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4.2 O cotidiano violento da escola

4.2.2 A violência interpessoal entre os diferentes atores envolvidos no espaço escolar

Para tecer as primeiras considerações acerca da “violência interpessoal entre os diferentes atores envolvidos no espaço escolar”, como categoria analítica nesse estudo, invoca-se Spósito para quem “muito tardiamente a violência começa a ser objeto de preocupação na Pós Graduação” (SPÓSITO, 2001, p. 89) e Dalben (2014), para quem a violência interpessoal ocorre entre indivíduos, onde os mesmos podem atuar como vítimas e autores da própria violência, que pode se manifestar de diversas formas.

Para compreender a dinâmica das relações sociais na escola faz-se necessário observar como os alunos constroem seus vínculos, seja com seus pares, seja com aqueles que representam a instituição escola (ABRAMOVAY, 20046, p.84)

Percebe-se que a escola vem enfrentando profundas mudanças com o aumento das dificuldades cotidianas que provêm tanto de problemas de gestão e das próprias tensões internas, quanto da efetiva desorganização da ordem social que se expressa mediante fenômenos exteriores à escola, como exclusão social, dentre inúmeros conflitos, sendo a sala de aula um dos lugares dessas contradições, mas não o único. Para Spósito, “uma profunda crise da eficácia socializadora da educação escolar ocorre nesse processo de mutação da sociedade brasileira que oferece caminhos desiguais para a conquista de direitos no interior da experiência democrática” (Spósito, 2001, 99).

Surge, pois, uma indagação no sentido de se o espaço da escola, atualmente, seria representado como lugar seguro de socialização e integração social ou se, ao contrário disso, se tornou um local de violência? Para Spósito (2001) trata-se de um fenômeno bastante emergente, que merece, ainda, uma série de estudos, para avaliação de seu impacto. Ao realizar o trabalho de campo, nos encontros com os professores e professoras, foi possível escutar longa e cuidadosamente as falas dos professores e professoras, sua experiências, por

meio da narrativa de suas percepções, das quais se extrai a compreensão da precariedade das relações:

(...) Nós estamos no ensino fundamental, nós temos que trabalhar conceito, nós temos que trabalhar a formação do aluno para que possa alcançar melhores resultados no ensino médio consequentemente no futuro e não tomar como pressuposto que o professor é uma pessoa estranha inimiga para ele ou pouco amiga. Eu tenho um bom relacionamento com os alunos, mas eu sinto a cada ano que passa eu sinto uma dificuldade de comunicação entre os professores e os alunos (...). (E6- rede municipal)

A dificuldade de comunicação que a professora relata pode ser traduzida a partir de vários enfoques. Para Spósito (2001, p.100), a percepção das tensões existentes entre alunos ou entre estes e o mundo adulto tem afetado o clima nos estabelecimentos escolares. Logo, essa discussão parece apontar que a escola não reflete as ações do cotidiano, por um lado e, por outro lado, há uma falta de conexão entre atores sociais que aí atuam, afetando, por consequência, a linguagem, o que se ensina, as regras, dentre outros.

A discussão sobre a violência na escola, envolvendo professores, professoras e outros atores da escola, é muito atual e deve ter como objetivo principal promover a educação, a cidadania e a saúde. Para tanto, é fundamental que se ouça o professor, para que se pense a partir de sua percepção, do seu olhar. As falas evidenciam as pautas necessárias a esse estudo e como a escola vem perdendo espaço de educação para espaços de violências. Onde há ausência de espaço para a aprendizagem, abre-se espaço para a violência.

Ao lado dessas dificuldades, outra professora relatou, ao falar sobre sua vida na escola, viver a discriminação como professora por causa de sua cor. Ela diz:

(...) Depois eu vim descobrir que os pais não gostavam de mim. Eles queriam que outra professora fosse professora da filha deles, os pais eram preconceituosos por causa da cor. Ai eu falei cor não interfere em nada não. Porque sou negra. Mas o que vem do coração é a mesma coisa, foi o que eu falei com ela. Aí fui descobrir que a mãe fez a cabeça da filha por causa da minha cor. Aí eu trabalhei aquele livrinho, sou negra da linda cor. Aí conversei com os alunos a respeito de cor... Falei as raças que temos, né. E assim pra mim temos mistura de raças. Fui conversando. Depois você precisava ver que linda que foi a boneca que ela fez e a historinha como ela contou. E a mãe depois chegou ate mim e disse Denise desculpa, não foi com essa intenção. Eu disse você acabou prejudicando sua filha (...). (E1 – Rede Estadual)

Percebe-se na fala da professora a experiência e o reconhecimento da violência por meio do racismo que, segundo Dalben (2014), é uma ideologia baseada na superioridade de uma raça,

etnia ou grupo sobre o outro, objetivando de forma intencional diminuir o outro ou anular os direitos humanos das pessoas discriminadas. Em uma de suas formas mais cruéis, aparece na negação de sua existência, quando existe de fato e é indisfarçado. O não reconhecimento do direito da diferença acarreta atitudes de intolerância para aqueles que simplesmente se declaram negros.

