• Nenhum resultado encontrado

Visão Filosófica do Ser

1. ÉTICA GERAL E NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

1.2 A BUSCA DE UM ESTADO ÉTICO

1.2.1 Visão Filosófica do Ser

O ser, que Hegel diz “imediato indeterminado”, é, paradoxalmente, o conceito mais obscuro. Heiddeger, em “O Ser e o Tempo”, revisita a pergunta básica da ontologia: o que é o ser? Encontramos o ente, logramos conhecê-lo ainda que em sua representação, diversa da essência; mas o ser refoge à definição, exatamente porque a pergunta nasce viciada em sua gênese, formulada um instante antes de tornar-se possível: há que existir, primeiramente, alguém que é e que a si mesmo se pergunta; o resultado é a perplexidade. Na tentativa de explicar o conceito de ser, fez-se sua objetificação (entificação).

O ente nada pode acrescentar ao ser, inferior que lhe é em hierarquia. O ser não é algo como um ente. O ser não ocorre logicamente. O ser de um ente não é ele mesmo um ente. A realidade vem antes de toda e qualquer representação. Mas, na medida em que incorporamos o que conhecemos, categorizamos, catalogamos, dilatamos o ser e, na integração entre sujeito e objeto, estabelece-se a paz.

No entanto, existe o outro. O outro que não somente responde, mas que também interroga; e, em interrogando, desafia. A relação com o outro não é uma relação necessariamente de paz; o outro é quem ocupa espaço de ser; é quem também é e quer ser. Se o ser aí inclui um procurar por, um ser com, guarda também uma necessidade de afirmação, que conflita, que compete, que agride. E, no entanto, o outro adentra nosso universo de ser e, em o fazendo, imbrica-se em nosso eu, dilatando a existenciariedade. A relação entre o ser e o outro sugere John Donne61 (“nenhum homem é uma ilha”; “a

morte de qualquer homem me diminui”). A destruição do outro desfaz o mundo do outro em mim; quem mata o outro mata-se um pouco também em si mesmo.

O ser aí é ser com. Mas ser com significa renúncia de autenticidade. O ser- com-os-outros implica submissão aos outros no viver cotidiano.

Paga-se tributo a uma receita de ser imposta por uma aceitação coletiva que, ao mesmo tempo que dispensa justificativa, retira de cada um o fardo da responsabilidade. Mas, nesse “a gente”, perde-se a própria identidade do ser.

Heidegger houve como primeiro escopo, que logrou bem atingir, recolocar a filosofia na posição dominante da qual os jovens hegelianos a haviam retirado. A dessublimação do espírito foi realizada como uma reabilitação do exterior ante o interior, do material ante o espiritual, do ser perante a consciência, do objetivo ante o subjetivo, do sensível ante o entendimento e da empiria ante a reflexão.

Os destinos históricos de uma cultura ou sociedade são determinados em seus sentidos respectivos por uma pré-compreensão coletivamente vinculante de tudo o que pode acontecer no mundo. É uma pré-compreensão ontológica que depende de conceitos básicos formadores do horizonte que quase prejulgam o sentido do ente. A época que apelidamos moderna passa a ser definida como aquela em que o homem se tornou meio e medida do ente. O homem é aquilo que subjaz a todo ente; isto é, na era moderna, a toda a objetivação e ao que representa o subjectum.

A contribuição mais importante de Heiddeger consiste em classificar a dominação moderna do sujeito de acordo com uma história da metafísica. Descartes encontra-se, por assim dizer, a meio caminho da consciência de si como o fundamento absolutamente seguro do representar; assim, o ente em sua totalidade passa a constituir-se

do mundo subjetivo dos objetos representados. A verdade passa a ser certeza subjetiva. Combate Heidegger a razão centrada no sujeito, havendo como irrelevante a diferença entre a razão e o entendimento.

A mesma compreensão do ser que incita a modernidade à expansão ilimitada do seu poder de controle obriga a que, no âmbito da subjetividade, estabeleçam- se vínculos que sirvam de garantia a seu procedimento imperativo. Abandonam-se aí os conteúdos universalistas do humanismo, do esclarecimento e do próprio positivismo, por um lado, e das idéias particularistas de auto-afirmação do racismo e do nacionalismo. O ser decompõe todas as orientações normativas em pretensões do poder, do desejar mais ser.

