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A introdução da categoria gênero foi fundamental para as relações de violência no espaço familiar serem percebidas, uma vez que possibilitou compreender os papéis socialmente pré-definidos para homens e mulheres como perpetradores de relações hierárquicas desiguais. Dessa forma, a violência contra a mulher pode ser observada por meio do poder exercido sobre ela, bem como pela legitimação histórica da dominação masculina sobre o outro gênero(39,40).

Houve aumento importante dos estudos sobre a violência contra a mulher, perpetrada por seus parceiros íntimos. Esse aumento se deu por conta do reconhecimento da dimensão do fenômeno, por sua alta prevalência e consequências à saúde física e psicológica das vítimas. Entretanto, grande parte das vezes as pesquisas que tratam sobre a temática da violência contra a mulher abarcam questões relacionadas ao tipo de agressão sofrida (física, psicológica e (ou) sexual) e, outras vezes, sobre as consequências físicas e psicológicas advindas da situação de violência.

No mundo, um em cada cinco dias de absenteísmo no trabalho feminino decorre da violência doméstica. Nos EUA, um terço das internações de mulheres em unidades de emergência é consequência de agressões sofridas em casa. Na América Latina, a violência doméstica incide sobre 25% a 50% das mulheres, ao passo que no Brasil 23% das mulheres estão sujeitas à violência doméstica, estimando-se que a cada quatro minutos uma mulher sofre agressão, e, em 85,5% dos casos de

violência física contra mulheres, os agressores são seus parceiros(41). Estudos(42-44) têm demonstrado que a violência por parceiro íntimo está ligada à aceitação da violência e de normas hierárquicas de gênero, como o “direito” masculino ao controle sobre bens e comportamentos femininos.

Levando-se em consideração que a violência contra a mulher é alarmante, elencando-a como um problema de saúde pública, acredita-se que a violência é um fenômeno conjugal, ou seja, não há vítimas e perpetradores. Contudo, a temática da violência, principalmente a conjugal, ainda conta com pouca participação masculina, como sujeitos de pesquisa, e com raras análises que consideram os aspectos relacionais desse fenômeno, ainda que alguns autores concordem com a necessidade dessas análises relacionais para uma melhor compreensão da conjugalidade violenta(25,45-47). É necessário reconhecer que:

“[...] a dimensão relacional do gênero possibilita

desconstruir principalmente os argumentos

culpabilizantes em relação ao masculino, que demarcam o discurso de parte do movimento feminista e que ainda se faz presente, direta ou

indiretamente, nas produções acadêmicas

contemporâneas”(25).

Porém, as taxas de violência doméstica oficiais contra as mulheres são maiores que as dos homens, mesmo considerando que a subnotificação ocorre para os dois casos, tanto pela falta de assistência do governo, em oferecer serviços eficientes, quanto por questões relacionadas à vergonha feminina, à humilhação e ao medo, bem como à honra masculina. Contudo, estatísticas reduzidas não são uma boa justificativa para se negar a necessidade de estudos que considerem os homens também como agredidos, ainda que geralmente figurem como os principais agressores(48,49).

Precisa-se compreender que a VPI inclui, além da violência perpetrada por homens contra mulheres, aquelas cometidas por mulheres contra homens, entre homens e nas relações entre mulheres. Para Assis et al.(26) as relações violência/gênero, que são atravessadas por questões de classe social, raça/etnia e de filiação a grupos, podem fazer com que homens e mulheres se envolvam em situações de violência, como vítimas ou como perpetradores, com o objetivo de afirmarem identidades masculinas e femininas socialmente construídas.

Vêm se destacando articulações entre masculinidade e violência a ponto de a segunda expressão ser entendida como pertencente à

primeira, de um modo quase que naturalizado. Assim, o fato de homens expressarem formas de violência poderia ser visto como um pleonasmo do exercício da masculinidade. No senso comum persistem atitudes que desculpam ou licenciam comportamentos violentos masculinos, bem como atitudes que cobram certo grau de violência nas condutas masculinas, para que os atores recebam o atestado de ser homem. Nesse cenário de associação entre o ser masculino e o ser violento, as relações de gênero podem ser construídas e reproduzidas embasadas em uma lógica de que a violência seria a referência para se diferenciar o homem da mulher(50).