Segundo Abramovay "não são recentes os estudos que questionam a igualdade racial indicando vulnerabilidade em vários campos, como educação e trabalho, que afetam o afrodescendente como projeto da UNESCO na década de 50” (2006, p.206). Por outro lado, Gomes apud Abramovay, afirma que “a escola pode ser um lugar de construção da identidade negra, podendo contribuir para sua valorização ou então para reforçar estigmas e práticas segregacionistas” (GOMES, 2006 p. 226).

A questão do preconceito racial é, pois, um dos exemplos de como a escola tanto pode ser espaço de opressão quanto de libertação, conforme a abordagem que se faça do tema em questão. Se a questão racial for tratada como forma de se discutir, se elaborar e se compartilhar uma identidade, a escola assumirá, nesse quesito, a prática da libertação de que fala Paulo Freire.

Ao contar suas experiências na entrevista, suas relações no espaço escolar, a fala do professor E11 traz novamente a questão do bullying. Ele diz:

(...) Olha tem, mas existe violência de bullying né, a gente tenta lidar com isso na hora que a gente percebe eu tô falando eu e os outros professores né, a gente lida com isso. Mas a violência física de agressão é muito rara, a gente, a gente briga jogando futebol e essas coisas sabe, mas não deixa de ser violência, mas é uma coisa momentânea não é aquela violência programada, né eu vou agredir o fulano fisicamente, cotidianamente mas assim, a violência simbólica tem sim... em todo lugar (...) (E11 – Rede Particular)

O bullying caracteriza-se como um problema mundial encontrado em todas as escolas, sejam elas privadas ou públicas, o que vem se expandindo nos últimos anos. A conduta bullying nas escolas tem sido um sério problema, pois gera um aumento significativo da propagação da violência entre alunos. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE(2010), Belo horizonte é a segunda cidade brasileira com maior incidência dessa prática, ficando atrás apenas de Brasília.

As agressões verbais contra os professores e professoras em sala de aula também são percebidas, na escola, a partir da fala do professor E5, que registra como alguns alunos entendem e manifestam as suas atitudes dentro da sala de aula. Ele diz:

(...) Por exemplo, se você chamar a atenção o menino manda você tomar naquele lugar, xinga sua mãe. É... são vários tipos de agressão nesse sentido. Você é isso, você é aquilo é... palavrões um atrás do outro. As vezes lança as coisas na gente. Você vira para o quadro para escrever e isso acontece (...) (E5-rede municipal).

Segundo Abramovay (2006), os docentes afirmam que, é na sala de aula onde, com maior probabilidade, se sofrem agressões verbais. De fato, paradoxalmente, a sala de aula, núcleo da dinâmica escolar, espaço privilegiado para as relações interpessoais, configura-se, também, como um cenário de agressão contra a autoridade do professor. Os alunos agridem os professores direta ou indiretamente. Abramovay afirma que “a falta de respeito, a indiferença à presença do professor e a desconsideração ao poder dos docentes na escola são pontos de tensão no relacionamento professor aluno” (2006. p.106).

Ao lado da discriminação, do bullying escolar, das agressões verbais, o professor E10 relata a experiência do preconceito racial, em seu processo de trabalho. Ele disse:

(...) Aqui já teve situação de preconceito, por exemplo, entre professores. A gente ia fazer um trabalho de música da oficina, e aí a ideia era a gente fazer uma apresentação sobre a história do samba, então a professora de música e canto, ia cantar as músicas que a gente selecionou o repertório junto com a coordenação, e eu ia cuidar da parte dos arranjos percussivos né, com os meninos, daí agente selecionou nessa lógica de contar a história do samba; selecionou umas cantigas que são de candomblé, que são assim tomadas como uma referência do samba também, rítmica, melódica, jeito de cantar. Então tinha uma cantiga de dialeto africano que cantiga de candomblé, e essa professora não ensaiou com os meninos (...) (E10-rede particular).