A metafísica passa, com Heiddeger, a ter princípio e fim. O tempo passa a importar. O início dos tempos modernos situa-se pelo corte produzido pela filosofia da consciência, iniciada com Descartes; e a radicalização nietzscheniana dessa compreensão do ser faz-se marco do tempo mais recente, o qual determina a constelação do presente.

O messianismo de Nietzsche, que ainda deixava espaço para que se acelerasse a busca de salvação, transforma-se, no sentir de Heidegger, na expectativa apocalíptica da entrada catastrófica do novo, utilizando-se do mito romântico do deus ausente, para fazer a separação entre o ser, que sempre fora compreendido como o ser do ente, do próprio ente. Somente o ser que se distingue de modo hipostático do ente pode assumir o papel de Dioniso, o deus ausente. O ente é abandonado pelo próprio ser, num distanciamento que alcança completamente o ente, não daquela espécie de homem que representa o ente como tal, em cujo representar escapa-lhe o próprio ser em sua verdade. A ausência do ser é vista como o próprio ser enquanto ausência.

Heidegger, todavia, não entende a destruição da história da metafísica como crítica desmascaradora, ou a superação da metafísica.

Segundo Heidegger,

a pessoa não é uma coisa, uma substância, um objeto. Com isso, acentua-se o mesmo que Husserl sugere, ao exigir para a unidade da pessoa uma constituição essencialmente diferente do que é exigida para as coisas da natureza... Pertence à essência da pessoa existir apenas no exercício de atos intencionais... O ser psíquico não tem, portanto, nada a ver com o ser- pessoa. Atos são executados , a pessoa é executora de atos. 62

Avançando no tema, o filósofo indaga qual o sentido ontológico de “executar”, como se determina, de modo ontologicamente positivo, o modo de ser da pessoa? Daí dessume a noção de ser-pessoa enquanto ser no mundo. No iniciar a obra “Ser e Tempo”, Heidegger, primeiramente, confere à problemática transcendental um sentido ontológico. A “Crítica da Razão Pura” de Kant passa a ser, então, uma “lógica objetiva a priori da região de ser que é a natureza”. Empresta-se coloração ontologizante à filosofia transcendental, que assim se torna inteligível, a considerar-se que as próprias ciências não se originam das operações cognoscitivas flutuantes, como afirmara o neo- kantismo, mas estão assentadas em contextos de vida concretos: “As ciências são modos do ser-aí.”

Num segundo momento, Heidegger confere ao método fenomenológico uma diretriz de hermenêutica ontológica. Fenômenos só aparecem indiretamente. O que aparece é o ente, que justamente encobre o como do ser-dado desse ente. Os fenômenos refogem ao conhecimento direto, pois que, em seu aparecer ôntico, não se mostram realmente como são. A fenomenologia diverge das ciências exatamente por não guardar

62HEIDEGGER, Martin apud STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre ser e tempo. 2. ed. São Paulo:

relação com espécie qualquer de fenômenos, mas com a explicação daquilo que se oculta em todos os fenômenos. A fenomenologia trata do ser dissimulado pelo ente.

Prosseguindo, Heidegger associa a analítica do ser-aí, que procede ao mesmo tempo de modo transcendental hermenêutico, a um motivo da filosofia existencial. O ser-aí humano entende-se a si mesmo a partir da possibilidade de ser ou não ele próprio. O conflito instaurado é entre a autenticidade e a inautenticidade. Existe um tipo de ente cujo ser “há de ser”, o ser-aí humano de apoderar-se do horizonte de suas possibilidades e responsabilizar-se pela sua própria existência. Quem tenta evitar o conflito decide-se pelo “deixar-se levar”, entrando em decadência. É preciso o cuidado (Sorge) com a própria existência, com a responsabilidade que cada um tem de fazer a própria história, exercitando o mais possível sua capacidade de ser, dilatando suas dimensões (potencialidades de ser).

