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Uma Visão sobre a Escola Ideal

2. ESCOLARIZAÇÃO DOS SURDOS: EVOLUÇÃO HISTÓRICO-CULTURAL E AS

2.4 Uma Visão sobre a Escola Ideal

Quando se fala em educação, faz-se necessário verificar qual o tipo de demanda que se quer atender, ou seja, qual é o publico alvo. Isto é imprescindível para que se possam desenvolver estratégias pedagógicas e administrativas necessárias ao atendimento educacional de um determinado grupo. Por este motivo, é de extrema importância caracterizar este grupo e trazer algumas definições. O Decreto 5626, em seu Art. 2º, define pessoa surda como: “Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras” (BRASIL, 2005, p. 1).

Sabiamente, este Decreto diferencia surdez de deficiência auditiva, esclarecendo em seu parágrafo único que:“Considera-se deficiência auditiva a

perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500 Hz, 1.000 Hz, 2.000 Hz e 3.000 Hz” (BRASIL, 2005, p. 1).

Como se vê, a deficiência auditiva não-congênita é uma situação que acomete pessoas por inúmeros motivos (sendo o envelhecimento o mais comum deles). No entanto, não traz maiores decorrências ou implicações na área educacional, psíquica ou cognitiva. Já a surdez é uma característica definidora para os surdos congênitos, principalmente, dado o fato de que altera completamente o olhar epistemológico, sua experiência de vida e sua leitura do mundo. Assim, este trabalho refere-se à educação para os surdos e não se refere aos deficientes auditivos.

Ademais, é importante trazer uma visão de uma pessoa surda sobre o que é ser surdo. Diz a doutora surda Perlin (2003):

O estar sendo surdo entre nós é considerado um estar na experiência surda, componente ativo que se agencia nas dinâmicas de poder constitutivas do povo surdo. É uma experiência na convivência do ser na diferença, no espaço de uma cultura, de um povo. [...] A experiência supõe uma transformação e não uma estatização em vista do ser. Ela concebe a produção do sujeito, as articulações da diferença, a constituição da alteridade e da identidade. Sendo experiência propõe o deslocamento contínuo do estar sendo surdo. Como movimento, hospeda as projeções do estar sendo e do devir (p. 91-101).

Não faz muito tempo, surgiram no Brasil pesquisas estudando que tipo de escola caberia melhor para este grupo minoritário. Nos âmbitos acadêmicos, estudos sobre esta questão também foram realizados sob os auspícios dos Estudos Surdos, porque estes abordam as problemáticas socioculturais que envolvem as pessoas surdas (não apenas a escola). Consideram que os surdos, pelo uso de uma língua própria, pela criação de regras de convivência, de estratégias cognitivas, de manifestações culturais que lhes são próprias, dentre outros aspectos, configuram e desenvolvem uma cultura diferenciada: a cultura surda. Cabe, então, uma pergunta: Qual tipo de escola é mais adequado para este tipo de pessoa ou grupo?

Um estudioso ou mesmo um leigo, logo responderia que deveria ser uma escola que atendesse às necessidades culturais deste grupo minoritário. Uma escola ideal para os surdos seria aquela que entendesse que este grupo tem uma demanda cultural que precisa ser atendida: uma escola com uma visão multicultural.

Em segundo lugar, uma escola que respeitasse, acima de tudo, as suas potencialidades.

Em outras palavras, uma escola que procurasse seguir as orientações dos Estudos Surdos, entenderia que este grupo tem uma língua própria, que possui histórias pessoais e grupais, que tem uma forma peculiar de manifestar suas aptidões artísticas e culturais. Esta escola procuraria valorizar as lutas que este grupo tem travado em sua história. Seria uma escola que daria atenção especial aos discursos e às especificidades das pessoas surdas. Uma escola que jamais abordaria a questão da surdez como uma deficiência, ou os surdos como seres patológicos, incompletos, menores. Escola que procuraria entender que a sociedade, por sua tendência para a norma, geralmente, desvaloriza processos culturais de segmentos minoritários.

