações estabelecidas na sociedade são perpassadas pela forma como o ser humano entende seu lugar no mundo. Estabelecer seu lugar social é dar limites as suas relações com este social. A violência, então, é o que ultrapassa o limite das relações, e não obstante acaba instaurando novos limites quando usada como controle social.

Basaglia (1985) discute justamente como a violência está tão impregnada em hábitos e comportamentos de algumas instituições, que inclusive possuem como papel cuidar, educar ou tratar, e que, por apresentarem um discurso de que são medidas necessárias, as pessoas acabam nem notando, ou nem se importando, que na verdade é violência sem nenhum propósito funcional real. Assim, Basaglia (1985) comenta que nos hospitais psiquiátricos os pacientes são concentrados em grandes salas de onde não podem sair nem mesmo para ir aos sanitários:

Em caso de necessidade o enfermeiro vigilante aperta uma campainha para que um segundo enfermeiro venha buscar o paciente e o acompanhe. A cerimônia é tão demorada que muitos doentes acabam fazendo suas necessidades ali mesmo. (BASAGLIA, 1985, p. 99).

Basaglia (1985) também observa práticas de violência em outras instituições, como num hospital público, onde o internado provavelmente será vítima de variações de humor por parte da equipe médica; ou numa escola, onde sobre a ameaça de ficarem de castigo, as crianças devem ficar mudas, impossibilitadas de conversar com

seus colegas; ou mesmo numa família, onde os filhos são punidos por seus pais por não serem aquilo que eles desejam.

A violência é exercida nas instituições em cima de quem ela deveria favorecer, como se para cumprir o seu officium fosse necessário que os usuários dos serviços se transformassem em objetos, passíveis de quaisquer comandos dados. Isto é favorecido por existir uma clara divisão de funções, numa hierarquização das relações, como a do professor e aluno e a do médico e doente. Estas imagens de violência, da qual as pessoas geralmente têm consciência, mas preferem ignorar, aparece cotidianamente em graus diferentes, obedecendo à necessidade de quem detém o poder de explicitá-las ou de disfarçá-las.

Assim, enquanto um governo prefere abafar casos de torturas contra esquerdistas, outro governo deixa evidente o assassinato de dezenas de pessoas desarmadas em praça aberta para que os demais, com medo, não tentem mais sequer orar por mudanças. Quanto mais a violência está diluída no cotidiano, mais ela serve como controle social. E quanto mais os governos usem a desculpa de seu ofício para legitimar a violência como instrumento, mais pessoas terão suas vidas desqualificadas, seus direitos ignorados, e mais ocuparão o lugar de homo sacer.

Tanto os rituais dos enfermeiros, quanto o controle abusivo da professora ou as surras dos pais, são justificados pelos agressores, que detém o poder, com fins a disfarçar sua violência. Assim, suas “ações” são necessárias no tratamento da doença, ou para conseguir ensinar/educar. Esse poder é transferido, nos dias atuais, para as figuras dos técnicos, como psicoterapeutas, assistentes sociais, entre outros, que possuem como função adaptar os indivíduos a sua condição de “objetos de violência”. Assim, Basaglia afirma que:

Isto significa que o que caracteriza as instituições é a nítida divisão entre os que têm o poder e os que não o têm. De onde pode-se ainda deduzir que a subdivisão das funções traduz uma relação de opressão e violência entre poder e não poder, que se transforma em exclusão do segundo pelo primeiro. A violência e a exclusão estão na base de todas as relações que se estabelecem em nossa sociedade. (BASAGLIA, 1985, p. 101).

Se para Basaglia a violência está na base de todas as relações de sua sociedade, para Elias (1993), o controle social, e a violência pela qual este controle

se presentifica, são a própria condição da civilização. Para Elias (1993) nada na história indica que o processo civilizador se deu por algum planejamento calculado em longo prazo por grupos ou pessoas, nem que as ações das pessoas no passado estiveram orientadas racionalmente e conscientemente para tais fins. Esta se deu possivelmente pelo entrelaçamento de muitos planos e ações, impulsos emocionais e racionais, dos indivíduos e grupos ao longo do tempo, e isto pode dar origem as mudanças e aos modelos que anteciparam o processo civilizador. Contudo, para que esta rede possa existir, é necessário:

A moderação das emoções espontâneas, o controle dos sentimentos, a ampliação do espaço mental além do momento presente, levando em conta o passado e o futuro, o hábito de ligar os fatos em cadeias de causa e efeito – todos estes são distintos aspectos da mesma transformação de conduta, que necessariamente ocorre com a monopolização da violência física e a extensa das cadeias da ação e interdependência social. (ELIAS, 1993, p. 198).

Mais do que uma aliança entre os indivíduos para poder formar a civilização, o que Elias (1993) fala é que esta civilização simplesmente ocorreu, sem nenhuma divindade ou intenção superior que a orientasse para isto, e que aspectos como o domínio da violência física, bem como o controle das emoções e sentimentos, foram fundamentais desde seus alicerces, e que também continua a perpassar durante sua história. Embora na história humana comportamentos considerados selvagens, e por isso mais violentos, tenham mudado para outros mais “civilizados”, a violência física, e a ameaça de que dela emana, continua exercendo influência decisiva na vida das pessoas, estejam elas conscientes disto ou não.

O exemplo mais claro que Elias (1993) traz disto é o caso da transformação da nobreza, que a princípio era uma classe de cavaleiros, em cortesãos. Nos tempos em que eram guerreiros, onde seu cotidiano era repleto de batalhas, a moderação de seus afetos era inútil e nula. Se vitoriosos, tinham uma satisfação sem limites do prazer à custa das mulheres que desejasse, ou na destruição ou tortura de quem lhe fosse inconveniente. Mas se fossem derrotados, eram alvos de toda violência daqueles que os derrotaram, sofrendo injúrias e agressões iguais ou piores do que eles próprios fariam. Isto nos faz retornar à problemática discutida por Agamben do sobrevivente. A lógica contemporânea herdada do nazismo em relação à aceitação,

mesmo num estado de direitos e entre cidadãos, da existência do homo sacer é: maior que qualquer empatia que eu possa ter com a destruição do outro, o fato disto não estar acontecendo comigo me deixa não apenas sem agir, mas traz também uma alegria.

Assim, Basaglia e Elias demonstram como o controle de pessoas e de grupos se dá através da violência que está sempre presente nas relações sociais, bem como na civilização como um todo. Seja através da nítida violência das batalhas e guerras, seja da violência embutida nos comportamentos justificados de algumas instituições, seja no próprio autocontrole, que em alguns casos é uma violência aplicada a si mesmo.

Discutir como o controle social e a violência se encontram em todas as relações sociais e como a imagem do eu é também forma deste controle, nos dá base para poder discutir como, nas sociedades contemporâneas pode-se falar de um domínio da imagem. Domínio este que se apresenta no maciço investimento financeiro e afetivo na imagem da mercadoria (publicidade), na imagem do eu (narcisismo), ou mesmo na imagem das outras pessoas (corpo-mercadoria).

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