Ernildo Stein preleciona, verbis:

Heidegger sabe que o novo paradigma que ele instala com a proposta de sua fenomenologia existencial envolve uma espécie de redução das pretensões do conhecimento metafísico. A definição do homem como cuidado, que é o resultado da analítica existencial provisória, já supõe um corte que denomino, na falta de um termo mais adequado, de ‘encurtamento hermenêutico’. Ao definir o homem como cuidado, Heidegger já praticou a exclusão do mundo teológico e a forclusão do mundo natural de sua filosofia. Com isso, ele passa a desenvolver sua analítica entre duas rupturas, ou duas faltas: o modelo teológico ausente suprime a possibilidade do adjetivo ‘racional’ aplicado ao homem, e a forclusão do mundo natural afasta o adjetivo ‘animal’ de uma possível definição de homem. É assim que o filósofo liquida com a definição metafísica do homem, o homem apenas referido na auto-reflexão. A auto-referência surge com o fato de ser-no- mundo. O homem não é mais exterior a si mesmo como observador. Está referido a si como ‘tarefa de ser’. ‘To be or nor to be’.63

63STEIN, 1990, p. 84.

Ricardo Timm de Souza64 apresenta preciosa abordagem a respeito da alteridade, que conduz a uma série de questionamentos fecundos. Aponta que o outro chega repentinamente, frustrando todas as tentativas possíveis de anular sua presença e relegar seu sentido. É o outro que adentra o mundo do ser, sem permissão, que desafia o ser, que pode dizer “não” ao “sim” interno do ser. O que o outro representa originalmente frente ao ser é um problema concreto, que “desestabiliza as certezas da minha inteligência”. O que o outro é não se alcança; e, porque se não alcança, é indizível. Sabe- se do outro apenas o que dele se pode captar, perceber, classificar. Muito embora o abismo criado pela impossibilidade de perceber a essência do outro, de compreender sua íntima natureza, há a real possibilidade de uma aproximação, a mágica faculdade do encontro.

Ricardo Antônio Lucas Camargo apanhou com maestria a necessidade de vivência filosófica que direciona a realização pessoal em direção ao outro, apontando, verbis:

Aqui, a presença do outro é essencial, mesmo no plano fáctico, pois de uma posição deste em relação ao eu depende a realização da vontade deste. O outro como espaço do não-eu, como negação do eu, como limite humano do eu, comparece para nos lembrar, como diz Tarcísio de Miranda Burity, que ‘todos estamos mergulhados na mesma condição humana. E saída para uma convivência pacífica consistirá no reconhecimento da igualdade entre todos, o que faz limitar o espaço de liberdade de cada um e, em conseqüência, reconhecer o valor do outro como um ser dotado de inteligência e de senso de moralidade, o qual não pode ser instrumentalizado por ninguém.

É interessante observar que esta visão do outro como um ser dotado da mesma dignidade que o eu aparece identificada como um traço aproximativo entre os pensamentos de Buddha, Confúcio e Zoroastro.

Esta consciência da interação social é a chave para alcançar-se uma consciência ética.65

64SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como fundamento: uma introdução à ética contemporânea. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2004. p. 56.

65 CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Advocacia pública, mito e realidade. São Paulo: Memória Jurídica, 2005. p. 28.

Das idéias acima lançadas, pode-se extrair um fio condutor, que leva da filosofia à ética do existir, impondo como conclusão as seguintes diretrizes: (a) da análise ontológica de nosso estar no mundo, surge uma nova filosofia, que supera a metafísica, mas não a elimina, podendo mesmo com ela coexistir; (b) observando o ser como dinâmico, como existente no Tempo, dotado pois de presente, passado e futuro; e, mais ainda, observando que o ser é aberto a acrescentamentos, que se pode sempre ser mais, desenvolvendo potencialidades, deparamos com a responsabilidade de cuidado, para que não anulemos as chances de mais ser no sentido positivo; e (c) na mágica do encontro com o outro, a diferença é que permite a disponibilidade, a abertura em relação ao outro, imperativo ético de realização do ser.

Conforme está visto, é o estar no mundo, o estar com, que nos oferece a lógica do existir, ao mesmo tempo opondo limites e descortinando horizontes. Tem-se já, neste estudo, um norte que leva ao que é moralmente correto (ética) e um ser que há de seguir tal bússola na procura da própria realização. Mas o estágio alcançado abre novas portas de indagação: a imprescindibilidade da ética alcança apenas o ser individualmente considerado, ou haverá também uma ética do coletivo, da organização social, do próprio Estado? É o que ora se passa a examinar.

Documentos relacionados