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Virtude epistêmica e pragmatismo

No documento Justificação epistêmica e normatividade (páginas 96-99)

3.3 Normas epistêmicas e contexto prático e social

3.3.1 Virtude epistêmica e pragmatismo

Algo diferente é que o que subjaz ao programa apresentado por Jason Stanley e John Hawthorne, que vem sendo descrito pelo fenômeno de infiltração pragmática (pragmatic encroachment) – a expressão é de Kvanwig – segundo o qual, em linhas gerais, o que torna uma crença verdadeira um caso de conhecimento é parcialmente determinado por fatos do domínio da racionalidade prática. Ou seja, diferentemente do pragmatismo tradicional, segundo o qual razões epistêmicas são redutíveis às razões práticas, para essa versão de pragmatismo, que

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É caso de Henry que num passeio de carro pelo campo com seu filho lhe aponta um celeiro, sem saber que administrador da fazenda, para fazê-la parecer mais próspera, colocou várias fachadas de celeiros falsos, de papel, no local. Mas Henry não viu nenhum destes celeiros falsos, apenas celeiros de verdade. Podemos atribuir-lhe conhecimento que, embora virtuoso, foi acidental.

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na falta de termo melhor chamarei de pragmatismo constitutivo, os estados epistêmicos seriam infiltrados, constitutivamente, por fatores práticos. E isto significaria dizer que o que eleva uma crença verdadeira ao status de conhecimento não seriam razões puramente epistêmicas, como alega a tradição e que, portanto, a distinção que usualmente fazemos entre racionalidade prática e teórica ou conceitual é menos clara do que imaginamos.141

Na concepção de Stanley, assumida pelos demais interlocutores do programa pragmatista constitutivo, como Jeremy Fantl e Matthew McGrath, a ortodoxia, ao defender a primazia do que eles chamam razões puramente epistêmicas em relação a racionalidade prática, estaria comprometida com um tipo de “intelectualismo” (Stanley) ou “purismo” (Fantl e MacGrath), nos moldes do racionalismo cartesiano, segundo o qual a crença verdadeira de S que p ser conhecimento ou não dependerá exclusivamente de fatores conducentes à verdade, como a evidência de S que p e se a crença de S que p foi confiavelmente formada. Já a posição que eles defendem, classificada, às vezes de “praticalismo”, outras de

“anti-intelectualismo”, seria a visão de acordo com a qual certos fatores não

conducentes a verdade, em particular o fato da crença verdadeira de S em p ser responsiva aos custos práticos de estar errada, são determinantes para o conhecimento.

No terreno técnico da epistemologia, a tese da infiltração pragmática é, sobretudo, uma tentativa de resposta ao conhecido problema da suficiência, introduzido com o histórico exemplo do armador de Clifford, que já vimos anteriormente, refinado posteriormente nos casos sobre bancos, elaborados inicialmente por Keith DeRose, no âmbito das teorias do conhecimento contextualistas. São exemplos

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Cf. PRITCHARD, D. Review of Jason Stanley, Knowledge and Practical Interests, by Stanley, J., disponível em

mostrando que evidências que podem parecer “suficientes” ou “boas o suficiente” em

circunstancias normais deixam de sê-las quando algo significativo do ponto de vista prático está em jogo.142

Embora tenham surgido para comprovar o contextualismo, segundo os anti- intelectualistas, esses exemplos revelam não que o conhecimento é sensível ao contexto do atribuidor, como pensaram seus formuladores, mas que ele é sensível ao contexto do agente (Hawthorne) ou aos interesses práticos do agente (Stanley), sendo, neste último sentido, exemplos não contextualistas, pois os padrões epistêmicos no contexto conversacional do atribuidor do conhecimento permaneceriam invariáveis. Assim, conforme o Invariantismo Interesse-Relativo (Interest-Relative Invariantism) de Stanley:

“contextualismo é uma tese linguística sobre a sensibilidade contextual do vocabulário epistêmico”, enquanto que sua proposta seria uma “tese metafísica sobre fatos epistêmicos, suas propriedades e relações”.143

Contra a estratégia da tradição de separar racionalidade epistêmica de racionalidade prática, os anti-intelectualistas sustentam que há do ponto de vista constitutivo conexões entre conhecimento e raciocínio prático, que resultariam num principio universal de suficiência, segundo o qual o sujeito somente poderia conhecer uma proposição quando estivesse numa posição boa o suficiente para poder confiar nela no seu raciocínio prático.

Embora não revelem muito sobre a natureza dos dados práticos que suas teorias pretendem acomodar, não resta dúvida que, ao estabelecerem o princípio - Se S sabe que p, então p é apto a figurar no seu raciocínio prático - ou conforme o

imperativo um tanto dúbio de Stanley, “devemos atuar apenas naquilo que

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No exemplo de Clifford, o armador toma seu navio velho e sem manutenção como sendo seguro para navegar em alto mar, com base no que lhe parece ser boa evidência indutiva (o navio nunca afundou) que, no entanto, revela-se não ser “boa o suficiente” diante do custo dramático (perda de vidas humanas) de ela estar errada.

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sabemos”, os proponentes da infiltração pragmática pretendem oferecer uma teoria

que conecte conceitualmente conhecimento e interesse prático, com o conhecimento sendo uma espécie de função da própria ação. A dubiedade consiste na dificuldade de definir prima facie se ter conhecimento é condição necessária da ação racional ou se agir racionalmente é condição necessária para o conhecimento.

Numa tentativa, a meu ver, elucidativa de responder ao anti-intelectualismo assumido pela posição pragmatista constitutiva, Pascal Engel observa que a afirmação de que para agir bem precisamos conhecer não representa qualquer constrangimento para o intelectualismo. Porém reconhecer que o conhecimento é praticamente relevante é diferente de afirmar que ele é valioso porque é praticamente relevante e mais ainda que ele depende, de alguma maneira, da racionalidade prática das nossas ações. Para Engel, não há dúvida que algo como a infiltração pragmática, de fato, ocorre, mas a sua relevância epistêmica restringe-se ao contexto da investigação, da atitude do agente doxástico, onde o que está em jogo praticamente afeta sua disposição para crer, descrer ou suspender o juízo, ou quando uma evidência é boa o suficiente ou um processo é suficientemente confiável para que uma crença possa figurar como conhecimento.144

No documento Justificação epistêmica e normatividade (páginas 96-99)