Esclarece Wrigley (1996):

[...] embora não possuam marcadores de raça ou de nação, os membros dessas culturas Surdas auto-referenciadas não têm dúvidas de suas identidades culturalmente distintas. Embora nominalmente membros de uma cultura dominante que os circunda, eles – alguns, mas não todos – vêem a si mesmos como separados dela e como membros de uma cultura Surda especificamente “nativa”. [...] Embora líderes Surdos enfatizem o quanto têm em comum com outras minorias lingüísticas [...] a ignorância justificada, exibindo-se à guisa da sabedoria comum, continua a tratar os surdos apenas como outro grupo de deficientes ou incapacitados (p. 32-34).

Enfim, estes Estudos tentam dar uma visibilidade à cultura surda, procurando alçá-la ao patamar de uma cultura reconhecida pela maioria, como uma cultura legítima.

Lopes (2006, p. 31), falando do espaço escolar de que o surdo necessita, diz que ele precisa ser edificado numa nova visão da busca do conhecimento, da construção do saber, com uma proposta multicultural que respeite e que compreenda o que os surdos têm em termos de potencialidades, e que aceite a sua cultura. Diz ainda a autora:

Não basta ter a garantia de um espaço com professores surdos, é preciso que a escola seja construída sobre outras bases e outras concepções epistemológicas que possibilitem olhar os surdos como sujeitos representantes de um grupo ético-cultural específico (p.31).

A autora comenta que, uma vez que “desaparece” a audição, também, facilmente, desaparece tudo o que é mais importante: os professores surdos, a Língua de Sinais, os colegas surdos, a histórias de surdos, a literatura surda, as narrativas surdas, logo, se faz necessário uma mudança radical na forma que esse sujeito que não escuta seja entendido e observado.

Diante de tantas possibilidades de pensarmos os surdos e a surdez, esta entendida como primordial, esquecemo-nos de que a escola de surdos é feita por muitas pessoas que carregam consigo um olhar que localiza os surdos em uma posição de incapacidade e de anormalidade. Nesse quadro, pouco adianta a luta surda por uma escola específica para surdos, pois a necessidade de uma mudança radical na educação escolarizada dos surdos passa, antes de qualquer coisa, por uma mudança radical na forma de olharmos para esses sujeitos(LOPES, 2006, p.29).

É importante olhar a surdez como uma diferença que distingue este ser, mas que está plenamente capaz de se integrar na sociedade, com todas as condições de gerar total sucesso em suas realizações como qualquer ser humano; olhar o surdo como alguém que pela visão busca conhecer e interagir com o outro e com o mundo. Isto deve despertar uma nova forma de encarar este cidadão que vive nas favelas, nos bairros, nas famílias humildes ou abastadas, que está exigindo um novo olhar, que busca por uma nova escola que possa atender aos seus anseios. Esta forma inusitada de ver estes personagens tem que sensibilizar os pesquisadores, as instituições, os órgãos competentes, os governantes, a terem outra postura, em agir na direção de providenciar o suprimento dos direitos básicos que esta figura humana necessita.

Neste olhar, Lopes (Op. cit) explica:

Dessa forma, alicerçada na concepção de cultura, afirmo que a diferença primordial que constitui o surdo é a responsável pela aproximação geográfica e cultural surda. Se negarmos a condição de surdez, negamos a necessidade da aproximação surda em associações, comunidades, clubes e em escolas de surdos. Para que lutar por uma escola de surdos, por uma língua gestual-visual, pela arte surda, etc. se não vejo na surdez uma razão de formação de grupo? (p.30).

Por estes motivos, se compreende que é preciso uma escola que atenda esse grupo que apreende por meio da visão, e, para isto, se faz necessário novas estratégias, novas metodologias, nova didática. Surdos não aprendem como os

ouvintes, no mesmo ritmo, com as mesmas estratégias cognitivas. Portanto, alguns diriam que para o sucesso educacional dos surdos seria necessária uma escola específica para surdos, onde houvesse, principalmente, professores surdos.