Apesar de estudos encontrarem uma forte associação entre masculinidade e violência, não se deve fixar o estereótipo de que ser homem é ser violento. O fenômeno da violência não é inerente ao homem, mas foi construído socialmente e percebido, de modo natural, como elemento constituinte da identidade masculina(26,51).

Aceitar a violência por parceiro íntimo e considerar as mulheres como inferiores, papéis de gênero restritivos e os valores patriarcais dominantes são atitudes que podem perpetuar a ocorrência de violência e transferí-la através das gerações, por processos de aprendizagem, por meios de comunicação, escolas, e pela vivência em situações de violência em diferentes fases da vida(52).

Quando se aborda a violência doméstica entre membros da família, pode-se falar da violência intergeracional, ou seja, a reprodução de comportamentos violentos ao longo de gerações. Por exemplo: homens que violentam suas companheiras sofrem violência desde a infância, presenciando a agressão entre os pais e, até mesmo, sofrendo violência física(39). Para Gupta et al.(53) homens que testemunharam violência entre os pais apresentavam quatro vezes mais chance de agredir a parceira, provavelmente por considerarem esse comportamento normal. Abrahams et al.(54) afirmam que testemunhar violência foi mais importante que ter sofrido violência, provavelmente porque pela observação a criança aprende que a violência é a tática adequada para resolver conflitos conjugais e lutar por sua posição na casa.

Em estudo conduzido com homens, para analisar a violência conjugal, Alves e Diniz(55) concluíram que os participantes apoiaram-se no processo de socialização do homem e da mulher para definirem a função de marido e esposa. Basearam-se ainda em uma perspectiva assimétrica e hierarquizada, em que os referenciais de masculinidade e a inadequação da mulher, ao seu papel social, são utilizados como explicação para o uso da violência na relação conjugal.

As mulheres estão presas às formas de submissão. Por outro lado, é igualmente válido dizer que os homens se encontram enclausurados nas formas de dominação. Dominação e submissão são noções eminentemente relacionais, de homens para com outros homens, de mulheres para com outras mulheres, e de homens para com as mulheres(40). Para Ferreira(56) a violência conjugal se manifesta em quatro modalidades: o homem que agride a mulher; a mulher que violenta o marido; os cônjuges que se agridem mutuamente; os casais que, embora não sendo agressivos, cometem atos violentos quando não há mais consenso e comunicação entre os envolvidos.

Para Johnson(57-59) as formas de violência por parceiro íntimo não são as mesmas para todos os casais. É possível observar dois diferentes padrões. O primeiro se trata de uma forma mais grave e crescente de violência, caracterizada por diversas formas de abuso, terror e ameaças, e um comportamento cada vez mais possessivo e controlador por parte de quem pratica o abuso. O segundo se caracteriza por ser uma forma mais moderada de violência no relacionamento, em que a frustração constante e a raiva, ocasionalmente, irrompem em agressão física. No entanto, há poucos indícios de que as mulheres sujeitem os homens ao mesmo tipo de violência grave e crescente, como é visto frequentemente em exemplos clínicos de mulheres vítimas de agressões constantes.

A ocorrência de violência no relacionamento com o parceiro também produz sofrimento para os homens. Todavia, a agressão contra o homem é desencadeada após algum ato de violência cometido por ele contra a companheira, e nessas situações os homens são agredidos com menor crueldade e gravidade do que as mulheres são atingidas por eles. Além disso, mesmo que alguns homens possam ser humilhados, desqualificados e agredidos física e verbalmente por mulheres, é difícil imaginá-los permanentemente aterrorizados ou devastados em sua autoestima(1,55,60).

Frente a esse cenário, a VPI coloca-se como um fenômeno para além da violência em si, como algo que transcende o que se chama de “vítima” e de “agressor”; passa a englobar as situações vividas pelos envolvidos, e incorporadas como a única forma de resolver os conflitos. A VPI passa a ser uma dinâmica adotada pelo casal, e que, se não é rompida, torna-se cíclica e crônica.

Como a violência por parceiro íntimo envolve situações para além do ato em si – como a cultura e a forma como os conflitos são resolvidos em cada local –, a prevalência para esse fenômeno é distinta tanto em magnitude quanto nas características que envolvem cada um de seus tipos. Para tanto, no item a seguir aborda-se a epidemiologia da VPI.

3.2 EPIDEMIOLOGIA DA VIOLÊNCIA POR PARCEIRO ÍNTIMO

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