• Nenhum resultado encontrado

Violência: um conceito dinâmico e polissêmico

CAPÍTULO I Sets urbanos

1.2. Violência: um conceito dinâmico e polissêmico

70 Ver: BERNARDO, A. “Para além das imagens: uma análise das narrativas de estupro no telejornalismo policial brasileiro”. Comunicação apresentada no Seminário Fazendo Gênero 6. Florianópolis, 10 a 13 de agosto de 2004.

Mas, se as narrações sobre violência apontam decisivamente para um espectro mais amplo e complexo de problematizações sobre o social, é certo também que o próprio conceito de violência não é tranqüilo. A palavra por si só quando empregada é geradora de uma série de imagens que imediatamente vem à tona e parece sugerir exatamente ao que se está referindo quando utilizada. No entanto, no momento de precisá-la conceitualmente, as direções são muitas e remetem a ambientes teóricos diversos. Concordo com Rifiotis71 de que violência é uma “palavra singular”.

É possível também reconhecer com Rifiotis, que o seu campo semântico está em constante expansão. Atualmente, a palavra abriga práticas culturais que sequer eram consideradas e tidas como violentas há bem pouco tempo na história da cultura ocidental como, por exemplo, determinadas práticas pedagógicas usadas como corretivos na educação de crianças, tanto no ambiente escolar como familiar, assim como aquelas resultantes das relações de gênero, hoje caracterizadas como violência doméstica ou violência contra a mulher, homofobia entre outras.

Mas, se o conceito é dinâmico e polissêmico - abordado a partir de diferentes óticas de análise como as explicações biológicas, psicológicas, sociológicas, antropológicas, políticas, entre outras -, múltiplo e farto de significados e de formas de expressão, é possível, por outro lado, derivar-se algumas acepções que marcaram a sua trajetória. Tomo de empréstimo, em um primeiro momento, o quadro de análise proposto por Rifiotis, que identifica a violência como sendo uma “palavra ícone da modernidade em crise”, ao fazer referência aos grandes pensadores do século XIX que compartilhavam a crença que o século seguinte seria marcado pelo ideário da razão e do progresso. Segundo ele, os discursos que se identificavam com a modernidade entendiam a violência como um resquício e vestígio do passado, ou ainda, como a própria negação da sociabilidade.

Esses discursos, de acordo com Rifiotis, sugerem um questionamento maior sobre uma determinada visão de mundo que se instalou historicamente, dominada pelo encantamento com a racionalidade em um ambiente onde novos processos de significação da vida social eram produzidos. A inclusão, no debate contemporâneo, sobre a violência dos processos de subjetivação e da dimensão simbólica dos comportamentos sociais conduziu à complexificação do conceito, de modo a romper

71 RIFIOTIS, T. “‘Violência policial’ na imprensa de São Paulo. O leitor-modelo no caso da Polícia Militar na Favela Naval (Diadema)”. Revista São Paulo em Perspectiva da Fundação Seade, São Paulo, 13, (4): 28-41, outubro-dezembro 1999.

com visões reducionistas, simplistas e negativas e que não consideram a dimensão não- racional do comportamento humano.

Entendendo que “o campo de estudos da violência é um território estratégico para os discursos da contemporaneidade”, Rifiotis propõe que se transcenda os discursos que percebem a violência em seus aspectos denunciativo e destrutivo, “como uma parte estangeira da vida social, uma ameaça ao consenso, um arcaísmo social a ser eliminado”. Corroborando também com essa perspectiva de análise, e entendendo os sinais de violência como elementos irrigadores do social, Glória Diógenes afirma que:

A crença recorrente é que a violência é um fato imprevisível, que ataca de surpresa e muda a (pretensamente estável) rota de acontecimentos. Esse imaginário de uma violência exterior, ao que se projeta como sendo a essência da vida social, pontua, de modo geral, o imaginário das produções que gravitam no campo da violência. Essa visão, que vamos denominar de “violência de fora”, tem se alicerçado na crença que a ordem e o equilíbrio são estados a serem atingidos em sua plenitude, sendo muitas vezes dificultados por práticas incontidas de violência72.

A autora, ao empregar em seu estudo sobre violência e juventude na periferia das grandes cidades brasileiras as reflexões de Rifiotis e de Maffesoli - que também analisa a violência em seu aspecto “construtivo”, “positivando” os sinais de violência, e assinalando sua função estruturante dentro da sociedade - indaga ao final de suas conclusões se o universo movediço, não totalizador e ambíguo das práticas e dos modos de expressão das gangues não seriam justamente sinais de dissidência da sociedade moderna do trabalho ou, ainda, “signos da pós-modernidade”.

Para Zaluar o debate público sobre a violência e a criminalidade gerou uma “perigosa divisão” que, segundo ela, põe em risco a frágil democracia brasileira:

De um lado estão os libertários que, a partir da afirmação de que a sociedade é que é criminosa – na medida em que, por ser desigual e iníqua, sustenta uma ordem que contém, controla e limita desejos e paixões individuais -, acabam por atacar qualquer ordem social, especialmente quando parte do Estado. Viva a desordem, eis o seu lema. No outro extremo estão os que em virtude do medo e da indignação ante os horrores praticados pelos insubordinados bandidos de hoje, pensam que a ordem deve ser mantida a qualquer preço, sem considerar as perdas da liberdade individual. Viva a ordem, entregue-se tudo a Leviatã: eis o seu atual desejo. A manutenção do atual dilema pode nos levar ou ao caos e à extensão do estado de guerra a todos, ou então ao recrudescimento da ordem autoritária73.

72 DIÓGENES, G. Cartografias da cultura e da violência: gangues, galeras e o movimento hip hop. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e do Desporto, 1998. p. 77.

O que é possível verificar é que os quadros de análise sobre a problemática da violência estão longe de se esgotar na medida em que evocam experiências, contextos e modalidades de expressão as mais diversas. Se por um lado muitas dessas práticas podem ser percebidas em seu aspecto transgressor e subversivo, potencializadoras de novos modos de experimentação social e sinalizadoras da vitalidade social, por outro lado, muitas práticas tidas como violentas são sinalizadoras do movimento contrário, por investir em procedimentos e ideários que visam justamente inibir mudanças e preservar determinadas configurações estáveis de poder.

Observo que os discursos produzidos em torno da violência e que justificam a instalação das câmeras de vigilância inscrevem-se nesse amplo contexto, ao articulá-las a um conjunto mais amplo e complexo de dispositivos e de tecnologias que emergiram historicamente visando o controle e a monitoração social e por onde se mutiplica o olhar vigilante, criando um estado de prevenção e vigilância permanente na cidade.

Documentos relacionados