Esta preferência parece que é proibida nos dias atuais. Nesse sentido, Lopes (2006), afirma:

Estamos atravessando uma lógica ouvintista que vem guiando nossas práticas e encaminhando a militância que fazemos na área de educação de surdos para uma simples exaltação das diferenças daqueles que, quando estão na escola, não acreditamos que possam aprender como os outros. (p.32)

Esta autora, de uma forma muito inteligente, vai mais além dizendo o seguinte:

Ninguém está imune às práticas ouvintistas. Elas estão cada vez eficientes. [...] O ouvintismo pode ser entendido como um conjunto de práticas culturais voltadas para processos de subjetivação. Tais processos visam não somente ao corpo – disciplinamento –, como também, ou principalmente, a alma, sujeitando-a a padrões de normalidade ouvinte (LOPES, 2006, p.31).

A interferência dos ouvintes nos processos que atingem os surdos, geralmente passa despercebida, como uma boa ação dos ouvintes em relação aos surdos, no entanto, esconde certo “ouvintismo”.

Na definição de Perlin (2010),

O ouvintismo deriva de uma proximidade particular que se dá entre ouvintes e surdos, na qual o ouvinte sempre está em posição de superioridade. Uma segunda idéia é a de que não se pode entender o ouvintismo sem que este seja entendido como uma confirmação de poder ouvinte. Em sua forma oposicional ao surdo, o ouvinte estabelece uma relação de poder, de dominação em graus variados, onde predomina a hegemonia através do discurso e do saber (p. 59).

Neste cenário, armado pelas políticas públicas atuais, é comum encontrar surdos isolados, queixando-se de estarem sós, mesmo rodeados, de outros estudantes ouvintes que até apreciam a língua de sinais, mas com os quais não conseguem estabelecer uma eficaz comunicação. Portanto, um destaque é dado por Sá (1997), quando alerta:

[...] é preciso que se diga que a escola inclusiva não é sinônimo de escola regular. Escola inclusiva não é sinônimo da escola que se tem (na qual muitas vezes não estão “incluídos” nem aqueles que entram todos os dias pelas suas portas). Escola inclusiva é sinônimo de escola significativa. No caso dos surdos, por exemplo, a questão não é: os surdos têm direito à escola regular, mas: os surdos têm direito a uma educação plena e significativa (SÁ, 1997, p. 34).

Segundo (SÁ, 2010, p. 18), geralmente as questões que envolvem a educação de surdos se detêm naquilo que lhes falta, no “canal perdido” (grifo da autora). No entanto, o mais importante e necessário é apresentar os micropoderes (das salas de aula, por exemplo) e os macropoderes (das políticas e sistemas, das práticas discursivas sociais) que tentam impor idéias e opiniões que nem sempre acompanham o clamor e a perspectiva das pessoas surdas, que precisam com urgência de uma escola significativa.

Veiga-neto (2002, p.45) diz que o que se apreende neste momento é que tudo está mudando ao nosso redor e, que principalmente, passa despercebido aos nossos olhos que as desigualdades continuam cada vez maiores no mundo que mudou e, com ele, nosso próprio entendimento sobre nós e sobre o próprio mundo. Parece que, junto a uma maior democratização da informação, continuam se aprofundando as desigualdades.

Segundo Lopes (1996), os surdos também estão mudando nas suas lutas e nas formas de compreender a educação. Comentando este processo de mudança na visão dos surdos, a autora diz:

Até há pouco tempo, os surdos lutavam por direitos universais, se é que posso colocar algo nesses termos; hoje lutam por questões particulares, implicadas direta e indiretamente nos direitos universais. Se “antes” os surdos lutavam pelo direito à escola de surdos, hoje lutam por condições de permanência, por qualidade de ensino, por aprendizagens que gostariam de fazer para poder estar neste mundo cada vez mais competitivo e excludente (p.33).

