• Nenhum resultado encontrado

Violência estrutural na perspectiva sociológica do conflito

CAPÍTULO 1 A gestão da violência no Brasil – tensões entre democracia,

1.2 Violência estrutural na perspectiva sociológica do conflito

Em uma das passagens de O Capital, Marx afirma que a “a violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova” (1985, p. 262). A violência anunciando a nova ordem, advinda da superação da dominação capitalista, seria o efeito da agudização das contradições de classe. Não suportando mais a opressão sistêmica, a radicalidade dos dominados poria abaixo a velha estrutura, movimento ao qual a classe burguesa não assistiria passivamente. A ação violenta aparece, então, como dado congênito e inevitável da luta de classes.

Conforme o paradigma marxista, a justificação do Estado moderno apela à ideologia para transformar o interesse da classe que exerce a dominação em ideal de todos os sujeitos sociais e políticos. Para tanto, reitera-se a unidade do poder estatal como homogênea e universal, entidade apartada das classes. Segundo Chaui (2014, p. 31-32):

Nesse contexto, é possível perceber qual o trabalho específico do discurso ideológico: realizar a lógica do poder fazendo com que as divisões e as diferenças apareçam como simples diversidade das condições de vida de cada um, e a multiplicidade das instituições, longe de ser percebida como pluralidade conflituosa, apareça como um conjunto de esferas identificadas umas às outras, harmoniosa e funcionalmente entrelaçadas, condição para que um poder unitário se exerça sobre a totalidade do social e apareça, portanto, dotado da aura da universalidade, que não teria se fosse obrigado a admitir realmente a divisão efetiva da sociedade em classes.

Sendo assim, a imagem da soberania coletiva consagrada na figura do Estado fora e acima das classes, coercitivo e consensual, é a representação moderna da autoridade, na qual “os oprimidos lutam contra a opressão imediatamente visível, mas não chegam a ter consciência das raízes dessa opressão, que se localiza em um ponto que permanece invisível para eles” (idem, p. 63).

O apagamento da realidade constituída pela luta de classes produz a “invisibilidade do inimigo mais distante (tão ou mais real que o inimigo próximo e visível), e permite a atitude ambígua dos dominados que lutam contra o opressor imediato, mas querem uma existência tal como a ideologia dominante promete para todos” (idem, p. 63). Escamotear o conflito, esconder a presença do particular, dissimular a dominação e moralizar as clivagens sociais, atribuindo-as a desvios individuais de “homens injustos” (o mau patrão, o mau trabalhador, o mau governante) é o modo como a ideologia traveste “as formas reais da desigualdade, dos conflitos, da exploração e da dominação como sendo, ao mesmo tempo, ‘naturais’ (universais e inevitáveis) e ‘justas’ (ponto de vista dos dominantes) ou “injustas” (ponto de vista dos dominados). (idem, p. 30).

A emergência de uma ordem legal autônoma foi a resposta estratégica ao problema da contenção do poder estatal na modernidade. Por um lado, pretendeu implicar sujeito e objeto da dominação nos mesmos procedimentos de decisão e resolução de conflitos, conforme uma racionalidade que expropria o dissenso do âmbito das partes para realocá-lo na esfera do Estado. Por outro, criou um sistema judiciário dotado de autonomia formal para aplicar a lei positiva. No entanto, a diferenciação entre política e legalidade produziu, segundo Weber (2004), uma contradição entre racionalidade formal e racionalidade substantiva, ou seja, os juristas têm autonomia de ação em uma esfera especializada e não política, a menos que abdiquem de interferir no conteúdo substantivo das leis.

A neutralidade da ordem legal como agência de representação de um consenso moral coletivo é redesignada, segundo a interpretação marxista,

como instrumento ideológico de dominação de classe. Para Paixão (1988, p. 180):

Menos do que um mecanismo de contenção do poder do Estado, a ordem legal significa a explicação, a nível ideológico e organizacional, dos interesses dominantes na estrutura de desigualdade da sociedade civil. Sua função é, portanto, no caso da lei penal e do sistema de justiça criminal, repressiva em relação a ‘populações- problema’, recalcitrantes, pela conversão a perspectivas criminosas ou pelo apego à vagabundagem sistemática [...]

Segundo o autor, o descompasso entre lei impessoal e sua aplicação profissional por pessoas concretas, com diferentes posições sociais na hierarquia social de renda, poder, estima e credibilidade, é um problema central para a compreensão da imposição da ordem nas sociedades democráticas.

Nessa linha, a utilização político-ideológica da violência se manifesta no realce da criminalidade urbana violenta, elevada à posição de grande tema nacional, obscurecendo o questionamento do “controle do aparato de repressão, os crimes de colarinho branco, as grandes negociatas, os acidentes provocados por falta de segurança no trabalho e a morte pela miséria” (Oliven, 2010, p. 12). Ademais, a reação da opinião pública, direcionada somente a certas formas de desvio, condiciona a resposta político-institucional, que rotula como criminosas apenas as infrações que os estratos desfavorecidos têm mais probabilidade de cometer, o que limita a denúncia dos crimes praticados por membros da classe que goza de prestígio social (Guerra; Emerique, 2017, p. 43).

Por outro lado, a interpretação dualista do conflito social – Foucault (1977, 1984, 1988, 2006), Althusser (1972), Butler (1997, 2005) e, mais recentemente, Das (1989, 2005) e Das et al. (1997) – pode também absorver um componente produtivo e reflexivo. Onde o marxismo vê uma relação de violência permanente que só pode ensejar a violência reativa dos oprimidos, essas leituras entendem a experiência da “sujeição” (no sentido de subjugação, subordinação, assujeitamento) como o processo através do qual a subjetivação – a emergência do sujeito – se ativa como contraposto da estrutura, como ação negadora” (Misse, 2010, p. 15). Segundo o autor, essa perspectiva, contudo, não parece bem assimilada pela sociologia convencional, que, a não ser por meio da noção de agência, relega o debate sobre o processo de subjetivação a

outros campos, como a psicologia, a psicanálise, a filosofia e os estudos culturais (idem, p. 16).

Em direção oposta à perspectiva emancipatória do processo de sujeição, o marco teórico da sociologia do conflito vai acentuar as relações de antagonismo e hegemonia presentes nos interesses demarcados pelo direito penal, entendido como uma arena essencialmente política, em que a criminalidade é uma realidade formatada pelos agentes com poder de influenciar os processos de criminalização. Segundo Guerra; Emerique (2017, p. 63):

As teorias conflituais, a partir de uma perspectiva macrossociológica, estudam a criminalidade e os processos de criminalização enquanto fenômenos intrínsecos do modo de produção capitalista, caracterizado por conflitos de interesse e poder entre os grupos sociais. Nesse sentido, surgem com o claro objetivo de polemizar os postulados do estrutural-funcionalismo dominante na sociologia liberal, que buscava compreender o sistema social sob a perspectiva da estabilidade e da conservação.

Permanece, então, a leitura marxista do conflito político como influência maior, direta ou indiretamente, de parte considerável do debate sobre violência e crime no Brasil. Ela está presente na crítica ao que Paixão (1988) chama de “disjunção entre teoria do crime e teoria do Estado”, que teve o efeito de despolitizar o estudo do crime e da punição, elegendo como nível preferencial de análise o estudo de microeventos e interações, distantes das preocupações de caráter estrutural e histórico da teoria política. Em sentido contrário, a crítica defende uma análise macrossociológica em que a ordem legal seja vista como representação da ordem social, e não como fenômeno separado. Ela se volta ao plano das estruturas, instituições e práticas da ação coletiva como objetos principais.