As relações que envolvem o universo familiar convivem, ainda no alvorecer do
século XXI, com o exercício da violência no seu cotidiano. As manifestações desse
fenômeno sempre buscaram apoio consensual ou legal para legitimar ditos atos,
seja nos campos de batalhas nos tempos de guerras e conflitos, seja entre as forças
políticas estruturadas institucionalmente em tempos de paz. Porém, adquire maior
dramaticidade quando se refugia no interior do domicílio e é direcionada aos
integrantes da própria família, especificamente à mulher que compartilha a
intimidade marital ou aos mais fracos do grupo.
A compreensão dessa violência implica analisar uma realidade onde
perpassam disputas motivadas por divergências, assimetrias de idade e sexo,
relações de poder e papéis de gênero. A configuração cotidiana da experiência
familiar envolve processos que materializam uma realidade muitas vezes
desconhecida, anônima, silenciosa e clandestina, e, circunstancialmente, expõe a
cumplicidade corrosiva dos adultos envolvidos. Portanto, diferenciar a violência
doméstica da violência intrafamiliar, contribui para captar de forma mais ampla sua
magnitude e dimensionar as fronteiras do seu território.
A primeira, pela sua adjetivação, se situa territorialmente em um espaço
delimitado, intramuros, reservadas do público. Entretanto, a violência doméstica,
embora seja relacionada na maioria das vezes com a mulher como alvo, nem
sempre se restringe à esposa ou companheira já que este tipo de ato “(...) se insere
no âmbito do domicílio e atinge não só a família, mas também empregados
domésticos e agregados (...)” (OLIVEIRA, 2005, p.85).
Portanto, o grupo passível de sofrer atos violentos extrapola os horizontes
genealógicos, abrangendo indivíduos que compartilham a mesma moradia,
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independente da relação de parentesco que possa existir e que, na análise de Nader
(2006), esta realidade envolve o paradoxo de que o ambiente doméstico, lugar que
melhor deveria proteger suas mulheres, do ponto de vista das relações de gênero,
envolvendo afetividade e segurança, é o que as trata pior.
A segunda, não se manifesta rigorosamente dentro dos limites do espaço
físico do domicílio. Qualquer questionamento aos ditames masculinos por parte da
mulher pode estender a territorialidade dessa ameaçada autoridade, além do espaço
privado, fazendo uso da força, seja na rua ou lugares públicos, como forma de
confirmação e legitimação do poder e da autoridade. As motivações da violência
intrafamiliar não objetivam necessariamente a agressão física do parceiro,
geralmente tem por finalidade manter o poder e o controle sobre a vítima.
A violência familiar ou intrafamiliar é caracterizada pelo “lócus” onde ela
ocorre. Independente de morarem no mesmo lugar, do sexo ou da idade, o
fundamental é que as categorias sócias inseridas no contexto violento sejam
ligadas por laços de parentesco, ressaltando que, na maioria dos casos, as
mulheres são as vítimas e os homens os principais agressores, não se
descartando a possibilidade da mulher ser agressora, o que ocorre
geralmente contra os mais jovens e idosos. (OLIVEIRA, 2005, p.85).
Este tipo de manifestação, caracterizada pelos laços de parentesco dos
envolvidos traz consigo o absurdo da cumplicidade social com este tipo de ato. Ao
existirem vinculações parentais o agressor pode manifestar sua violência, incluso em
via pública, confiante em que as testemunhais desse degradante espetáculo já
incorporaram e legitimaram o uso da violência como instrumento disciplinador ou
simplesmente como válvula de escape para inseguranças, frustrações e
incapacidades de buscar saídas dialogadas. No silêncio das retinas dos
espectadores ecoam os gritos que para muitos soam familiares.
O processo de consolidação da violência, como prática socialmente
legitimada percorre um caminho ambíguo e sinuoso, dificultando seu entendimento e
comprometendo potenciais saídas. À medida que suas proporções se ampliam de
forma ameaçadora, fragilizando vínculos e relações, ela adquire, proporcionalmente,
uma invisibilidade aos olhos da sociedade brasileira, encobrindo e silenciando
dramáticos gritos de alerta. Esta ausência de verbalização tem impedido muitas
vezes de dimensionar o verdadeiro drama da violência contra a mulher e os muros
construídos em torno do grupo familiar, embora materialmente fáceis de transpor,
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parecem estar, aos ouvidos alheios, simbolicamente revestidos contra as diferenças
de compasso na musicalidade íntima dos seus membros.
Denunciar práticas violentas é um ato que exige por si só um respaldo efetivo
das instituições para transformar silêncios em verbo.
Os silêncios que rodeiam o tema requerem atenção, por estarem cerceados
de conspiração, ignorância ou familiaridade, combinando múltiplos fatores e
facetas que encobrem o cotidiano velado dentro da vida familiar
(CAVALCANTI, 2006, p.254).
Estes silenciamentos abrem caminhos no sentido de ponderar sobre a real
dimensão da violência doméstica e intrafamiliar na sociedade brasileira. Ao se
enquadrar o foco em uma perspectiva de gênero, as proporções são ampliadas de
forma dramática e a linguagem nem sempre traduzível. Se por um lado esta
realidade oculta diversos fatores que estimulam sua perpetuidade, por outro
evidencia as estratégias e instrumentos utilizados para submeter mulheres à
obediência masculina, formando um conjunto de idéias e de comportamentos
destinados a normatizar todos os aspectos da vida da mulher, reforçando o caráter
unilateral da relação do poder.
Não obstante, em território nacional, ainda consta um problema que – apesar
dos avanços específicos também demonstram as fragilidades e os caminhos que
devem ser percorridos: a padronização para registrar situações de violência familiar
– mesmo após a implementação da Lei Maria da Penha - é fragmentada, o que
provoca prejuízo para uma rotina clara e eficaz. Tal fato acarreta sobremaneira e
gera deficiências nos procedimentos a serem seguidos pelos profissionais e
instituições.
Além disso, há carência de políticas públicas eficazes que viabilizem a
criação e, principalmente, a manutenção de programas preventivos e de
tratamento, necessários para promover o aprimoramento e evolução de
técnicas eficazes no enfrentamento dessa problemática. (BRITO et all,
2005, p. 145).
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA FAMÍLIA
(páginas 57-60)