A autora continua nos desafiando a observar as mudanças que estão acontecendo por causa do mundo competitivo em que se vive:

A competição é uma das causas que me chamou a atenção nas narrativas daqueles alunos. Queriam aprender com os outros para que pudessem concorrer com os outros. A expressão “outros” não significa o que, há pouco tempo atrás, leríamos sem questionar – os ouvintes. Hoje os “outros” dos surdos são também os próprios surdos melhor preparados para ocuparem

vagas nas universidades, vagas no mercado de trabalho, etc. Querer saber e querer conhecer o código escrito da língua portuguesa passou a ser uma condição de possibilidade, uma ferramenta a mais no jogo injusto, porque partimos de condições desiguais entre sujeitos (LOPES, 1996, p.33).

Quando se faz uma leitura do mundo atual, com políticas públicas que alteram radicalmente as possibilidades de atendimento e as feições da escola, o que se vê é que os surdos são obrigados a voltar a defender o primordial: sua escola específica, bilíngüe e multicultural. Por isso, principalmente os professores têm que ter uma mente na qual seja estabelecida uma constante crítica pessoal, uma crítica do mundo, como também das diretrizes que regem os sistemas.

Diante desta constante transformação que o mundo tem passado, é imprescindível analisar que tipo de formação se quer e, que tipo se tem oferecido, atualmente, nas escolas. Será que se pode admirar a formação que está sendo oferecida atualmente? Está tudo bem com a formação que os surdos têm recebido? Para se pensar este tema de extrema importância, precisa-se olhar um pouco o currículo escolar.

De acordo com Silva (2002, p.37), o currículo tem o objetivo de gerar alguma mudança em alguém, tem a idéia de que alguém chegou de um jeito e certamente dentro de algum tempo de aprendizagem sairá uma pessoa transformada.

Diz Silva (2002):

Ao se concentrar na questão do conhecimento ou da transmissão cognitiva, tende a esquecer que o todo currículo “quer” modificar alguma coisa em alguém, o que supõe, por sua vez, alguma concepção do que é esse “alguém” que deve ser modificado (p.37).

A autora citada chega a uma definição de currículo que desvela o significado de algo que está faltando para a educação dos surdos: entender quem é este “alguém que precisa ser modificado”. Diante deste foco, é preciso compreender e, perguntar: Será que a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008) está sabendo entender quem é esse alguém? Isto é básico para que se possa legislar com justiça.

A autora Lopes (2006), comentando este tipo de escola que se tem atualmente, diz:

Educar, orientar, limpar o indesejável do corpo dos indivíduos, discipliná-los, vigiá-los e controlá-los passam a ser condições necessárias para o funcionamento de uma maquinaria disciplinar competitiva e excludente. Maquinaria que funciona operando com diferentes estratégias que delimitam espaços e caminhos que cada grupo em seu momento histórico imagina ser possível de trilhar com uma boa dose de práticas e de pedagogias (LOPES, 2006, p.34).

Ao se ter contato com a comunidade surda, percebe-se que os surdos preferem professores surdos nas suas práticas e pedagogias, mas isto não significa atrelar a questão da educação à “deficiência auditiva”, no sentido restrito, biológico. Antes significa considerar a especificidade da surdez, suas experiências visuais, seus artefatos culturais, sua língua e seus modos próprios de existir. Os surdos definem a si mesmos, de forma cultural e lingüística – esta é a ênfase que eles dão. No entanto, a escola insiste em colocá-los, ou misturá-los entre os ouvintes (como que para disfarçar ou negar a surdez), ou com professores ouvintes não-bilíngues – num atentado contra as mais recentes visões da ciência, da antropologia e da pedagogia (STROBEL, 2008).

Considerando que é possível criar ambientes lingüísticos naturais para a aquisição precoce da língua de sinais e para o aprendizado sem barreiras lingüísticas, e que a cultura surda é um eixo importante para qualquer trabalho educacional com surdos, este trabalho procurará detectar barreiras conceituais ou argumentos favoráveis, que porventura existam dentre os surdos e entre os profissionais da área da surdez, nesses tempos pós-Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), para que a escola mais adequada para este grupo lingüístico e cultural se estabeleça no Brasil, revertendo o quadro histórico de insucessos e frustrações.

3. EDUCAÇÃO INCLUSIVA: AVANÇOS E RETROCESSOS DA POLÍTICA