A recusa a ensaiar com os alunos uma cantiga de candomblé é percebida pelo professor como prática de preconceito que se irradia do professor para os/as alunos/as, em suas relações na escola, fazendo com que a violência se faça presente no trato de questões simples, como registra a professora E7:

(...) o que às vezes percebo é que o colega, às vezes, pega alguma coisa sem pedir, aí o outro reage, poderia ser né, só comentar, e achar ruim né, mas não, às vezes ele vai lá e dá um cocão, que gera uma briga ou então fala aqueles palavrões que o outro se sente ofendido e aí vai gerar uma discussão mais violenta ainda na própria sala de aula e a gente precisa estar intermediando(..). (E7 - Rede municipal)

A matriz para referida violência é percebida pela mesma professora, todavia, como algo que vem de fora para dentro da escola, ou seja, da sociedade para a escola "(...) às vezes as coisas vem de lá de fora (...)" (E7 - Rede municipal). E finalmente, a professora conclui sobre essa situação de violência em sala de aula:

(...) o que gera os problemas de violência na sala também às vezes são coisas que postam ou lêem na internet, e que às vezes um não gosta. E aí, traz tudo isso para a escola, e vão gerando esses conflitos. Aí começa com as palavras. Ah, porque você fez isso?, aí o outro começa a xingar, e daí marca a briga no pátio, ou briga na rua. É sempre assim (...) (E7- RM)

Nesta fala, percebe-se claramente como as relações no mundo virtual, e a maneira de se portar nele, se irradiam para o mundo real, a sala de aula, a escola. Essa é uma situação que pode ser abordada, inclusive, sob a dimensão da ausência de procedimentos específicos, de conduta, a serem adotados pelos usuários da internet.

Para Abramovay, (2006. p. 121) embora muitas vezes as agressões verbais sejam compreendidas como fatos menores, comportamentos típicos de adolescente, arroubos ou explosões momentâneas, elas têm impactos sobre o sentimento de violência experimentado por alunos e podem ser uma das portas de entrada da violência física. Para Spósito (2001), a partir dos anos 90, a violência escolar passa a ser observada nas interações dos grupos de alunos, caracterizando um tipo de sociabilidade entre pares ou jovens com o mundo adulto.

O/A professor/ a ao contar a sua vivência dentro da escola, menciona situações em que o/a aluno/a é vítima, também, da violência. Ele diz:

(...) tinha uma galera lá que estava direto participando na coordenação comigo, porque assim não respeitava o outro, tinha que suspender o menino da aula. (...) (E10 - Rede particular)

Ao falar do trabalho com o nono ano, a professora E7 narra outra situação em que o aluno é vítima de violência, sendo essa uma situação ainda mais grave, porque decorrente do cruzamento com a questão das drogas na escola. Ela diz:

(...) O nono ano, eles já têm uma certa maturidade, que as vezes é mais triste em relação as drogas. Eles, vamos dizer assim, já estão envolvidos, ou estão pelo menos mais atentos, maduros, ao que está acontecendo ao redor. Então quando um colega morre por causa de violência, eles, vamos dizer, se envolvem mais com a violência. Isso traz também pra gente na sala de aula. Eu vejo que há um sofrimento maior por parte deles nessa questão e pra gente, porque a gente acaba pegando o que eles sofrem(... )(E7 - Rede municipal)

É importante considerar, pois, quando se fala de violência e drogas nas escolas, como lembra Abramoway, que tem certos estabelecimentos em que o tráfico está infiltrado entre os próprios alunos, os quais identificam colegas ou pessoas que se passam por alunos, mas, na verdade, são traficantes (2006).

No mesmo sentido, como aponta Medeiros (2006), uma série de reportagens apresentada nas principais revistas e jornais brasileiros aponta as escolas, sobretudo as da rede pública municipal ou estadual, localizadas em bairros periféricos, ou não como pontos privilegiados para o tráfico de drogas e constantes atos de violências contra professores alunos e prédios, o que reforça a percepção de que há nas escolas uma opressão e violência vinculadas ao uso e tráfico de drogas.

Perguntada como faz para lidar com essa situação, a professora disse:

(...) quando eu fico sabendo que um aluno faleceu, eu não tento levar para fora, eu fico procurando ler e distrair naturalmente chegando a um ponto a conversa com os próprios colegas para tentar solucionar ou pelo menos dividir a angústia que a maioria sente. E hoje ainda é assim, a gente quando pega um caso triste ou algo que vai abalar a gente, a gente divide entre nós, entre nós mesmos. Isso ajuda muito, esse diálogo, essa experiência, essa troca, ou as vezes, chega pra nós: ah, fulano que foi seu aluno, morreu de overdose, ou são mortes violentas mesmo, de outra forma, então, a gente divide.(...) (E7 - Rede municipal)

Essa manifestação da professora E7 está carregada da dimensão da partilha – “dividir a angústia” – no ambiente escolar, dos problemas que chegam à escola, envolvendo o tráfico, e do seu enfrentamento. Uma situação que se qualifica, na fala da professora, pelo diálogo e pela troca. Logo, há aí, diversamente da opressão, um domínio da libertação freireana.

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