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Esta mudança nas novas concepções sobre os sujeitos surdos ocorrida nos últimos tempos, cada vez mais se aproxima de uma ótica antropológica, que busca estudar a língua desta comunidade, e compreender a identidade do indivíduo surdo e sua cultura.

Adotar esta concepção é uma espécie de reviravolta dos conceitos e paradigmas que absorvemos com o passar do tempo. A própria mudança da terminologia: Surdo e não Deficiente Auditivo nos reporta a esta visão sócio- antropológica que vê a pessoa com surdez como diferente e não como deficiente. SACKS18(1998, p.16), compartilha conosco um pouco de sua experiência quanto a isto:

17 Revista da FENEIS (Federação Nacional de educação e Integração de Surdos) on-line

http://www.feneis.org.br/page/artigos_detalhe.asp?categ=0&cod=41 Acesso em 01.04.09.

18 Oliver Sacks é um professor inglês de neurologia clinica no Albert Einstein College of

Medicina (Nova York) e autor do livro Vendo Vozes – Uma viagem ao mundo dos surdos (livro que contribuiu muito para a efetivação da visão antropológica da surdez).

32 Eu encarava os poucos pacientes surdos sob meus cuidados em termos puramente médicos-como “ouvidos doentes” ou “otologicamente prejudicados”. Depois [...] comecei a vê-los sob uma luz diferente, especialmente quando avistava três ou quatro deles fazendo sinais, cheios de uma vivacidade, uma animação que eu não conseguia perceber antes. Só então comecei a pensar neles não como surdos, mas como Surdos, como membros de uma comunidade lingüística diferente.

O autor, neste relato, ressalta a importância de perceber a pessoa com surdez enquanto um sujeito com identidade lingüística e cultural. E para destacar esta visão, ele utiliza a letra “s” maiúscula no termo Surdo. Enquanto o mesmo termo escrito, todo em minúsculo, é utilizado de forma mais ampla, abrangendo as 278 milhões pessoas do mundo com deficiência auditiva moderada a profunda19 que, não necessariamente, compartilham de uma identidade surda e utiliza a língua de sinais.

Contudo, esta concepção de surdez não vem negar os dados clínicos. Sua contraposição é em relação à concepção clínica normalizadora que defende a idéia ilusória ouvintista de transformar um surdo em ouvinte. Quanto a isto, SKLIAR (2005, p. 10-11) um dos maiores representantes da visão sócio- antropológica da surdez no Brasil, pondera:

Ainda que o modelo antropológico descreva a surdez em termos contrários às noções de patologia e de deficiência, não esclarece o fato de que a surdez está efetivamente incorporada dentro do discurso da deficiência - o que não constitui uma afirmação, mas sim, uma constatação. [...] a surdez constitui uma diferença a ser politicamente reconhecida; a surdez é uma experiência visual; a surdez é uma identidade múltipla ou multifacetada e, finalmente, a surdez está localizada dentro do discurso sobre a deficiência.”

Mediante a isto, podemos afirmar que refletir sobre a pessoa com surdez, através desta perspectiva antropológica, é encará-lo de forma mais realista. É notório o desejo, por parte dos surdos, de ser compreendido com base na realidade, e não visto de forma estereotipada.

19 Dados de 2005 da OMS (Organização Mundial de Saúde).

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2009000400020 Acesso em 02/11/2010.

33 Esta forma realista a que nos refirimos, parte de uma concepção de alteridade, de perceber o Surdo, simplesmente, como diferente. Tendo a consciência que devemos lutar pela igualdade, sempre que a diferença nos inferioriza, mas devemos lutar pela diferença, sempre que a igualdade nos descaracteriza (SANTOS,2002,p.75).Compartilhando desta mesma concepção, temos alguns exemplos interessantes citados por Salles (2004, p.38):

Quebrar o paradigma da deficiência é enxergar as restrições de ambos: surdos e ouvintes. Por exemplo, enquanto um surdo não conversa no escuro, o ouvinte não conversa debaixo d`água; em local barulhento, o ouvinte não consegue se comunicar, a menos, que grite e nesses caso, o surdo se comunica sem problemas. Além disso, o ouvinte não consegue comer e falar ao mesmo tempo, educadamente e sem engasgar, enquanto o surdo não sofre desta restrição.

Em resumo, esta nova visão política em relação à surdez é construída histórica e socialmente e reflete o discurso que, havendo uma língua, com certeza existe uma cultura e conseqüentemente, se há uma cultura, existe uma comunidade ou povo que compartilham de uma identidade em comum.

1.2.3- O Povo Surdo

O termo, povo surdo, não parte do objetivo de segregar as pessoas com surdez ou ir de encontro com a inclusão, como esclarece Strobel (2007, p:33):

Mas isto não quer dizer que o povo surdo se isola da comunidade ouvinte, o que estamos explicando é que os sujeitos surdos, quando se identificam com a comunidade surda, estão mais motivados a valorizar a sua condição cultural e, assim, passam a respirar com mais orgulho e autoconfiantes na sua construção de identidade e ingressam em uma relação intercultural, iniciando uma caminhada sendo respeitado como sujeito “diferente” e não como deficiente.

Ao ver os surdos como eles são, dentro do contexto sócio-histórico, estamos reconhecendo-os como integrantes de um povo sem demarcação

34 geográfica, porém, com qualidades em comum que os caracterizam. Strobel (2007, p.8), define povo surdo como um grupo de:

Sujeitos surdos que não habitam no mesmo local, mas que estão ligados por uma origem, por um código ético de formação visual, independente do grau de evolução lingüística, tais como a língua de sinais, a cultura surda e quaisquer outros laços.

De forma empírica, pudemos constatar esta realidade ao participar de alguns congressos internacionais, onde as fronteiras entre surdos da Coréia, Canadá, E.U.A, Venezuela, Argentina e Brasil eram inexistentes. Mesmo com línguas de sinais diferentes,20 pareciam que se conheciam há muito tempo, pois as semelhanças de costumes e o compartilhar de lutas, rapidamente afloram na identificação com o outro.

Porém, vale ressaltar que o povo surdo é formado por comunidades surdas que possuem suas peculiaridades. Quando o termo comunidade surda é utilizado, refere-se aos surdos que vivem numa dada área, sob o mesmo governo, compartilhando de uma mesma realidade, como por exemplo, a comunidade surda pessoense, a comunidade paraibana e a comunidade surda brasileira. Cada uma destas possui vivências compartilhadas por seus integrantes que são originadas e desenvolvidas nas associações de surdos, nas escolas, nas igrejas dentre outros.

Dessa forma, é de fundamental importância entender que utilizar o termo povo surdo não é homogeneizar e generalizar seus costumes e vivências. Afinal,, quando nos referimos a uma pessoa surda precisamos levar em consideração sua cultura e sua identidade multifacetada, ou seja, uma identidade com recortes de raça, gênero, idade, escolaridade, religião, naturalidade, nacionalidade, dentre ouros. E ainda, considerar o fato de que ao falar da identidade deste povo, estamos falando de uma identidade heterogênea, como abordaremos a seguir.

20 A língua de sinais não é universal, como muitas pessoas pensam. Cada país possui no

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